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RITUALIZAÇÃO DISCURSIVA

No documento INÁCIO RODRIGUES DE OLIVEIRA (páginas 104-110)

Transcrição de causo cont ado por Geraldo Tart aruga São Luiz do Parait inga, SP

RITUALIZAÇÃO DISCURSIVA

E a porca dos sete leitão, at é uns t em po at rás, m orava o Vardí Veloso ali no art o, e ele dizia que essa porca exist ia ali ainda. Porque ele fez um a casinha logo pert o da onde t inha essa um a aqui. Agora, não existe casaiada lá, foi feit a out ra casa nem tem o lugar m ais. Mas esse Vardí Veloso, ele m orava num ... Morava li pert o dessa casinha. E ele dizia que t oda sext a- feira, quart a- feira, beirando m eia noit e, assim em t em po de calor, né, ele ficava pra fora assim pra refrescá, dent ro de casa era m uit o quent e, né, ficava pra fora. Ent ão, ele via a porca descera est rada assim . Ele via descé. Mas quando ele via descé, ele ficava com m edo quando ela vort asse a... Porque ele já conhecia, né ele sabia da história, ent ão ele ficava com m edo, quando ela... Dizia: Agora, ela vai vort á, vai pegá eu aqui, vai vê eu aqui. Pra descé ela não viu eu. Daí, ent rava pra dent ro, fechava a port a e não via subir. Quer dizer que ela chegava pelo cruzeiro, fazia o rum o e vort ava. Mesm o com as casaiada ali. Então, essa porca nasceu dessa m uié e tá aí.

A seqüência é um a síntese da hist ória com algum as am pliações: além de seu testem unho de narrador de causos, o enunciador inclui referência a um a pessoa conhecida na com unidade, nom eada, que confirm a ter vivido parte dessa história. Seu t est em unho apresenta det alhes realist as do t em po cronológico ( sexta feira, quarta feira, beirando

m eia noit e) , do cont exto da época do ano (t em po de calor, refrescá, dent ro da casa era quente) das sensações experim entadas (ficava com m edo, vai pegá eu, vai vê eu aqui, daí entrava pra dentro e fechava a porta), que confirm am a veracidade do acont ecido.

O dizer da t est em unha, Vardí Veloso, cont ext ualiza, pela transcrição do relat o pessoal, a ritualização do causo, apresentando- o com o o resultado da m anipulação act ancial de um enunciador cuj o obj etivo é fazer- fazer o enunciat ário crer em at ores, espaços e tem pos que crist alizam os valores e anseios do caipira.

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FAZER ARGUMENTATI VO

O causo está m arcado pela presença irrefutável da oralidade, que pode assegurar a m arca de um enunciador reconhecido pelo grupo e pela função do contar, confirm ando seu discurso configurado em um ethos, cuj a t ext ualidade se orient a pelo carát er m oderado e franco ( arethé) .

A porca de sete leit ão é um a porca branca e sete leit ãozinho branco que nem algodão. Essa porca é um a m ulher que m orava lá no alt o do cruzeiro, lá no grot ão. Ent ão, essa m ulher, quando ela m orava lá num a casinha de barrot e, um a casinha aqui bem ant iga ela m orava lá, esse alt o cruzeiro não t inha casa nenhum a, era só a dela lá naquele cartão, e m ais um as duas casinha aqui em baixo e só.

O enunciador apresenta o causo no present e narrat ivo, alternando o m ovim ento t em poral de acordo com o processo de transform ação zoom órfica. A espacialidade é delim itada pelo grotão , lugar isolado, distante, que perm it e am pliar a dim ensão disfórica que envolve os suj eit os.

O espaço é determ inante para a seqüência narrativa, no ant es da transform ação e suas reconfigurações posteriores. A casa é o lugar da confirm ação do pecado, o lócus do prazer, m odalizado no poder e no fazer num prim eiro m om ent o, que se ressem antiza no lócus do acolher, m odalizado num crer, no segundo. A praça é sem antizada com o lugar da destruição e a cruz, da redenção, exprim indo de m odo afetivo, para não dizer sagrado, os laços ent re indivíduos e o grupo social. Segundo Reboul ( 1991: 178) os nexos sim bólicos são outra est rut ura do real, fundam ent ada na pertinência, m as de ordem puram ente social e cultural, pois os sím bolos m udam segundo o m eio.

Daqui um pouco apareceu uns curioso aqui em São Luis e os curioso sem pre gost ava de sent á no pé da cruz lá. Ent ão, chegou um dia, eles viram a porca chegá, chegou, fez um rosnado e vort ou. Daí, eles foram at rás. Ah, vam o at rás pra nós vê essa porca de quem que é, vam o t ocá ela. Pensando que era de algum a fazenda lá nos grot ão que escapou, né. Ent ão, foi at rás dela. Daí, chegando na casa dessa m ulher, a porca ent rô naquela casinha, que j á tava caindo, j á tava m uito velha a casinha, j á tinha passado m uitos ano. E a porca ent rô dent ro da casinha com os porcaiadinho t udo, ent rou lá dent ro. Daí, a rapaziada falou assim : Ah, vam o ent rá lá e vam o pegá ela. Ent raram . Quando ent raram dent ro da casinha não t inha nada. Tava t udo em silêncio lá dent ro. Daí, eles viram que não t inha nada, eles falou: Assom bração, né? Saíram correndo. Saíram correndo e aquela notícia correu, né, porque eles viram o que aconteceu.

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As figuras dos antagonistas são colocadas com o inst rum ento de sucessão dos fatos para dem onstrar o valor dos efeit os que a transform ação causou, reforçando o ideário do m edo com o direcionam ento da vontade do enunciador em persuadir o auditório da j ust eza de suas afirm ações, confirm ando- lhe a aut oridade discursiva.

O recurso seguinte é apontar um suj eito reconhecido pela com unidade, com o a figura de exem plo, com o t est em unha, aquele que está ao seu lado, não apenas na m em ória do grupo, m as t am bém em sua vivência.

( ...) m orava o Vardí Veloso ali no art o / / e ele dizia que essa porca exist ia ali ainda.

Para Perelm an ( 1988: 366) , as apresentações e relatos individuais revelam que os indivíduos influem sobre a im agem que t em os dos grupos

aos quais pertencem e, inversam ent e, o que acham os do grupo nos predispõe a certa im agem daqueles que dele fazem parte . Além de ser

elem ent o de carát er perorat ivo com o elo de confirm ação da hist ória. O traço argum entat ivo m ais recorrent e é cent rado na experiência, pois a pessoa e seus at os servem com o contextos de influência, dão ao discurso um direcionam ento, um conceito de valor, um a opinião sobre a condut a reprovada pelo grupo social, ou sej a, um j uízo.

As escolhas sintagm áticas revelam o castigo m etam órfico com o m odo de controlar e dar sent ido às ligações sim bólicas, pois o processo de zoom orfização rat ifica o porquê da t ransform ação.

Ao fundam entar a escolha tem ática, o enunciador apresenta os atores da ação e seus papéis tem áticos: Porca e leit ões - que at uam em busca da regeneração, dent ro de um a relação intersubj etiva, na lógica de valores do grupo, cuj a intenção é indicar neste paradigm a conflituoso, cent rado na m etam orfose com o processo de desum anização, os conect ores isotópicos revelados pelas funções de devorar, destruir. Assim , no processo de transfiguração tem os um a sanção disfórica, represent ada

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na superlat ivação da perda do corpo para valorização do m edo. A presença do não- racional dinam iza as paixões.

A superação do m edo se sustenta por um a ligação sim bólica reconhecível no im aginário do grupo por elem entos figurativos, sobretudo a cruz, que aqui exerce a função sim bólica de proteção contra transform ação, ou at aque aos transform ados ( fantasm a) , com o elem ento regenerador e eufem izant e da m ort e, prot et or do m edo, criando a ret órica da m et am oforse ou da t ransform ação da nat ureza.

O eixo sintagm ático m arca a transform ação da m ulher que sai da figura da prostitut a e entra em desacordo com o protótipo de m ãe. O paradigm át ico t raça com o obj et o do desej o a regeneração, a volt a para casa com os filhos, reestrut urando o papel social de m ãe. Constituindo o j ogo de represent ações e papéis sociais que o audit ório deve ( re)const ruir para o quadro social da argum entação, sua finalidade prática aponta para um a possível conversão.

DESVENDAR O I MAGI NÁRI O

O terror da m orte devorant e apresenta- se, nos regim es descritos por Durand, com o a im agem m ais disfórica do sim bolism o do Mal, um a constante em inúm eras obras e cult uras, confirm ando que os anseios e angúst ias, provocados por esse Mal, são a m aior m ot ivação para a criação da narrat ividade do Hom em .

Neste causo, o Mal é represent ado pela m acroim agen t eriom orfa de um a porca e seus set e filhot es, acom panhada da m acroim agen cat am orfa, na figura de um a m ulher considerada pelo senso com um com o "decaída". A im agem da prostitut a abre o causo pela notificação de seu castigo: é m et am orfoseada em porca.

As duas m acroim agens devem - se ao fato de o causo desenvolver- se em seqüências segundo a dinâm ica das im agens do Regim e Crepuscular, no qual o suj eit o alterna as atividades próprias da em otividade ( regim e not urno) com a racionalidade ( regim e diurno) . Assim , no prim eiro

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m om ent o, a m ulher recebe hom ens em casa para o com ércio sexual e é descrita com o m ãe que tem sucessivam ente filhos e os m ata ao nascer, confirm ando sua est rut ura not urna e im agem duplam ente disfórica ( com ércio sexual e m ort e dos filhos) .

Castigada, m et am orfoseada em porca branca e acom panhada de seus set e filhos, t orna- se agressiva, at aca e dest rói t udo, configurando- se com o im agem diurna. Após a construção do cruzeiro, por ordem do padre, lim it a suas at ividades ao t erreno no qual lhe foi perm itido viver. Nele conserva sua casa, im agem do regim e not urno, m as não deixa de assustar os hom ens, atividade do regim e diurno. A observância de regras e det erm inações espaciais e actanciais em períodos, no quais alterna um regim e por out ro, com prova o regim e crepuscular.

A im posição de suas lim itações, assim com o a definição de sua identidade fantást ica, ocorrem som ente após a construção do cruzeiro. O sím bolo cristão da cruz, form ado pela hast e vertical de um a árvore e cortada por out ra em sent ido horizontal, representa a totalização espacial, pois configura a união dos cont rários. A verticalidade da árvore e suas ram ificações constituem o sím bolo do progresso, com o confirm a seu em prego na heráldica e tradições religiosas ou culturais de inúm eros povos. A árvore art icula- se t am bém com o fogo, quando, por fricção sobre superfície plana e dura, origina esse fogo.

O sim bolism o do progresso é a principal estrutura do regim e crepuscular, pois com bina o m ovim ento vertical e poder (diurno) com o horizont al da hom ogeneidade e conj unção ( not urno), possibilitando tanto à cruz com o ao fogo tornarem - se forças que ora destroem ( queim ando e aniquilando) , ora renovam ( purificando e exorcizando) .

O enunciador estabelece um sistem a a ser seguido tant o pela porca com o pelos habitant es do lugar, im pedindo que um faça m al ao outro, det erm inando que convivam em seus espaços, o que const it ui um processo const ante e virt ualm ente eufem izador do Mal. No im aginário do cont ador, porém , o castigo apresenta algum as part icularidades no

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j ulgam ent o da culpa da m ulher em relação ao fazer do hom em : todo o dia

ela tinha que colhê hom em dentro de casa. Os hom e ia tudo lá. A m ulher

foi castigada por essa atividade que lhe era im post a, por um a presença m asculina prat icam ente infligida, o que m otivou, na m etam orfose, a ela e seus filhos assum irem a form a de anim al branco. Jean Chevalier & Alain Gheerbrant ( 1982: 125) afirm am :

Com o sua cont racor, o negro, o branco pode se sit uar nos dois ext rem os da gam a crom át ica. Absolut o e não t endo outras variações que as que vão da m at ização ao abrilhant am ent o, significa t ant o a ausência com o a som a das cores. Coloca-se, assim , t ant o no com eço com o no final da vida diurna e do m undo m anifest ado, o que lhe confere um valor ideal. Mas a finalização da vida o m om ent o da m orte é t am bém um m om ent o t ransit ório, pont o de j unção do visível e do invisível, port ant o, um a out ra part ida. O branco candidus é a cor do candidat o, ist o é, daquele que vai m udar de condição. [ ...] É cor de passagem, no sent ido de quem fala de rit o de passagem : é j ust am ent e a cor privilegiada desses rit os pelos quais são operadas as m ut ações do ser, segundo o esquem a clássico de toda a iniciação: m orte e renascim ento ( negrito dos aut ores) .

A visão do regim e crepuscular desculpabiliza a m ulher/ porca pela eufem ização, porque o enunciador, reconhecendo que sua vida foi um

dever- fazer im post o pelo hom em , torna sua m et am orfose um a sit uação

de passagem . A zoom orfização é um recurso para a construção de arquét ipos que, eufem izando a figura, auxilia na ( re) geração dos valores e crenças do grupo. O sím bolo cruz t am bém , tornando- se m arca de reorient ação, indica a passagem das alm as para Deus.

A porca e os filhos, conservando sua casa, esconderij o m ágico que os prot ege dos hom ens curiosos, conservam sua ident idade nessa passagem , j á que a "casa é sem pre a im agem da intim idade repousante, sej a tem plo, palácio ou choupana ( Durand, 1960: 260). O núm ero sete (7 leitões) m arca tam bém a t ransitividade, pois "é bem universalm ente o sím bolo de um a tot alidade, m as de um a totalidade em m ovim ent o ou de um dinam ism o t ot al" ( Chevalier & Gheerbrant , op. cit .: 861) .

O enunciador finaliza o causo, privilegiando o regim e crepuscular pelo m esm o procedim ent o: desdobra- se em out ro para repetir, abrasileirada e sint eticam ent e, a infindável e com plexa quest ão da busca de Eros e Tánatos.

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