• Nenhum resultado encontrado

1. A TEORIA DE REPRESENTAÇÃO DE HANNA F PITKIN

1.3. Modelos de representação democrática

1.3.3 Representação crítica

Rousseau, no modelo crítico, preconizou que o representado seria detentor de uma vontade individual, e não apenas interesses “de classe”, difícil – embora não impossível – de ser adotada pelo representante sem prejuízo da sua própria. A vontade, por ser inalienável, não poderia ser reproduzida, embora capaz de ser coincidente. No Contrato, a soma das vontades individuais constitui a vontade geral, que a todos submete.

A soberania é irrepresentável pela mesma razão que é inalienável; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade, de modo algum, se representa: é a mesma ou é outra, não há meio-termo. Os deputados do povo não são, portanto, nem podem ser seus representantes, podendo apenas ser seus

comissários; nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo diretamente não ratificou é nula; não é, em absoluto, lei (ROUSSEAU, 2015:87).

O povo só se submete àquilo que referenda. O povo, não o indivíduo. A vontade geral, não a individual – nem mesmo a do representante. Por isso a representação era exercida mediante um mandato imperativo. O representante não tinha liberdade para agir conforme suas as preferências individuais ou as de seus eleitores, estando vinculado à vontade geral. Somente a vontade geral poderia dirigir as forças do Estado de acordo com o objetivo de sua instituição, sobrepondo-se aos interesses individuais isolados.

É por isso que consideramos que devem sempre concorrer para que exista poder, dois elementos essenciais: a vontade, que lhe proponha um fim, e a capacidade, que lhe garanta os meios. A energia surge das combinações e interações, as mais diversas, entre esses dois elementos; jamais resultará de um deles, separadamente (MOREIRA NETO, 1992:58).

Vontade é a manifestação psicológica, capacidade é o diferencial biológico. Conforme já referido, para Rousseau a organização do Estado resulta da vontade humana como um desejo consciente da comunidade. Todavia, às questões políticas deveria ser aplicado o “princípio de identidade artificial de interesses”, segundo o qual um regime representativo deve ser organizado conforme a harmonia dos interesses dos governados e governantes produza o interesse geral. Cumprido isto, seria refletido nas decisões legislativas (SHAPIRO, 2006:43).

Seria, como imaginado por Bentham, uma força irresistível que na democracia os impulsos pessoais fossem refreados pela ameaça de remoção do cargo na hipótese de o representante desvincular-se do interesse geral. Por isso, o interesse pessoal sempre seria deixado de lado quando se trata de implementar políticas públicas (SHAPIRO, 2006:45). Logo, a organização do Estado é uma estruturação coletiva de poder derivada do exercício de poderes individuais.

O contratualismo rousseauniano defende a mesma liberdade natural do homem de Locke. “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e nós recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo” (ROUSSEAU,

2015:21). Em lugar da pessoa particular, um corpo coletivo, moral. Este ponto de partida teórico sustenta a superação da tirania e impõe limites aos governos na medida em que, juntamente com a associação, fundam a soberania popular.

Pela mesma razão que a soberania é inalienável, ela é indivisível. Pois a vontade é geral. Ou ela é ou não é; ou é aquela do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso essa vontade declarada é um ato de soberania e produz lei. No segundo não passa de uma vontade particular ou um ato de magistratura; no máximo, é um decreto (ROUSSEAU, 2015:29). Como destacado, o poder conferido pelo pacto social ao corpo político não outorga soberania, mas é dirigido pela vontade geral. O que generaliza a vontade é o interesse que as une. O conceito contratualista de soberania tem íntima ligação com a democracia liberal representativa: o homem, detentor de direitos naturais e liberdade, associa-se e forma a sociedade em nome da qual abdica de parte de sua autonomia, transferindo-a à administração da coisa comum, chefiada por representantes escolhidos pelo critério numérico.

É importante repetir: interesse não é necessidade. O importante, para que desponte o poder coletivo, é que o interesse comum possa polarizar o poder difuso do grupo. O poder grupal é o que se produz nas concentrações de todo o tipo dentro de uma nação. Seus objetivos são sempre específicos e, quase sempre, bem definidos.

Quanto mais complexa a cultura, mais interesses coletivos emergem e mais diferenciações surgem em resposta. Essas formas de poder coletivo, uma vez reconhecida sua eficiência, tendem a se estabilizarem pelo costume e a permanecerem à disposição do grupo que as gerou sob a forma de instituições (MOREIRA NETO, 1992:120).

Quando um grupo resolve sair do estado de natureza e constituir uma comunidade política à parte, no mesmo ato em que a forma tem que surgir uma vontade unificada, que é a soma de suas vontades individuais – o que é comum entre elas -, e uma forma de poder correspondente. Essa vontade comum é o artefato, a pessoa artificial que o contrato cria, cuja resistência e força só se mantêm indivisíveis na medida mesma em que a vontade permanecer assim – como vontade geral. O soberano, com seu atributo da indivisibilidade, apenas faz sentido como vontade geral, e não há outro modo de a vontade geral se manifestar senão na forma da lei. Assim, o poder

soberano se resume a uma única instância: o Poder Legislativo (ARAÚJO, 2013:224-225).

Este poder legislativo do sistema representativo é a força moral do poder, a vontade que determina o ato: pertence ao povo. O autor faz uma diferença entre vontade e força. A vontade está no Legislativo, a força no Executivo. Como órgão intermediário, o governo deve ser próximo do soberano para só cumprir adequadamente suas funções constitucionais. É neste ponto que a objeção à representação política ganha a dimensão de uma crítica substantiva e mais ampla.

Em suma: a comunidade política só pode funcionar através de duas agências interdependentes, porém separadas: o soberano formado por todos os cidadãos, sede do Poder Legislativo; e o governo, que não requer a participação do conjunto da cidadania, sede do Poder Executivo.

No momento em que o povo é legitimamente reunido, cessa qualquer jurisdição do governo, o poder executivo é suspenso e a pessoa do último cidadão é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro dos magistrados, porque onde se acha o representado, não há mais representante (ROUSSEAU, 2015:85).

Rousseau ressalta o paradoxo da supremacia do poder soberano, afinal, seria contraditório que o soberano desse a si mesmo um poder superior. Por isso, não poderia haver uma vontade que predeterminasse a do soberano. Sendo, contudo, uma vontade geral, e não uma vontade particular, que para existir não pode prescindir do concurso de vontades individuais de cada cidadão, cuja soma é a vontade geral. Em outras palavras: só pode haver vontade geral enquanto os cidadãos agirem em comum para constituir essa vontade.

Da tese da supremacia, Rousseau extrai a irrepresentabilidade: a soberania não pode jamais alienar-se, pois vontade não se aliena. A democracia, assim, era definida como a forma de governo na qual a vontade geral emanada do povo prevalecia sobre os interesses privados, e onde a maior parte dos cidadãos tivesse acesso ao exercer do poder.

Quando o laço social começa a afrouxar-se e o Estado a debilitar-se, quando os interesses particulares principiam a se fazer sentir e as pequenas sociedades a influenciar a grande, o

interesse comum se altera e encontra oponentes, a unanimidade não reina mais nos votos, a vontade geral não é mais a vontade de todos, irrompem contradições, debates e o melhor parecer não encontra acolhida sem disputas (ROUSSEAU, 2015:94). Contudo, para que o governo de representantes seja formado, o consenso de ideias deve ser alcançado. Os nomes escolhidos para exercício do governo serão aqueles que melhor espelhem a vontade geral, assumindo e exercendo o poder em nome de seu titular.

O filósofo genebrino [Rousseau] desenvolve o seguinte argumento: quando um grupo de indivíduos resolve sair do estado de natureza e constituir uma comunidade política à parte, no mesmo ato em que a formam tem de surgir uma vontade unificada, que é a soma de todas as vontades individuais – isto é, o que há de comum em todas elas -, e uma forma de poder correspondente. Essa vontade comum é o artefato, a pessoa

artificial que o contrato cria, cuja existência e força só se mantêm indivisíveis na mesma medida em que a vontade permanecer assim – como vontade geral. O soberano, com

seu atributo da indivisibilidade, apenas faz sentido como vontade geral, e não há outro modo de a vontade geral se manifestar senão na forma da lei. Assim, o poder soberano se resume a uma única instância: o Poder Legislativo (ARAUJO, 2013:224- 225) (grifo meu).

A representação política é a marca fundamental da democracia representativa, que pressupõe o exercício do poder soberano por mediação de indivíduos não detentores do poder. O mandato do soberano só existe enquanto existir o “artefato que o contrato [social] cria”, a vontade geral. Se é a vontade geral que institui o soberano, somente a mesma vontade pode destituí- lo.

A titularidade do poder pertence ao povo, que transfere seu exercício aos representantes políticos. Essa delegação a um grupo de pessoas decorre de um ato voluntário e consciente do povo por meio de um regular processo de escolha. O soberano não é o Estado. O governante é passageiro, o Estado permanece.

Por fim, Rousseau também expressa preocupação com a concentração econômica, porém, sob o prisma da igualdade. Não defende que os graus de poder e riqueza sejam os mesmos, contudo, ressalva que nenhum cidadão tenha tantas posses “a ponto de poder comprar um outro e nenhum tão pobre a ponto de se achar forçado a vender-se”.

A regra da igualdade, tal como a adequação dos sistemas legislativos, não deve ser encerrada numa fórmula hermética, exigindo adaptação à situação peculiar que forma o povo que a referenda. O que torna a constituição de um Estado sólida e durável é isso: que provenha da aderência aos costumes, opinião e modos do seu povo (ROUSSEAU, 2015:50-53).

Contemporâneos, Rousseau (modelo crítico) e Edmund Burke (modelo autorizativo) opunham-se. Burke não pensava em interesses pessoais, Rousseau, sim; em Burke não há vontade individual e, por isso, também não há prestação de contas, já em Rousseau, sim. O povo só se vincula pela norma que referenda. Este é o modelo de representação crítica defendido por Rousseau: de um mandato imperativo de cujo exercício exigem-se vinculação à vontade geral e prestação de contas.