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No que diz respeito (a) à noção de ‘perseguição’, é necessário que a vida, a liberdade ou outros direitos fundamentais do requerente sejam ameaçados por um Estado ou por uma

O CONCEITO DE REFUGIADO NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS INTERNACIONAL, EUROPEU E PORTUGUÊS *

8. No que diz respeito (a) à noção de ‘perseguição’, é necessário que a vida, a liberdade ou outros direitos fundamentais do requerente sejam ameaçados por um Estado ou por uma

entidade equivalente a um Estado. Deste modo, a perseguição divide-se em dois elementos: (i) a existência de uma violação severa, real ou potencial, de direitos fundamentais e (ii) a determinação da entidade responsável pela mesma21. A perseguição tem por base um motivo, que tanto pode ser directamente direccionado para o refugiado, como para um grupo no qual o refugiado se insere, interferindo com a sua esfera individual22.

O conceito pode ser interpretado com apoio em outras convenções internacionais. É relevante, em particular, a definição constante do Estatuto de Roma23: uma “privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da colectividade em causa”. Deverá notar-se, todavia, que neste tratado se prevêem tipos criminais aplicáveis a indivíduos. Tendo em conta que a noção de culpa individual é distinta da que está na base da responsabilidade internacional dos Estados, podemos alargar o referido conceito de ‘perseguição’, dispensando

19 Protocolo de Nova Iorque, de 31 de Janeiro de 1967, Adicional à Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados,

concluída em Genebra em 28 de Julho de 1951. Portugal aderiu a este protocolo através do Decreto n.º 207/75, de 17 de Abril.

20 Cfr. artigo I, § 2.º, do Protocolo de Nova Iorque, de 31 de Janeiro de 1967: “o termo ‘refugiado’ deverá, excepto

em relação à aplicação do parágrafo 3 deste artigo, significar qualquer pessoa que caiba na definição do artigo 1, como se fossem omitidas as palavras ‘como resultado de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951 […]’ e as palavras ‘[…] como resultado de tais acontecimentos’, no artigo 1-A (2)”.

21 Cfr. A. Zimmerman / C. Mahler, sub article 1(A)(2), in A. Zimmerman, (ed.), The 1951 Convention relating to the

status of refugees and its 1967 Protocol: A Commentary, p. 345.

22 Cfr. D. Kugelman, Refugees, in R. Wolfrum (ed.), The Max Planck encyclopedia of public international law, Oxford:

Oxford University Press, 2010, p. 4, disponível em http://goo.gl/U3AfQ7; H. Storey, Persecution: Towards a working

definition, in in V. Chetail / C. Bauloz (eds), Research handbook on internacional law and migration, pp. 459-518.

Sobre o conceito de ‘perseguição’, entre nós, cfr. A. S. Pinto Oliveira, Algumas questões sobre os pressupostos do

reconhecimento de protecção internacional a estrangeiros em Portugal, in M. Rebelo de Sousa et al. (eds.), Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, pp. 53-54.

23 Cfr. artigo 7.º, n.º 2, alínea g), do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adoptado em Roma a 17 de

Julho de 1998 pela Conferência Diplomática reunida de 15 de Junho a 17 de Julho de 1998. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/2002 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2002.

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o carácter “intencional” ou “grave” da privação de direitos fundamentais. Neste caso, a perseguição poderá até, v.g., ser indirecta, por via de actuações ou de omissões da Administração Pública.

Inicialmente, a ‘perseguição’ estava sempre associada aos Estados e a entidades públicas. Actualmente, porém, alguns Estados incluem intervenientes não estatais como potenciais actores de ‘perseguição’24. No entanto, neste caso, exige-se que se verifique falta de protecção por parte do Estado que coloque em risco os direitos fundamentais da pessoa em determinado território, levando-a a procurar refúgio noutro local25.

9. Quanto (b) aos motivos da perseguição, a Convenção de Genebra de 1951 elenca apenas cinco: (i) ‘raça’, (ii) ‘religião’, (iii) ‘nacionalidade’, (iv) ‘grupo social’ e (v) ‘opiniões políticas’. Far- se-á uma breve análise de alguns aspectos destes motivos – que, adiante-se já, nem sempre são de fácil distinção.

A definição de ‘raça’ (i) pode retirar-se da Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, de acordo com a qual a

‘discriminação racial’ visa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, côr, ascendência na origem nacional ou étnica que tenha como objectivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, económico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública26.

A ‘raça’ deve, assim, ser entendida em termos amplos, de modo a incluir grupos étnicos e pessoas com a mesma descendência, normalmente constituindo a minoria de uma determinada população27.

A referência à ‘religião’ (ii) deverá entender-se como referindo-se à crença ou não crença numa identidade ou num modo de vida28. Em determinadas circunstâncias – como em caso,

v.g., de conflitos armados e outras situações de violência envolvendo grupos com diferentes

identidades religiosas –, porém, também se poderá atribuir a perseguição a ‘motivos políticos’, tendo em conta a agenda política associada à identidade religiosa destes grupos29.

24 Como exemplo poderão referir-se a Áustria, França, a Suécia e a Suíça – cfr. W. T. Worster, The evolving definition

of the refugee in contemporary international law, Berkeley Journal of International Law, 30:I, 2012, p. 97.

25 Cfr. D. Kugelman, Refugees, p. 4

26 Cfr. artigo 1.º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,

adoptada e aberta à assinatura e ratificação pela Resolução 2106 (XX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 21 de Dezembro de 1965. Esta convenção foi aprovada para adesão de Portugal pela Lei n.º 7/82, de 29 de Abril; o Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros do depósito da Carta de confirmação e adesão foi publicado no

Diário da República, I Série, n.º 233/82, de 8 de Outubro.

27 Cfr. V. Holzer, The 1951 Refugee Convention and the protection of people fleeing armed conflict and other

situations of violence, division of international protection, UNHCR, PPLA/2012/05, p. 27, disponível em http://goo.gl/mFTKmy.

28 Cfr. ACNUR, Guidelines on international protection: Religion-based refugee claims under article 1a(2) of the 1951

Convention and/or the 1967 Protocol relating to the status of refugees, HCR/GIP/04/06, 2004, parágrafos 4 e 5,

disponível em http://goo.gl/TPOqqh.

29 Cfr. V. Holzer, The 1951 Refugee Convention, p. 29

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A ‘nacionalidade’ (iii) também deve ser objecto de uma interpretação lata, nela se incluindo a pertença a um grupo de determinada cultura, etnia ou identidade linguística. Não deve, pois, ser confundida com o conceito (jurídico) de ‘cidadania’30. Ao mesmo tempo, contudo, sobrepõe-se parcialmente com a perseguição por questões de ‘raça’, visto que ambas se relacionam com as questões étnicas31. Por seu turno, a perseguição por motivos raciais ou de nacionalidade está, não raro, associada igualmente à perseguição por motivos políticos (v). Efectivamente,

[a] coexistência entre dois ou mais grupos nacionais (étnicos, linguísticos) dentro das fronteiras de um Estado pode criar situações de conflito e também situações de perseguição ou de risco de perseguição. Nem sempre será fácil distinguir a perseguição por motivos de nacionalidade da perseguição em razão da opinião política quando um conflito entre grupos nacionais está ligado a movimentos políticos, em particular se o movimento político se identifica com uma “nacionalidade” específica32.

A perseguição por pertença a um ‘grupo social’ (iv) constitui o ponto mais controverso e que foi objecto de maior discussão doutrinária e jurisprudencial. Este ponto é invocado com frequência pelos Estados para a determinação da aplicabilidade do estatuto de refugiado, tendo já sido enquadrados neste âmbito grupos diversificados, tais como, v.g., membros de tribos, indivíduos de zonas ocupadas ilegalmente, mulheres, homossexuais ou pessoas transgénero33. De modo a encontrar uma interpretação mais uniforme para este artigo, tem-se recorrido a convenções internacionais relativas a discriminação – como sejam, para além das já invocadas antes, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres34 ou a Convenção sobre os direitos das crianças35.

A perseguição com fundamento em ‘opiniões políticas’ (v), tradicionalmente, é interpretada como decorrendo da expressão de opiniões relacionadas com o “Estado, o Governo ou assuntos públicos”36. Esta decorre da violação dos direitos fundamentais de liberdade de opinião e expressão, presentes na DUDH37 e no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos38. Poderá referir-se ainda que se tem recorrido essencialmente a duas grandes

30 Sobre a relação entre ‘cidadania’ e ‘nacionalidade’, cfr. J. Pereira da Silva, Direitos de cidadania e direito à

cidadania, Lisboa: ACIME, 2004, pp. 19-24; J. Miranda, Manual, III4, pp. 93-104.

31 Cfr. V. Holzer, The 1951 Refugee Convention, p. 27

32 Cfr. ACNUR, Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado2, 1992,

parágrafo 75.

33 Cfr., com vários exemplos, W. T. Worster, The evolving definition of the refugee in contemporary international

law, pp. 95-96.

34 Adoptada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução n.º 34/180 da Assembleia Geral das Nações

Unidas, de 18 de Dezembro de 1979. Foi aprovada para ratificação pela Lei n.º 23/80, de 26 de Julho, sendo que o Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros de depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral das Nações Unidas foi publicado no Diário da República, I Série, n.º 267/80, de 18 de Novembro.

35 Adoptada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução n.º 44/25 da Assembleia Geral das Nações

Unidas, de 20 de Novembro de 1989. Foi aprovação para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro e o Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros de depósito do instrumento de ratificação foi publicado no Diário da

República, I Série, n.º 248/90, de 26 de Outubro.

36 Cfr. A. Zimmerman / C. Mahler, sub article 1(A)(2), in A. Zimmerman, (ed.), The 1951 Convention relating to the

status of refugees and its 1967 Protocol: A Commentary, p. 421.

37 Cfr. artigo 19.º da DUDH.

38 Cfr. artigo 19.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Este tratado foi adoptado e aberto à

assinatura, ratificação e adesão pela Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de

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estratégias de interpretação desta norma. A primeira consiste em fazer uso da teoria das ‘características protegidas’, analisando-se se um determinado grupo pode ser identificado por características encaradas como imutáveis e uniformes, o que justificaria por isso a sua pertença a determinado grupo. A segunda recorre ao critério da ‘percepção social’, através do qual se considera a existência de características que levem os indivíduos a serem ostracizados pela restante sociedade39.

10. Ao mesmo tempo, a Convenção de Genebra de 1951 exige também que não estejam

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