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Capítulo 4 Estudo de caso: Romaria do Bom Despacho em Vila Verde

4.2 Romaria de Nossa Senhora do Bom Despacho

A Romaria do Bom Despacho existe hoje em meio a um grande número de romarias, festas, arraiais, feiras e outras expressões das culturas presentes na região do Minho. Com o nome assim abreviado, não somente para facilitar a escrita e a leitura, mas também porque é assim quase sempre designada por seus participantes,

organizadores e veículos de comunicação.

A Romaria do Bom Despacho refere-se portanto à Romaria de Nossa Senhora do Bom despacho, que acontece anualmente na freguesia de Cervães e proximidades. Trata-se de uma procissão religiosa relacionada com a devoção à Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo, a qual pode possuir muitos epítetos, nesse caso é do Bom despacho. Essa prática devocional tem por seu sentido mais originário o pedido de interceção em casos de necessidade, ou pelo agradecimento (pagamento) pelo pedido realizado. Em suas primeiras formas o nome aparecia como “bom despacho das almas”, o que sugere sua atuação inclusive nos casos de morte. Nestes casos a necessidade é de intervenção de Nossa Senhora junto a Deus para garantir o acolhimento da alma da pessoa que morre.

A Romaria é hoje uma expressão significativa da comunidade local. Com muitos anos de história essa expressão tem persistido com muitos elementos ligados a sua tradição e enraizamento histórico. E, também, tem sido adaptada e adequada às transformações sociais da realidade onde ocorre.

Esta romaria destaca-se por sua antiguidade e força simbólica, ligada a devoção religiosa e, também, ao sentimento de pertencimento das comunidades locais. Apesar disso, o seu destaque pode ser visto como limitado dentre tantas outras expressões, por vezes mais antigas, ou com a participação de um número maior de pessoas, ou mais “espetaculares”, ou mais conhecidas e divulgadas etc. Pois, ela enquadra-se numa gama

54 de fenómenos que são marcantes em toda a região e em todo o país. Por isso, o destaque de uma ou outra romaria se dá muitas vezes por seu elemento mais único ou incomum, ou por sua grandeza em termos de popularidade e elementos alegóricos.

Portanto, não se trata de relevância em relação as outras romarias, ou por possuir peculiaridades exóticas ou mesmo por ter a participação de multidões. É,

contrariamente, pela sua simplicidade, suas características comuns com outras

expressões e sua forma atual que destacou a romaria do bom despacho para ser o escopo deste trabalho.

A romaria acontece no Santuário de Nossa Senhora do Bom Despacho e localidades próximas. O Santuário foi construído no século XVII e sabe-se que foi celebrada a primeira missa no ano de 1644 (Vila Verde, website).A romaria foi foco de alguns estudos e relatos históricos, porém nos poucos documentos que existem é

possivel saber que a sua história é ligada as origens do santuário onde ocorre. Como lugar de peregrinações e de cumprimento de promessas.

O Santuário de Nossa Senhora do Bom Despacho, também referido apenas como Santuário do Bom Despacho, localiza-se na freguesia de Cervães, concelho (município) de Vila Verde, distrito de Braga, região do Minho, em Portugal. Está classificado como Monumento de Interesse Público pelo DGPC desde dezembro de 2012. Com a

designação “Santuário do Bom Despacho, constituído pela Igreja, a sacristia, o edifício anexo, as capelas dos Passos e o espaço com forma retangular onde existe uma via-sacra e oliveiras” (Direção-Geral de Património Cultural – DGPC, 2017).

A edificação tem estilo barroco, com elementos comuns a outras igrejas da região. A sua planta é rectangular, possui dois campanários e o altar fica situado entre duas grandes rochas. Essas rochas constituem uma pequena gruta, fato que contribuiu com a escolha do lugar. Ou seja, estão visíveis no altar os penedos da primeira capela construída no local, detrás da estrutura com a imagem de Nossa Senhora do Bom Despacho, que protege a entrada da gruta.

Em sua descrição de imóvel classificado aparece:

“A importância e muita frequência do Santuário podem ser atestadas pelas dimensões do templo e do terreiro que lhe é fronteiro, onde se incluem uma fonte, as dependências de apoio aos peregrinos, as cruzes da Via Sacra, o cruzeiro e as capelas da Paixão, adossadas às fachadas Norte e Oeste da igreja, e a do Calvário à direita. No topo do longo adro, a igreja ergue-se sobre uma plataforma elevada, a que se

55 acede por uma pequena escadaria, em frente da porta principal.” (DGPC)

O fundador do santuário. O fundador do santuário foi um homem chamado

João da Cruz, ermitão, natural da freguesia de Bela, em Monção. Os relatos históricos e as referências da origem do santuario dizem que João da Cruz estava gravemente doente e por isso pediu a Deus para ser curado. Assim, prometeu erguer um altar dedicado à Virgem, caso recebesse a cura divina. Após o êxito contra a doença utilizando as esmolas que ia recebendo, deu início à construção do santuário (DGPC).

Trajetos. A Romaria costuma incluir a participação de freguesias circundantes,

a cada ano é selecionada uma localidade próxima para receber a imagem de Nossa Senhora do Bom Despacho e, desse modo, também acompanharem a Romaria de retorno da imagem ao santuário.

Portanto, faz parte das suas tradições a seleção do lugar, da própria freguesia ou de freguesias vizinhas, que irão participar da Romaria no ano determinado. Seja ela do concelho de Vila Verde ou Barcelos. Isso é algo que envolve formas de disputa pela participação e, consequentemente, o interesse de realizar os elementos que compoem a romaria da melhor forma possível. Ou seja, fazer o “arruado”, o conjunto de arcos e o tapete mais bonito.

Depois de selecionado o lugar para determinado ano demarca-se o início da procissão que no dia da Romaria vai terminar no Santuário de Nossa Senhora do Bom Despacho. Na véspera, ou alguns dias antes, a imagem da Senhora é levada também de forma solene para o lugar escolhido, e deste lugar partem as pessoas a levarem a imagem da Senhora do Bom Despacho de volta para o santuário.

Data da romaria. Existiram alterações das datas de ocorrência da Romaria. Ela

começou por ser realizada em março (até o séc. XVIII), depois foi alterada para o 1º domingo do mês de julho. Essa alteração, assim como as outras se deu pelo interesse de evitar datas similares com outras festas e celebrações. Sabe-se que já foi estabelecida para ocorrer no 3º domingo de junho. Atualmente ocorre no último domingo de maio. A alteração mais recente foi motivada, também, para não coincidir com um encontro de liderenças religiosas que ocorre no santuário do Sameiro, próximo à Braga.

O ritual da romaria inclui a realização da procissão e da missa campal. Elementos que constumavam fazer parte dessas tradições, mas que hoje estão a

56 ser melhor estudado e refletido pelas políticas patrimóniais. Mas não trataremos dele por hora.

No dia da procissão principal, ou seja, na data quando é realizada a caminhada dos participantes até o santuário do Bom Despacho, tem-se um conjunto de expressões e tradições que são seguidas.

Muitos desses elmentos não são únicos dessa romaria, mas sim, formas e variações de expressão de devoção comuns a muitos contextos religiosos. Por exemplo as colchas e tapetes colocados nas janelas, para expressar devoção, alegria, festa e respeito pela passagem da Virgem e da romaria. Adultos e crianças atiram flores na passagem do andor. Diversos lugares constroem arcos decorados nas ruas onde vai passar a procissão. E, a elaboração de tapetes de flores no chão, que enfeitam o caminho por onde passa a romaria, e que no caso da romaria do Bom Despacho, tem grande destaque.

Ou seja, existe grande participação da população na realização dessa expressão religiosa, cultural e identitária da Romaria. Mesmo que muitos não participem

diretamente como organizadores, são estes que contribuem por iniciativa própria a realizar elementos importantes da caracterização da Romaria.

O culto a Nossa Senhora do Bom Despacho. O culto dedicado a Maria (Nossa

Senhora, Virgem), tanto litúrgico como privado, faz parte dos preceitos católicos. Pois, diz-se que ele não ofusca ou diminui o culto de adoração que é prestado à Jesus Cristo (Verbo Encarnado), ao Pai e ao Espírito Santo, elementos definidores da teologia católica.

Além de Cervães, o culto a N. S. Do Bom Despacho acontece em Maia, em Gominhães, em Campanário (Ilha da Madeira), em Almagreira (Ilha de Santa Maria) e no concelho de Macedo de Cavaleiros. No Brasil existe uma Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho, localizado no município de Bom Despacho, no estado de Minas Gerais.

A romaria do Bom Despacho no ano de 2017. Como foi dito anteriormente, a

Romaria do Bom Despacho ocorre tradicionalmente todos os anos em Vila Verde, Portugal. Vila Verde é um concelho vizinho ao de Braga, onde residimos, eu e o orientador deste trabalho, o Professor Jean-Yves Durand.

O meu principal interesse na romaria era o de realizar a pesquisa para o trabalho de mestrado. O Professor Jean-Yves estava presente também como pesquisador, porém, estava como investigador para a realização do Inventário das Romarias em Vila Verde.

57 Pois, com o intuito de fazer parte do inventário nacional do projecto romarias do Minho, a Câmara Municipal de Vila Verde firmou parcerias e realizou a contratação do

professor para a realização da pesquisa.

Portanto, para irmos para a romaria combinámos de nos encontrar 15 minutos antes do horário que queríamos chegar lá. Pois, de carro, não se leva mais do que isso para chegar no local da romaria.

Como já havia sido definido e divulgado, no ano de 2017 foi selecionada a Igreja Matriz de Vila do Prado para receber a imagem da Nossa Senhora do Bom Despacho. E de lá, no dia 28 de maio sairia a romaria rumo ao santuário do Bom despacho.

Chegámos nos momentos finais da Eucaristia, pouco antes do início da romaria. Era pouco antes das 8h e 30 minutos. As pessoas se espalhavam pelos arredores e dentro da igreja. Chegavam as pessoas a pé e de carro, não havia autocarros específicos para romeiros, aqueles que vieram de autocarro eu não os vi chegar. Já havia muitos carros estacionados, mas não foi difícil parar o veículo um pouco mais distante da igreja.

As pessoas pareciam ser todas locais, mas eu tinha as minhas dúvidas. Afinal, eu, que sou estrangeiro, também estava lá, e não me parecia muito óbvio o que me distinguia das pessoas de lá. Isso, claro, antes de abrir a boca e logo ser reconhecido com um “és brasileiro”. Ainda assim, eram na maior parte, portugueses, do Minho, de Vila Verde e residentes das proximidades de Cervães. Afinal, todos com quem falei eram de fato moradores de Cervães, Vila do Prado ou Cabanelas. Todas essas freguesias estavam contempladas na romaria desse ano, tanto com representantes na composição da procissão como também na passagem do percurso que cumpriria.

Chamou a atenção o grande número de jovens, mas a maior parte deles faziam parte de grupos de Escoteiros que davam apoio e participavam de toda a romaria. Afinal, as pessoas ali presentes eram homens e mulheres de muitas idades, um grupo bastante diversificado. Ainda que seja uma diversidade limitada a própria diversidade demográfica da região.

Os estandartes seguiam os padres que davam início a comitiva que caminhava. Havia um ordenamento das partes que compunham a procissão, após passarem todos estandartes, por último apareceu a imagem da Senhora que saiu da igreja carregada em um andor de quatro apoios, ornado com flores. Mulheres jogavam pétalas de flores na direção da N.S do Bom Despacho.

58 A saída pareceu um momento bastante significativo. Algo entre a expectativa da caminhada e o fim da expectativa do início da romaria. Desse modo, o começo da romaria trouxe aos presentes a confirmação da continuidade de uma longa tradição ao mesmo tempo que davam sensações de estar ali, a viver presencialmente aqueles instantes.

Quando cheguei, esperava ansiosamente pelos tapetes de flores. Não me

decepcionei, lá estavam as flores que ornavam o chão por onde passaria a romaria. Mas ainda sim me surpreendi. Me perguntava como seria a relação entre as pessoas que passam e as flores no chão. Ou como seria a largura do tapete em relação ao seu comprimento.

Na porta da igreja era um tapete largo, com símbolos, como uma lua e um coração. Mais adiante, na rua, o tapete era estreito, algo entre trinta e quarenta

centímetros. Afinal, fazia todo o sentido. Pois, esse tapete iria se estender por cerca de mais três quilômetros.

Portanto, o tapete é na maior parte do trajeto uma faixa que fica à direita da passagem da romaria. Ele não é perfeitamente contínuo, pois existem alguns pontos onde não foi realizado, mas ainda assim é impressionante a sua continuidade, ou seja, por todo o trajeto se vê os enfeites para a passagem da romaria. Em frente as casas, estendiam-se os tapetes em uma sequência que unia o trabalho artístico de diferentes pessoas. Cada casa realizava seu próprio tapete, algumas tinham ainda mais elementos, flores, balões, enfeites no portão. Em algumas delas as próprias pessoas da família ficavam à espera da passagem da romaria e da Senhora na frente da casa.

Enquanto a peregrinação seguia, carros da guarda de trânsito organizavam as vias. A romaria ocupava somente uma faixa da via, e o trafego de veículos seguia acontecendo de modo alternado. Não houveram incidentes problemáticos. Apesar de que ouvi dizerem que a Procissão de Velas, que havia acontecido no dia 19 do mesmo mês, teve que ser feita com maiores cuidados com o trânsito. Isso por ser feita à noite e ter a participação de menos pessoas, essa procissão que levou a Senhora para a Igreja de Vila do Prado foi realizada por caminhos alternativos. E desse modo, procuraou evitar acidentes com os veículos.

Acompanhámos a romaria por um trecho e depois fomos de carro para o

santuário do Bom Despacho. Dessa forma seria possível acompanhar toda a chagada da romaria e ainda observar como se davam os preparativos para a sua chegada.

59 O tapete seguia como uma faixa lateral durante todo o caminho, pois mesmo as descontinuidades não eram grandes o suficiente para se perder de vista o tapete.

Já em frente ao santuário o tapete se alarga consideravelmente. Em pontos chega a ter mais de quatro metros, mas na maior parte tem a largura de pouco mais de um metro. O efeito do tapete de flores na área em frente a igreja é bonito. Me informaram que um mesmo artista é responsável pela criação dos padrões dos tapetes nos últimos anos. Esse artista, que é residente das proximidades, faz os desenhos e outras pessoas o ajudam a preencher com flores e outros elementos.

Antes da chegada da romaria poucas pessoas também chegavam na frente da igreja. Havia barracas que vendiam doces e outros tipos de comida. Também chamavam a atenção a venda de brinquedos voltados para o gosto das crianças. Inclusive alguns desses brinquedos eram de armas de plástico, o que contrastava com uma certa visão de que eu tinha da solenidade. De forma semelhante, me surpreendeu ver um grupo de senhores que aguardavam a chegada da romaria com uma garrafa de vinho do porto ao alcance das mãos.

Logo em frente as escadas da igreja ficava o palco montado para a celebração da missa e outras atividades que iriam ocorrer. Nesse palco estavam montados microfones e equipamentos de som.

Havia, durante o trajeto e na área da chegada da romaria uma equipe de filmagem e fotografia. Eram profissionais de uma empresa de Cervães chamada Cerfoto. Um dos fotógrafos, que é de lá, falou sobre como foi crescer na localidade e que conhecia bem as pessoas daquela região. Ele nos disse também, com brilho nos olhos, que tem na romaria um motivo para contar histórias de como ela acontecia nos anos que se passaram. Que para ele estar ali era estar rodeado por pessoas conhecidas, pois eram moradores queridos do lugar onde ele vive.

Chamou a minha atenção que essa equipe de filmagens estivesse a trabalhar na romaria. Quando lhes perguntei descobri que foi uma iniciativa da própria empresa. E que as imagens por eles captadas estavam sendo transmitidas em tempo real na internet.

Com a chegada da romaria o largo espaço em frente a igreja foi preenchido pelas pessoas. Nesse momento ainda não se pisavam nos tapetes. Isso só ocorreu ao final da missa, durante o trajeto que levou a imagem de Sanhora de volta para o interior da igreja.

60 Durante a solenidade, com a fala dos padres, as pessoas escutavam atentas. Algumas traziam suas próprias cadeiras, outras procuravam algum outro lugar melhor para sentar.

Foi possível ver a devoção religiosa que envolvida na romaria. Não era algo excessivamente dramático, também não era algo “espetacularizado”. Pareceu-me uma forma simples de ritual religioso, que trazia elementos de devoção e religiosidade e também fortes valores comunitários e integração social.

Um aprofundamento deste trabalho teria de se aproximar mais da vida de algumas pessoas, para dessa forma, quem sabe, alcançar uma descrição mais

pormenorizada da devoção e dos devotos. E como a Nossa Senhora do Bom Despacho está presente na vida e no cotidiano dessas pessoas.

Nesse sentido, também seria interessante investigar as origens dessas pessoas. Onde nasceram, cresceram e as atividades que exercem. Assim, seria possível alcançar uma forma de construir uma cartografia social e afetiva da região. Pois, somente essas pessoas com largas experiências no local podem informar lugares e caminhos

significativos para a comunidade.

Por último, importa dizer que durante a realização da pesquisa para esse trabalho foram realizadas visitas e entrevistas relativas também à outra romaria de Vila Verde, a Romaria de Nossa Senhora do Alívio. Foi possível perceber nesse processo que muitos dos organizadores e dos participantes das romarias ainda desconhecem o projecto de inventariação. Isso ficou claro no dia que encontramos arcipreste do Santuário de N.S. do Alívio. Nesse dia ele se negou a conversar com os pesquisadores, pois, considerava que não tinha interesse em “interferências” da Unesco no Santuário. Depois de melhor explicada a situação ele concedeu a entrevista, e explicou que não sabia que se tratava de uma pesquisa de Património Cultural Imaterial das romarias. Além disso, durante a entrevista foi possível informar o arcipreste sobre as linhas gerais de Património da Unesco. Desse modo, foi possível sanar o mal entendido sobre as questões patrimoniais e informar que não se tratavam de “interferências”. Portanto, essa situação serve como um exemplo de como o projecto de inventariação das romarias não é do conhecimento de organizadores e participantes. Além disso, mesmo os que sabem da existência do projecto não necessariamente sabem no que ele implica.

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4.3 Outras romarias e festas – Um universo multifacetado, ou, o que nos une e