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Das prát icas cotidianas

4.3 O ordinário e o Extra-ordinário

4.3.1 Tempo do Extra-ordinário

Ent re as comunidades camponesas-migrant es um out ro t empo e uma nova t errit orialização se impõem: o t empo “ Extra-ordinário” , o t empo do cort e de cana, o t empo do t rabalho assalariado e alienado, o t empo que rouba os homens de sua vida ordinária, de suas prát icas cot idianas camponesas.

Se compreendermos que a reprodução do capit al pode (ou não) recriar as condições para a reprodução camponesa e que, nesse caso, o t errit ório camponês é uma parcela conquist ada do t errit ório de reprodução do capit al, podemos afirmar que o camponês-migrant e, como sujeit o social, t em uma inserção t ão dura no territ ório da cana (do capit al) que seus efeit os se manifestam em sua família camponesa como uma série de rupt uras, como veremos nos próximos capít ulos.

A perda do tempo e do espaço ordinários e da experiência do sagrado (como será t rat ado no próximo capít ulo) marcam as relações sociais e conformam uma nova t errit orialização e percepção do t empo. Edna, uma senhora da comunidade de José Gonçalves/Piauí chegou a afirmar que desde que o marido ficou “ arruinado” pelo t rabalho e deixou de ir para o cort e é que ela passou a conhecê-lo. Durant e 20 anos, ela só o viu durant e breves lapsos de t empo nos quais ele ret ornava com o dinheiro. Ela const ruiu a casa, cuidou dos filhos e roça sozinha. O casal t em seis filhos, dois deles já vão para o cort e.

Sua nora, de quase 20 anos de idade, declarou que perdoara o marido quando est e não lhe t elefonou no dia do seu aniversário. Ele se esquecera pois a relação de um cort ador de cana com o t empo é muit o específica. Segundo ela, eles só cont am at é cinco, não import a o dia da semana ou o dia do mês. At é cinco pois só podem t rabalhar cinco dias seguidos e são obrigados a pegar um dia de folga. O dia de folga cai em dias diferent es da semana ao longo dos oit o, nove meses. Uma vez por mês ou a cada quinze dias dirigem-se, durant e a folga, ao escrit ório para o acert o da t emporada de trabalho.

No cort e, a rot ina é de um, dois, t rês, quat ro, cinco dias, descanso; um, dois, t rês, quat ro, cinco dias, descanso; um, dois... at é o moment o do breve ret orno. É o t empo mais que ordinário linear, numérico, que se impõe: é o t empo Ext ra-ordinário.

O limit e do t rabalho é const antement e test ado, at é a exaust ão, at é o limit e da exploração suportável, daí as mort es de t rabalhadores. Não é possível anular os t empos do corpo, o t empo para re-est abelecer a energia.

A referência ao t empo da lua, ao t empo das águas e das secas está present e soment e em casa, na roça, na família e na comunidade. Longe da natureza e da família perde-se t oda a vivência do t empo ordinário cíclico. O t empo no cort e é linear, repet it ivo e imediat o: os dias são cont ados at é cinco, doze são as t oneladas a serem cort adas homem/dia , os meses cont ados at é o nono - quando o trabalho na usina acaba e eles são demit idos.

Segundo Suzanna Evelyn, “ no sert ão (...) a vida inclui o trabalho; na cidade, o t rabalho engole a vida.” (1988, p. 25). O t rabalho árduo nas roças e nas comunidades não est á aqui sendo romantizado, mas sim, reconhecido como part e da vida em oposição ao t rabalho “ t ransit ório” .

A discussão sobre as condições de t rabalho do homem no corte de cana em São Paulo, é apresent ada por diversos aut ores. Ent re eles dest acamos Maria Aparecida de Moraes Silva e Francisco Alves que, junt amente com SPM e CPT, apont am as semelhanças com o t rabalho escravo dado o desgast e do ser humano.

Maria Aparecida de Moraes Silva em “ Trabalho e t rabalhadores na região do Mar de Cana e do Rio de Álcool” (2005) ressalt ou que nas ciências humanas poucos t êm sido aqueles que se ocupam em desvendar as condições nas quais ocorre a expropriação do t rabalhador de suas condições de vida e a exploração de seu t rabalho no eit o. Os t rabalhadores são a face invisível da produção de açúcar e álcool no país. Trabalhadores que, segundo a aut ora, não devem ser ent endidos como t emporários (como se est a condição just ificasse os abusos cometidos pelas Usinas) dada a cont inuidade desse “ t emporário” e sua permanência ao longo dos anos.

A aut ora descreveu as condições de trabalho e as acomodações nos alojament os dos t rabalhadores, nos quais não há água pot ável suficiente, não há vent ilação nos quart os abarrot ados de t rabalhadores, nem sempre os banheiros t êm chuveiro e condições adequadas e os espaços de cozinhar e lavandeira não est ão devidament e separados. A vigilância dos dormit órios é feit a pelo mesmo gat o que t rouxe os homens de seus lugares de origem70e que assegura às usinas t rabalhadores disciplinados para o t rabalho. No eit o, a comida pode azedar pois os homens saem com ela em suas marmit as ant es das 5:00 horas, em algumas usinas ainda não há água e reposição de sais disponíveis a t odo tempo.

70 Sayad descreveu t ambém as condições de acomodações dos argelinos nos subúrbios das cidades

francesas, quem vigiava os argelinos normalmente era um francês que lutara contra a guerra de independência da Argélia e conhecia o idioma.

Francisco Alves (2006), para compreender “ Por que morrem os cort adores de cana”71, descort ina as mudanças no processo produtivo da cana-de-açúcar e do álcool desde a década de 1960, o processo de trabalho e a forma de pagament o dos t rabalhadores. Segundo ele, os t rabalhadores morrem devido ao excesso de trabalho a que são submet idos:

Um t rabalhador que cort a 12 t oneladas de cana, em média, por dia de t rabalho realiza as seguint es at ividades no dia:

• Caminha 8.800 met ros.

• Despende 133.332 golpes de podão.

• Carrega 12 t oneladas de cana em mont es de 15 kg, em média; port ant o, faz 800 t rajet os e 800 flexões, levando 15 kg nos braços por uma dist ância de 1,5 a 3 met ros.

• Faz aproximadament e 36.630 flexões e ent orses t orácicos para golpear a cana.

• Per de, em média, 8 lit ros de água por dia, por realizar t oda est a at ividade sob sol fort e do int erior de São Paulo, sob os ef eit os da poeira, da f uligem expelida pela cana queimada, t rajando uma indum ent ária que o prot ege da cana, mas aum ent a sua t emperat ura corporal. (ALVES, 2006, p. 96-97)

Soment e na região de Ribeirão Pret o, a qual incorpora 25 cidades, a maior região produt ora de cana-de-açúcar do Brasil, há cerca de 30.000 cort adores de cana t rabalhando para 40 usinas, dividindo com as máquinas o cort e de mais de 400.000 hect ares de cana. (SILVA; M ARTINS, 2006).

Segundo Silva (2005), a forma de pagament o aos cort adores tem se alterado: at é a década de 1960/1970, o pagament o era por feixes, a conversão met ro/t onelada no

sist ema de 5 ruas surgiu na década de 198072. A quantidade de cana cort ada tem aument ado nas últ imas décadas, na década de 1980, em função das mudanças da cadeia produt iva, esperava-se uma média de 5 ou 6 t oneladas cort adas por homem/dia. Na década de 1990 a média era de 10 t oneladas homem/dia. Em 2009 esperava-se que um homem cort asse entre 12 e 15 t oneladas por dia. Como o pagament o é por produção, os homens são est imulados a cort ar cada vez mais cana e t al pressão os leva à mort e por exaust ão, conforme denúncia do SPM.

Após descrever as condições de t rabalho no eit o, que levaram à mort e 14 t rabalhadores ent re a safras de 2004/2005 e 2006/2007, a aut ora sugere que o t ermo escravidão seja est endido, incorporando a escravidão por dívida e o pagament o por produção.

Para Alves (2006, p. 97), “ (...) O que vai ao cent ro da quest ão, que são as mort es dos t rabalhadores cort adores de cana pelo excesso de t rabalho, é o fim do pagament o por produção.”

Em relação à saúde, registra-se para os moradores da região o aument o de casos de câncer devido ao uso de venenos e da fuligem provocada pela queima da cana, aument o de doenças respirat órias e alérgicas e, para os cort adores, além dessas doenças, somam-se as dores e hérnias na coluna, as câimbras e o uso de drogas, algumas pesadas como o crack e o álcool, para anest esiar o corpo para e depois do t rabalho. Toda a população da região está sujeit a a uma piora das condições de saúde:

Nest e sent ido, Cruz (2006) afirma, após sist emat izações de est udos na área de saúde pública, que há na Região de Ribeirão Pret o um cresciment o que

72 A greve de Guariba de 1984 se opôs a mudança de 5 ruas para 7 ruas. Alguns moradores entrevistados do

Vale participaram da greve e integraram a “ lista negra” das usinas. Esta lista parece existir até hoje, antes da contratação o nome é averiguado, aqueles que reclamam do pagamento junto ao sindicato são incluídos na lista.

varia ent r e 75% a 100% de int ernações por af ecções das vias respirat órias regist radas no SIH/SUS durant e o período das queimadas da cana-de-açúcar. (CRUZ, 2006 apud SILVA; MARTINS, 2006, p. 12)

Segundo M arques (em comunicação pessoal), os alojament os, semelhant es aos acampament os de guerra, sugerem uma sit uação de cont role colet ivo de t rabalhadores e, ao mesmo t empo, uma sit uação de exceção73. Por isso, vive-se como algo transit ório, mesmo que ali permaneçam por cerca de 9 meses por ano.

À t odo esse conjunt o de condições precárias, se opõe a realidade de morada, vida, fest a e t rabalho no Vale. Estar num espaço-t empo “ Ext ra-ordinário” implica em não viver o espaço-t empo ordinário camponês: eles são distint os, complement ares e cont radit órios.

73 Lefebvre (1991), debruçado sobre Ulisses de J. Joyce, aponta que a sorte dos homens é deliberada num

Na comunidade de Zé Gonçalves, quintal com forno para biscoito. A posse foi negociada com o Fazendeiro. Em volt a da casa da avó os filhos e netos constróem suas casas com o dinheiro do corte

Quintal com galinhas e ant ena. O terreiro da casa é limpo logo cedo – tarefa das meninas mais novas

Paisagem do sert ão na seca

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