• Nenhum resultado encontrado

5. O processo de mobilização experimentado no tempo da inserção dos licenciandos

5.1. Retorno à escola básica: lugar intermediário entre aprender e ser professor

Carlo Ginzburg (1999), historiador italiano, ao fazer uma reflexão sobre os princípios que têm orientado as Ciências Humanas, esclarece que práticas de nossos ancestrais já nos ensinavam sobre potencialidades que os olhares nos oferecem. Referindo-se a esse tempo, afirma que caçadores, através de dados aparentemente irrelevantes, buscavam indícios para assim reconstruírem fatos. Atenção nos detalhes, nos vestígios, nos restos, podiam guardar sentidos, sinais, que poderiam clarear a realidade (GINZBURG, 1999). Os procedimentos desses antecessores oferecem pistas para o retorno do estagiário ao contexto em que viveu experiências

por um longo período: o que observar naquele contexto? Como compreender e relações ali vividas?

A escola básica tem papel orientador na formação docente. Na experiência de Mário, chama atenção o sentido que a escola ocupou no seu processo educativo, levando-o a entender que esse contexto oferece muitas maneiras de aprender. A partir de sua experiência escolar, diz:

Mas eu acho que a escola, a escola pública, tem sentido para mim de abrir possibilidades de escolha, mostrar que existem outros caminhos. Mesmo você nascendo dentro de uma família de comerciante, você não tem que seguir aquele caminho. Você pode, conhecendo conteúdo de uma área de exatas, se interessar para calcular uma área, construir uma casa, trabalhar no oceano, numa plataforma, por exemplo. Ou estudar arte, literatura, investigar história, enfim, é meio que (pausa), no sentido de oferecer escolhas (Mário – Licenciatura em Letras – 2015).

Seu relato sobre aprender diversos conhecimentos na escola põe em relevo um desejo que pode estar ancorado nos processos em que a apropriação do saber se dá sob a forma de linguagem: “objetos-saberes, isto é, objetos aos quais um saber está incorporado: livros, monumentos e obras de arte, programas de televisão ‘culturais’ ...”, denominadas por Charlot (2000, p. 66) de “figuras do aprender”.

Este teórico é enfático ao dizer que a noção de mobilização implica necessariamente questão do desejo. Ou seja, enquanto dinâmica interna do sujeito, esse processo conduz a sua entrada em uma atividade, o que requer obrigatoriamente pensar sobre seu desejo. E diz: “o desejo é a mola da mobilização e, portanto, da atividade” (ibid., p. 82).

Outra participante da pesquisa, se refere a seu projeto pessoal como legitimador de sua escolha pela docência. Também se pode identificar, à luz de Charlot (2000), a perspectiva do querer, da vontade. Refiro-me à experiência de Jane. Em suas próprias palavras, durante a entrevista, ao comentar sobre a profissão docente, afirmou:

Minha identificação com a docência foi por causa dos meus períodos escolares mesmo, principalmente no ensino fundamental. Professores que me amavam demais,

com um bom relacionamento; muitos projetos em que eu estava envolvida. Acho que foi por isso que criou esse fascínio, um ambiente onde eu quero permanecer, eu não quero sair dali (Jane – Licenciatura em Geografia – 2014).

Nesse trecho em que rememora seu período escolar, a estudante retoma a questão da afetividade como manifestação própria do trabalho docente, ressaltando ser esse um vínculo importante à mobilização dos alunos para o aprender. Ao entender que no exercício da docência afetividade e cognoscibilidade não se excluem, Freire (1999) destaca que querer bem aos educandos é exigência para ensinar. No entanto, o autor também lembra que a amizade com os alunos não pode interferir no compromisso do professor com a aprendizagem de seus educandos, bem como no exercício de sua autoridade. Considera também que querer bem aos alunos significa disponibilidade à alegria de viver. Ele entende que “É digna de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica para despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido” (ibid., p. 142). Ele insiste em dizer que prática educativa com afetividade não dispensa a formação científica.

Dadas as relações que se estabelecem na prática docente e desconfortos vividos pelo professor na contemporaneidade (inclusão/exclusão, fluidez na demarcação da relação professor aluno, violência no espaço escolar, dentre outras situações), Charlot (2012, 2013) considera que afetividade e autoridade são contradições a serem enfrentadas. Mas considera que a “simpatia antropológica”33

como parte integrante dos fazeres docentes torna possível legitimar a autoridade na experiência pedagógica.

A estudante Jane, ao narrar sua trajetória, traz o aspecto do envolvimento em atividades escolares, que parece refletir a função básica da escola. Nessa sua experiência, manifesta o desejo de permanecer no ambiente escolar, mostrando estar mobilizada para realizar investimento pessoal enquanto escolha profissional:

Minha identificação com a docência foi por causa dos meus períodos escolares mesmo, principalmente no ensino fundamental. [...]. Acho que foi por isso que criou

33 A simpatia antropológica remete a uma forma de relação espontânea da geração adulta para com os mais novos.

esse fascínio, um ambiente onde eu quero permanecer, eu não quero sair dali (Jane – Licenciatura em Geografia – 2014).

O sentimento verbalizado neste excerto, indicia que o pensar e o agir dos alunos são impactados por interações desenvolvidas em sala de aula, tendo potencial para influenciar escolhas futuras, o que reafirma a complexidade dessa relação, exigindo atitudes criadoras, instigadoras, inquietas, curiosas, humildes e persistentes (FREIRE, 1999, p.26).

O depoimento de Jane também assinala para o fato de que vivências no processo de formação são também responsáveis pela constituição da docência. Ao relatar seu forte envolvimento com a profissão, rememora relações afetivas como responsáveis por sua escolha.

Frente a dilemas vividos no contexto escolar, sejam pelas alterações sócio- históricas ou por outros fatores que impactam direta ou indiretamente o campo da educação, identificar neste tempo escolar atitudes que manifestam desejos voltados para o ato de aprender indica que é preciso considerar a contradição como realidade vivenciada na escola, sabendo que seus sujeitos não são agentes passivos diante das condições concretas que se apresentam a eles.

Desapontamentos diante de expectativas de formação básica, que deveriam estar garantidas nos espaços escolares, são sentimentos que muitas vezes marcam a passagem de estudantes pela escola básica, reforçando a produção das desigualdades. Rafaela, ao ser interrogada sobre situações vividas na escola básica que marcaram sua trajetória escolar, responde:

Olha, eu vou te falar que, incrivelmente, tiveram coisas positivas, mas algo negativo também marcou. Eu me lembro que quando eu estava para participar do processo seletivo para entrar no Ensino Médio do antigo CEFET, eu fiquei sem professor de matemática durante seis meses na Escola Estadual onde eu estudava. Aí sabe, quando você tem que correr atrás, você tem que correr por fora (Rafaela – Licenciatura em Química – 2015).

Patrícia e André, trazem na memória experiências que preferem reforçar por outro viés, se comparados à experiência de Rafaela. Porém, o aspecto relacional da sala de aula se sobrepõe a todas as demais experiências escolares destes entrevistados. É o que relatam, ao serem interrogados sobre suas relações com a escola básica:

Eu tive uma relação boa com todas as escolas por onde passei. [...]. Tive alguns professores que talvez não fossem tão bons assim, mas por outro lado tive bons professores. Tive professores que me ensinaram muito e pra mim fez muita diferença (Patrícia – Licenciatura em Ciências da Natureza – 2014).

E André assim nos conta:

A escola básica para mim, pode até parecer aquele papo piegas, mas para mim ela é realmente a base do ensino. É o mínimo que as pessoas podem ter, se a gente levar em consideração que na escola passamos um longo período de nossas vidas. Então você cria vínculos com a cultura da escola, com os professores, com as ideias da escola. Isso tem um impacto muito grande na vida do aluno. A escola básica em si forma a vida do aluno (André – Licenciatura em Biologia – 2015).

A fala destes entrevistados, eu fiquei sem professor de matemática durante

seis meses na Escola Estadual onde eu estudava (Rafaela); tive professores que me ensinaram muito e pra mim fez muita diferença (Patrícia); é o mínimo que as pessoas podem ter, se a gente levar em consideração que na escola passamos um longo período de nossas vidas (André), aponta para as incertezas vividas pelos atores da

escola, fator que em maior ou menor grau acaba por influenciar a experiência do estágio. Os sentidos dessas interlocuções constroem bases para compreensões do espaço profissional em que esses sujeitos atuarão, ou seja, na centralidade dessas memórias, as potencialidades deste tempo formativo vão se (re)configurando, sem se prender a elas, numa fluidez que possibilita a construção de novos caminhos.