• Nenhum resultado encontrado

Se você tiver um, na boca do povo tem dez; se tiver dois, tem mil

Engenheiro Schnoor

6.2 Sobre a solidão, a vigilância e alguns assuntos do coração

6.2.1 Se você tiver um, na boca do povo tem dez; se tiver dois, tem mil

Parece exist ir ent re os homens um pact o de silêncio, eles (mesmo os que não migram) negam a possibilidade de haver t raição, a possibilidade de exist ir mulher em São Paulo. As mulheres que já moraram com seus maridos em São Paulo (como Rebeca, Teresa, Val) ou as que têm soment e filhos (como M árcia) que vão pro cort e, se remet em ao assunt o de forma mais clara. Em uma conversa com Ant ônio e Márcia, Rebeca chegou e colocou lenha no assunt o, já explosivo:

Lúcia: Ant ônio, me diz uma coisa esse dinheiro que vem lá da usina serve para você, é bom para você t udo isso mas, como é que você acha que ficam as f amílias? As mulheres que ficam aqui sem os homens?

Ant ônio: Ah, mas é difícil para elas, é claro. É muit o difícil... L: Não t em mulher que adoece?

A: Tem, t em muit a gent e que adoece...

L: Tem umas que devem sent ir muit a liber dade, t em muit as que devem se sent ir at é bem... “ sai cabra, volt a só daqui 8 meses...”

A: Às vezes acont ece que muit as pessoas que saem , que vai t rabalhar e per de at é família, t em muit a mulher que não é fiel ao marido, desent ende depois. Ent ão dá desavença danada na família.

Márcia: Tem homem que vai pra lá e já arruma out ra por lá... A: Arruma nada, ninguém arruma nada não...

(...)

A: (...) Cê sabe m uit a gent e que é f iel e out ro infiel, é muit o chat o a gent e f alar mas, t em muit a mulher aqui mesmo que fica doidinha pro marido sair de casa, pra ela t rair ele. Eu não gost o nem de dizer essas conversas assim, porque eu sou uma pessoa muit o...

L: Mas a gent e não t á falando o nome de ninguém ent ão não t em problema...

A: Hum , hum... Mas exist e isso mesmo. É porque o marido sabe que ela t á t raindo ele, lá fora. Ele t á lá e sabe porque aqui, um t amanho de um ovo desse aqui... Se a mulher t raiu o marido, daqui um pouco um liga: sua mulher t á t raindo...

L: Ent ão as mulher es não podem t rair pois senão t odo mundo sabe, t odo mundo coment a... elas não ficam muit o presas?

A: Não ficam, mais o povo não est á import ando com essas coisas, muit a gent e não import a... que não import a que t rai... o homem at é que não é t ant o...

(...)

L: Ô Rebeca que você acha: os homens t raem mais as mulher es quando t ão lá longe ou as mulher es que ficam aqui t raem mais?

R: Os homens t raem mais lá.

A: Às vezes não.... às vezes o t rast e t á t rabalhando e chega no final de semana o t rast e t á cansado, é um serviço muit o cansat ivo, né? Pagament o só t em de mês em mês, final do mês.

M: Quinze em quinze dias.

A: Depois ele pensa: meu dinheirinho não dá nem pra sair pra cidade - que eles t rabalha lá longe da cidade-, não dá nem pra ele ir pr um bot eco, se f osse assim na r ua como é aqui, ele ia num bot eco. Como é que você vai sair de lá de Virgem de Lapa [município vizinho, cit ado para dar conta de expressar a lonjura entre o alojamento e a cidade]...

L: Mas não t em umas mulheres que vão nos alojament os? A: Não, lá só t em homem, moça.

L: Não, eu não t ô falando de mulher que cort a cana. Tô falando de mulher da vida mesmo.

A: Vai não... daqueles lados não t em mulher..., t á bem longe. (...)

R: É longe, mas e a biciclet a que eles compram? E carro que t em pra lá e pra cá diret o? É longe filha, mas t em carro. Eu mor ei lá. Carro pra lá e pra cá, biciclet a que eles chegam e compram. Tem gent e que cê precisa de ver... mas t em a maioria que é bando de vagabundo, só sai que é pra poder pra gast ar mesmo.

M: Tem uns que chegam aqui e não t raz nada, nada.

R: Agora t em gent e que faz dó [de t anto que se arrebent a para t razer dinheiro para a casa]. Agora aqui t ambém t em muit a mulher vagabunda que só fica esperando o dinheiro chegar.

M: Verdade.

R: Não sabe o sofriment o deles lá não, t em m uit a mulher vagabunda. E quem é que import a? Poder t rair não pode, mas eles fazem.

L: E o que você acha disso?

R: Eu não ia achar bom, claro que não. Aqui ninguém sabe de nada não.

Se parece exist ir um “ pact o de fidelidade” ent re os homens, o qual os aut oriza a não falar das mulheres de São Paulo, ent re as esposas prevalece um “ é melhor não saber de nada” . Ambas post uras privilegiam a cont inuidade da relação familiar em detriment o da condição de “ ser largado(a)” .

Nas comunidades da Cabília, Sayad const at ou a “ (...) negação (mágica) da ausência ou, se se quiser, ela [ t écnica feminina de mandar as mensagens gravadas] garant e durant e o t empo de gravação, a ‘presença m ágica´ do ausent e ...” (SAYAD, 1998, p. 160). Essa “ presença mágica” realiza-se no plano individual.

As comunidades estrut uram-se at ravés das relações de parentesco e de compadrio. O cost ume é fundado por est as relações, as quais asseguram a t ranqüilidade, a segurança e o sent iment o de pert enciment o. Cont udo, essas relações abrigam e sust ent am prát icas pat riarcais que se crist alizam no seio familiar e da comunidade. As mulheres se sent em vigiadas quando seus maridos não est ão em casa. Como já afirmamos, há uma reclusão velada em suas casas e quint ais. Economizam uma part e do dinheiro mandado por seus maridos mensalment e e se preparam para o ret orno do companheiro.

A migração dos homens e as est ratégias criadas pela comunidade para garant ir a comunicação e a presença do ausent e não nos pareceram nada “ mágicas” nas comunidades do Vale. As mulheres, como já af irmado, se sent em muit o sós e trist es; a “ presença” dos maridos, no seio da comunidade, é percebida muit o mais como uma “ presença persecut ória” por meio do olhar e da língua da comunidade.

As mulheres t ambém se encolhem em seus domínios at endendo a uma necessidade pessoal dit ada pela t rist eza e mant êm-se assim “ de acordo” com a moral vigiada em sua comunidade. Os domínios femininos se encolhem na medida em que os maridos viajam para novas t erras, mas ist o não significa que o t errit ório deles se expanda, pois eles não se apropriam do espaço nest as t erras. O cont role do homem deve ser mant ido, persecut oriament e ou simbolicamente quando elas fingem que o consult am.

Rebeca, ainda que seu marido não migre, visit a as colegas para vender produt os de casa e de beleza, seus escudos éticos. Lia, quando começa a escurecer volt a para a casa pois não quer ser vist a na rua por algum conhecido que possa coment ar com seu marido que ela est ava “ perambulando” pela rua. Como os homens migram em grupo, quando uma mulher conversa com seu marido pode dar not ícias do “ recat o” das out ras

mulheres e essa not ícia, como num t elefone sem fio, chega ao marido. Irene preferiu mudar-se para São Paulo, t rabalhar como domést ica em uma casa e visit ar o marido a cada 15 dias em Sert ãozinho (SP) a ficar na comunidade e t er sua vida “ bisbilhot ada” . Ela foi uma das primeiras pessoas que conheci na comunidade que revelou a depressão.

Todos negam a fofoca como inst it uição, afirmam não cont ar nada do que vêem para ninguém, no ent ant o, “ alguém” cont a ou observa.

Claúdia Maia (2000) em um est udo de gênero abordando t rabalho e família no Vale ressalt a que o t rabalho das mulheres, mesmo assumindo uma parcela do t rabalho do homem, cont inua sendo percebido como “ leve” quando comparado ao t rabalho “ pesado” do homem no cort e de cana. As mulheres assumem o comando da família, devem cont inuar se remet endo ao homem como se hierarquicament e ele ainda t omasse as decisões, cuidar da casa, do quint al, dos filhos, e, devem mant er o pudor.

O lazer das mulheres consiste em ir à casa das colegas, de vez em quando um forró (só para observar), ir à Igreja, fazer as compras diárias para a casa. Algumas gostam de jogar bola na quadra de esportes da comunidade. Malu:

L: E quando o A. est á longe com que você se dist rai? Malu: Televisão.

L: Você vai pro forró? M: Não.

L: Por quê?

M: Ah, porque eu acho que não é convenient e pra mim que sou uma mulher casada, vou fazer o que no forró? Sem ele? Lugar pequeno é assim: se eles viram, eles cont am o que eles viram e aument am e invent am t ambém. Ent ão como quando ele t á aqui, ele é muit o divert ido, quando ele t á aqui a gent e se divert e demais, demais. Não t em porque eu sair sozinha, eu não gost o. Não é t ant o pelo o que out ros vão falar, é porque eu não gost o mais.

Não t enho mais o int er esse de sair sozinha. Não t em graça. Se eu quer o t omar uma cerveja eu compro e t omo aqui em casa. A gent e [quando o marido est á em casa] sai vai pro forró, a gent e dança, a gent e bebe demais da cont a, divert e, se um com eçou a ficar t ont o, um vem escorando o out ro. Ele me t raz no colo, me t raz no pescoço.

L: Cê você t oma uma a mais?

M: É, mesmo se não t omar. Eu peço ele colo, ele vem me t razendo... (...)

L: E jogar bola, você [Malu] gost a de jogar bola?

M: Jogo, m esmo ele t ando, eu jogo. Ele manda eu ir, ele sabe que eu gost o, ele não gost a que eu engordo. Ele é gordo mas eu não posso ser gorda. L: Esses homens...

M: Ele manda, ele sabe que sint o dor nas per nas, ele acha que é m á circulação, né? Ent ão ele manda. Eu vou [jogo] e assist o ele jogando bola. As meninas morrem de rir, eu fico: vai bonit ão! E quando ele vai jogar e eu não t ô, ele sent e falt a. Ele vai e vou at rás. Eu me divirt o demais com ele aqui.

Vanessa, que já morou em São Paulo trabalhando como domést ica, t eve quat ro filhos com companheiros diferent es, t rabalhou muit o na roça, agora mora onde nasceu, Schnoor, e vive com Fred, dez anos mais novo que ela:

Lúcia: O Vanessa me diz uma coisa, cê não vai pros forró, não?

V: Vou, vou. Eu mais a menina que mora aqui, a irmã dele [de Fred., seu companheiro], vou e venho embora às dez horas. Nem ent ro no salão. Só bebo uma cerveja e venho embora. Não posso dançar senão no out ro dia o povo t á t udo é cont ando que t ava no forró dançando, eu vou lá bebo um a cerveja e venho embora.

L: Cê não t em ciúme dele lá? Dele arrumar uma mulher lá?

V: Uai, fico morrendo aqui pensando. Ele falou: não menina, aqui não t em mulher...

(...)

V: Eu falo: ‘cuidado, viu?’ Mas homem... ninguém deve confiar né, que ele t á longe.

Teresa t ambém reit era a opinião das colegas:

T: Se você t iver 01, na boca do povo t em 10, se t iver dois, t em mil. Queria at é morrer ant es de t rair ele. Ele dá risadinha quando pergunt o se ele t á sozinho.