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MIGUEL PAULISTA

RESERVA DE TRABALHADORES

A grande demanda de mão-de-obra nas lavouras do Sul e Sudeste no início do século XX combinada com a queda nos ní‐ veis de imigração provocou incentivos pa‐ ra que as populações “nortistas” migrassem para o Sul do Brasil. Além dis‐ so, a vertiginosa industrialização de São Paulo carecia de mais e mais trabalhado‐ res para um contínuo aumento de produ‐ ção. Esta indústria necessitava de força produtiva e, pela visão da época, a região Nordeste abrigava as forças produtivas re‐ servas do país.

Os nordestinos foram considerados pelos setores do trabalho como “trabalha‐ dores nômades” do Brasil. A força do tra‐ balho de nordestinos supriu a demanda amazônica na extração da borracha des‐ de o século XIX; antes disso, com o fim do tráfico negreiro, ainda no Império, os es‐ cravos da região foram comprados de seus antigos donos para os cafezais paulistas. No século XX, voltaram para a região Su‐

deste e parte da região Sul como traba‐ lhadores de uma nova economia que es‐ tava se desenvolvendo naquele século, da indústria; além da construção de Brasília no final da década de 1950.

“Entre 1945 e 1964, vivemos os momentos decisivos do processo de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avan‐ çados, que exigiam investi‐ mentos de grande porte; as migrações internas e urbani‐ zação ganham um ritmo ace‐ lerado” (MELLO e NOVAIS, 1998).

No caso analisado, da migração pa‐ ra São Paulo e as regiões mais industria‐ lizadas, que começou no início do século XX e chegou ao auge no meio do século passado, milhões de trabalhadores da re‐ gião “Norte” entraram na corrente migra‐ tória impulsionados pela intensa oferta de empregos da região, para suprir a neces‐ sidade de mão-de-obra nas indústrias e também para agricultura de plantation, nas regiões Sul e Sudeste.

Com a perspectiva de transforma‐ ção na qualidade de vida, em evoluírem na escala social comparada à que possu‐ íam no Nordeste, muitos desses trabalha‐ dores nordestinos saíram de suas terras (que na maioria das vezes não eram de sua propriedade) para ingressar num em‐ prego garantido abrigando-se na casa de amigos ou parentes que já trabalhavam na cidade de São Paulo.

RETIRANTES

Para os trabalhadores rurais, a ci‐ dade era um sinônimo de modernidade, “a vida da cidade atrai e fixa porque ofe‐ rece melhores oportunidades e acena um futuro de progresso individual, mas, tam‐ bém, porque é considerada uma forma su‐

perior de existência. A vida do campo, ao contrário, repele e expulsa” (MELLO E NO‐ VAIS, 1998). Nestes termos, João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais ex‐ plicam o olhar do campo para a cidade, do Nordeste para São Paulo.

A região Nordeste, dominada por latifundiários e coronéis e de extrema de‐ sigualdade, mesmo para uma economia como a brasileira no século XX, represen‐ tava aos olhos do país uma reserva de mão-de-obra disponível e sempre que ha‐ via a necessidade de trabalhadores a ela recorria-se promovendo a migração de sua população vista como “semi-desocupada” para integrar o quadro produtivo nacional.

Esta imagem, a princípio criada pe‐ los próprios coronéis nordestinos para a captação de recursos para a região, iden‐ tificou o Nordeste e o povo que ali vivia como atrasado e, pelo olhar dos empre‐ gadores, descartável. Na indústria, o tra‐ balhador migrante era o primeiro na lista dos possíveis demitidos em caso de difi‐ culdades, além de serem considerados “brigões” demais para os padrões da so‐ ciedade capitalista, chegando a serem ro‐ tulados como “bárbaros”.

A expressão “nordestino”, que de‐ signa todas as pessoas pertencentes aos diversos grupos culturais e étnicos exis‐ tentes na região Nordeste, foi usada de forma preconceituosa para tratar a todas as pessoas e seus grupos oriundos da re‐ gião. Ser nordestino em São Paulo signifi‐ ca ser intruso na cidade construída por imigrantes, vindos principalmente da Itá‐ lia, no imaginário criado para a mais rica cidade brasileira.

A memória constituída de que São Paulo foi construída por imigrantes é um claro sinal de sua ascensão na sociedade paulistana já em meados do século XX. Enquanto os chamados nordestinos ocu‐ pavam o chão da fábrica, os imigrantes possuíam cadeiras nos setores mais valo‐ rizados do emprego: “O imigrante, italia‐ no, sírio, libanês, espanhol, japonês, judeu etc. não poderia deixar de ser o grande vencedor desta luta selvagem pelas no‐

vas posições sociais que a industrializa‐ ção e a urbanização iam criando” (MELLO E NOVAIS, 1998).

Continua o texto:

Mas o migrante rural também se sente um vencedor. Dos que se elevaram até o empre‐ sariado, a maioria “saiu do nada”; pouquíssimos vieram de “profissões liberais”, pou‐ cos de postos de trabalho qualificado. Mas são incontá‐ veis as mulheres, antes mer‐ gulhadas na extrema pobreza do campo, que se tornaram empregadas domésticas, cai‐ xas, manicures, cabeleireiras, enfermeiras, balconistas, atendentes, vendedoras, ope‐ rárias, que passaram a ocupar um sem-número de postos de trabalho de baixa qualifica‐ ção, alguns de qualificação média. Incontáveis são, tam‐ bém, os homens desprezados pela sorte que se converteram em ascensoristas, porteiros, vigias, garçons, manobristas de estacionamento, mecâni‐ cos, motoristas de táxi, até operários de fábrica. Alguns chegam a trabalhadores espe‐ cializados na construção civil, pedreiros, encanadores, pinto‐ res, eletricistas, ou na empre‐ sa industrial, uma minoria às profissões liberais. (MELLO e NOVAIS, 1998)

Ainda sob este prisma, o sertanejo vê na cidade os elementos que compõem a vida moderna e se espanta com tal

avanço e modernidade ao deparar:

O ônibus, o trem, o caminhão, o jeep, o automóvel; o rádio do bar, que toca música, dá notícias, irradia futebol; o consultório do médico, a far‐ mácia, o posto de saúde, tão longes; as ruas iluminadas; o cinema; o modo de vestir das pessoas; a variedade de ali‐ mentos no armazém; a esco‐ la. (MELLO E NOVAIS, 1998) NITRO QUÍMICA

Em 11 de setembro de 1935 era ins‐ talada, no distrito de São Miguel Paulista, na capital de São Paulo, a Companhia Ni‐

tro Química Brasileira, do grupo Votoran‐

tim. A primeira indústria do setor no Brasil, ela nascera de um acordo entre proprietá‐ rios de uma antiga indústria química esta‐ dunidense desativada com os empresários brasileiros que trouxeram mais de 18 mil toneladas de material para o local à beira da recém-inaugurada Estação São Miguel, da linha férrea variante da Central do Bra‐ sil, na várzea do Rio Tietê.

A instalação de tal empresa mar‐ caria profundamente o distrito de São Mi‐ guel Paulista, de origem seiscentista e de pouco povoamento até então, que entra‐ ra na rota do desenvolvimento industrial, abrigando uma indústria de base que na década seguinte se destacaria como uma das mais importantes do Brasil. Não à toa, a região veria seus poucos mais de qua‐ tro mil habitantes, antes da fábrica, salta‐ rem para quarenta mil em 1950, quando a fábrica completara uma década de ple‐ na atividade.

Refundado pela instalação da Companhia Nitro Química Brasileira, em 1935, São Mi‐ guel tornou-se a região de maior crescimento da cidade

nos anos 1950. Embora imer‐ so no padrão periférico de crescimento urbano domi‐ nante na capital paulista nes‐ se período, o bairro distinguia-se de outros distri‐ tos suburbanos, considerados bairros dormitórios. A existên‐ cia de uma grande empresa industrial, empregadora da maior parte da força de traba‐ lho local, criava particularida‐ des na conformação de uma comunidade operária. (FON‐ TES, 2008).

Antonia Sarah Aziz Rocha defen‐ deu, no início da década de 1990, disser‐ tação de mestrado referente ao desenvolvimento do bairro de São Miguel em torno da fábrica, nesse estudo ela ar‐ gumenta o papel da Cia Nitro Química Bra‐ sileira no desenvolvimento de São Miguel Paulista e como as imagens da empresa e do bairro estiveram associadas. Esta in‐ terligação entre a Nitro e o bairro especi‐ ficou São Miguel como núcleo gerador de empregos, mas também deu superpode‐ res ao grupo Votorantim que assumia um caráter paternalista para seus emprega‐ dos e para o bairro.

Os empresários controladores da Nitro Química logo perceberam que para suprir a imensa demanda de mão-de-obra para a fábrica, seria necessária a contra‐ tação de migrantes oriundos do interior, com destaque para o estado de Minas Ge‐ rais e a região Nordeste, a Companhia tor‐ nou-se então uma das grandes incentivadoras às migrações internas no país, associada também pela origem per‐ nambucana do proprietário da empresa, o Sr. José Ermírio de Moraes. Também “Jo‐ sé”, o piauiense José Damasceno de Sou‐ za explica que as benfeitorias da empresa eram, em grande parte, porque “os donos são pernambucanos eles queriam muito

assim ajudar os nordestinos, porque prin‐ cipalmente eles eram de lá do Nordeste”. A imagem paternalista da empre‐ sa fica clara nas entrevistas realizadas com antigos moradores da região, a fábri‐ ca representava para muitos deles a gran‐ de benfeitora do bairro, como ilustra a seguir, em continuidade ao seu depoimen‐ to, o senhor José: “praticamente São Mi‐ guel começou quase da Nitro Química. E tudo evoluiu através da indústria da Nitro Química Brasileira”.

O sucesso da empresa apareceria ainda mais na Segunda Guerra Mundial, neste período ela passa a ser protegida pelo governo brasileiro, como uma das in‐ dústrias fundamentais para o desenvolvi‐ mento do país. Em consequência deste progresso da empresa, São Miguel tornou- se o bairro de maior crescimento em São Paulo na década de 1950, contrastando com o bucolismo até então existente e re‐ presentado pela Capela de São Miguel Ar‐ canjo, marco da presença jesuíta na catequização do grupo indígena Guaianaz, do século XVII.

Fonte de renda da maior parte das famílias deste distrito, a Companhia Nitro Química chegou a empregar um número aproximado de seis mil pessoas; sua par‐ ticipação na vida econômica do bairro era, portanto, essencial.

Na visão de Adelço de Almeida, presidente do Sindicato dos Químicos de São Paulo de 1956 até o golpe militar de 1964, “todo mundo trabalhou na Nitro, o pessoal lá [no bairro] trabalhava na Ni‐ tro”. Apesar de não ter empregado to‐ dos os moradores do bairro, a empresa foi a grande impulsionadora do comér‐ cio local, com o qual manteve por déca‐ das convênios para compras com o desconto em folha de pagamento de seus funcionários, isso era estímulo e se‐ gurança para os comerciantes que se instalaram no bairro.

A fala do pernambucano Zé Barbei‐ ro explica essa relação que se tinha com os trabalhadores da Nitro: “cortava o ca‐

belo o mês todo, mas recebia no dia do pagamento da Nitro, aí vinha aquele mon‐ tante ... mas nunca ninguém deixou de pagar o [corte de] cabelo”.

A participação da empresa no coti‐ diano do bairro era proporcional ao núme‐ ro de empregados que possuía, a preocupação com o tempo livre de seus funcionários motivou a criação de um clu‐ be de regatas, um salão de festas, criação de uma escola em conjunto com o SENAI de São Paulo, além de promover atendi‐ mento médico para seus funcionários. Es‐ tes benefícios ratificavam ainda mais o poderio da empresa sobre o bairro, a Ni‐ tro Química ocupava, por diversas vezes, o papel do Estado em um bairro distante e carente de equipamentos públicos. Pos‐ suindo apenas uma linha telefônica no dis‐ trito, os policiais do bairro se deslocavam até a companhia para realizar chamadas de emergências.

As ações de promoção do bem-es‐ tar da empresa eram eficazes para formar sua boa imagem perante a sociedade, no entanto, ela também produzia efeitos ne‐ gativos para a região. A constante fuma‐ ça de gases tóxicos que saía de suas chaminés era responsável pelos vários ca‐ sos de doenças respiratórias que os fun‐ cionários e moradores do bairro sofriam. A alta rotatividade de funcionários, prin‐ cipalmente nas seções de raiom, uma das mais temíveis, exemplifica a periculosida‐ de encontrada pelos trabalhadores da Ni‐ tro na preservação de sua saúde.

O grupo Votorantim colecionou, ao longo do tempo, diversos processos tra‐ balhistas devido às condições inadequa‐ das de trabalho na Companhia Nitro Química Brasileira. Relata José Damasce‐ no de Souza que “a Nitro tinha muitos pro‐ cessos na justiça do trabalho [os operários] tinham dúvidas sobre os direi‐ tos [então] foram vendo alguns direitos que tinham né para aí começarem a rei‐ vindicação através dos sindicatos”.

A vida em São Miguel Paulista não

se restringia aos limites da fábrica, o bair‐ ro de alto povoamento nordestino sofreu inúmeras mudanças ao longo das déca‐ das de 1950 e 1960. O povoamento se es‐ palhou para as diversas vilas afastadas do centro do bairro e ao longo do tempo a fábrica deixaria de ser a maior emprega‐ dora dos moradores do bairro.

A partir deste momento a maior parte da renda dos habitantes locais será advinda de outras regiões mais desenvol‐ vidas da cidade.