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Capítulo 3 – As romarias e o Minho: Fenómenos culturais

3.3 Romarias no Minho

“Romarias no Minho” é uma forma de falar sobre um conjunto complexo de fenómenos culturais. Se, ao partir somente da ideia de romarias já se tem um universo multifacetado e difuso, isso se torna ainda mais denso e diverso quando essa idéia é alargada para incluir também festas, feiras, procissões, e outras expressões culturais que guardam semelhanças com estas. É um conceito imenso, denso, profundo, complexo, entre outros termos semelhantes, o que se pode referenciar pelos termos “romarias e festas no Minho”.

Mesmo assim, espera-se nesse capítulo conseguir apresentar um panorama geral dessa realidade, ainda que seja por meio de generalizações, apontamentos e referências a outros estudos e trabalhos. Dessa forma, espera-se alcançar um alinhamento com a perspectiva apresentada no processo de patrimonialização apresentado acima intitulado como “Romarias Minhotas”.

As romarias expressam um conjunto multifacetado de fenómenos na

espacialidade do Minho. Ou seja, ainda que seja possível encontrar elementos comuns a quase todos esses fenómenos, esses não podem ser reduzidos aos seus elementos

comuns. Essa heterogeneidade parece se ampliar quando os fenómenos das romarias são observados em sua historicidade. Em outras palavras, as especificidades de cada

romaria em relação as outras podem ter variado no decorrer do tempo. Assim, uma romaria como acontece hoje é, em certo sentido, diferente de como era essa mesma romaria no passado.

Além disso, em uma perspectiva documental da história desses fenómenos, não existem muitas informações disponíveis. Por isso, nem sempre é possível saber sobre como ocorriam as romarias. Nesse sentido, a pesquisa documental tem de ser

complementar a investigações realizadas por meio de relatos, entrevistas e narrativas. Logo, metodologias antropológicas e de história oral são formas de acessar as principais fontes de informação para esse contexto.

Com efeito, muitas das características presentes nos dias atuais das romarias são resultantes de processos históricos que envolviam disputas e relações de poder.

Algumas dessas disputas ocorreram entre as posições oficiais da Igreja Católica e o chamado “catolicismo popular”. Dessa forma, acessar a história das romarias com suas transformações envolve perceber como as relações de poder se impunham na

48 conformação dessas práticas religiosas. Envolve também perceber como as expressões de religiosadade popular se realcionavam com as autoridades religiosas e como

expressam essa relação.

Seguindo a explanação de Pierre Sanchis (2006), antropólogo que estudou as romarias do norte de Portugal, a aproximação do termo “romaria” com o termo “peregrinação” é um campo de investigação que deve ser considerado em sua

historicidade. Ou seja, o sentido de “romarias” e de “peregrinações” é determinado pelo contexto histórico e cultural no qual as estruturas sociais dos fenómenos e as suas transformações acontecem.

Portanto, a utilização do termo “romaria” é usado para se referir a fenómenos sociais que ao longo da história tiveram diferentes características, ainda que seja possível pensar seus elementos comuns. Em Portugal as romarias já faziam parte do cenário religioso desde a Alta Idade Média, especialmente na região Norte. As romarias por séculos foram manifestações populares que estavam ligadas às experiências

coletivas e ao imaginário religioso das populações locais, com profunda ligação com os modos de vida das pessoas e da sua relação com o Sagrado.

Por sua grande importância na vida local, por períodos tão longos de tempo, os fenómenos das romarias no contexto atual guardam as marcas de sua historicidade. Um processo transformador significativo foi a estratégia pastoral estabelecida do século XX pela Igreja católica que visava a distinção entre “romaria” e “peregrinação”. Essa estratégia buscou de diferentes modos a modificação de alguns aspectos culturais ligados tradicionalmente às romarias. Mas o que era uma romaria antes desse processo? Sanchis descreve da seguinte forma:

O que era Romaria? Um caminhar, muitas vezes penoso, doloroso até, em condições voluntariamente precárias, por isso demorado, mas cheio de encantos – imersão numa natureza selvagem e encontros lúdicos no caminho – até a concretização da apresentação e presença do peregrino a um “Santo”: santuário próximo ou

longínquo, Sagrado feito gente, com quem se conversa, se troca bens, energia e saúde (promessas), perto de quem se vive uma pequena porção de tempo, o tempo feito Festa: comida, bebida, encontros, dança; até a volta para um quotidiano transfigurado, já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida – e na vida. (Sanchis, 2006)

49 E o autor continua sua análise apresentando como se deu a estratégia eclesiástica e política de conformação dos fenómenos das romarias:

“Uma relação constituinte com o além-vida fonte da vida, o Sagrado. Mas uma relação tradicionalmente pouco regulada pela instituição (a Igreja) em princípio investida da missão de apresentar, representar, concretizar e distribuir este Sagrado à sociedade profana em que os homens instauram o quotidiano de suas vidas. Por isso, esta procura ativa de “refontalização”, a partir de iniciativas repetidamente administradas por cada um, no quadro de uma tradição que

dificilmente aceitava para isso regulações autoritárias, aparecia com freqüência às autoridades eclesiásticas (e políticas) como

descambando para manifestações de “paganismo”: promessas

sangrentas em atitudes penitenciais excessivas, que criavam um foco de devoção autônomo, popular e não-oficial, cantos e espetáculos “profanos”, “arraiais noturnos”, bebedeiras, eventualmente sexo e violência. Empreendeu-se então uma “cruzada para a recristianização” das Festas, contra “o paganismo religioso das romarias, pretexto a bacanais e desordem”. Cruzada que alternou e misturou – em proporções variáveis, conforme os regimes políticos, os poderes conjunturalmente dominantes, a posição de influência ou

marginalização pública da Igreja – o recurso à repressão policial, o combate retórico direto em nome da ortodoxia religiosa, as suspensões de ordem e outros castigos canônicos para os padres coniventes, para os organizadores leigos, os músicos e o simples povo, acusado de “não reagir”, a tentativa de alargar, no seio mesmo da romaria, o espaço do Sacramento e da Liturgia oficial.

Até que, em torno dos anos 20, num momento em que a

Revolução Nacional (e nacionalista) não tinha ainda restituído à Igreja uma situação de troca tranqüila entre sua autoridade institucional própria e o poder político, nova estratégia foi privilegiada. Já que as “Romarias” mantinham, apesar dos esforços oficiais, uma larga margem de autonomia, criar-se ia outra manifestação de “ida-ao- Sagrado”, concebida, esta, como “estritamente religiosa” porque totalmente regulada pela autoridade eclesiástica.

50 À imagem do que acontecia nos célebres santuários franceses ou italianos, La Salette, Loreta, sobretudo Lourdes, o tradicional habitus festivo do povo português nas Romarias seria doravante transmutado na prática das “peregrinações”. É então que o nome (o de nosso primeiro “título”) aparece, como significativo de uma estratégia, que tenderá a culminar com o caso de Fátima, o caso antonomástico das “peregrinações”, quase uma “anti-romaria”...

Esta oposição levou-me logo a generalizar. Não constituiria ela uma dialética constitutiva da “romaria”, uma estrutura? Desde o nascimento historicamente apreensível das romarias portuguesas, no séc VII, os sermões de Martinho de Dume, o primeiro Arcebispo de Braga, contemporâneo do primevo reino Suevo que foi núcleo de Portugal, nos mostram um povo que se desloca em direção a montes, a florestas, a rochedos, a fontes – ou às capelas já ali construídas – venerar as relíquias ou as imagens dos santos, que no seu imaginário podem muito bem confundir-se com os seres míticos – deuses ou encantados – (“demônios”, dirá o bispo) que as religiões antigas, celta ou romana, lhe tinham ensinado a cultuar. Reproduzindo até para os santos cristãos os gestos do culto tradicional.

Desde então, e ao longo da história de Portugal, sempre haverá uma distância, e uma luta correspondente, entre a manifestação festiva da romaria e a tentativa de “ordenação” eclesiástica.

Às vezes, a luta foi até física: padres foram jogados no rio, outros encontraram na sua porta o alguidar com a faca para a matança do porco, em certos casos as mais altas autoridades públicas tiveram que entrar em campo para sua proteção, etc. Oposição no mais das vezes negociada, que chega finalmente a compor uma “estrutura de compatibilização”. As “romarias” são caso típico de encontro e

fricção (criativa) entre a religião do “povo” e a do “clero”. As

multidões peregrinas são em princípio “leigas”, dirá Dupront, o grande especialista das peregrinações...

Além do mais, não se trata somente de Portugal... Para só evocar alguns exemplos: no Brasil, a reforma das romarias preocupará

51 o episcopado na época da romanização, quando congregações

estrangeiras são chamadas para transformar a sua prática – e bem antes, em Minas por exemplo, logo na instituição do bispado de Mariana.

Também no século 18, na Europa o iluminismo da contra- reforma visa suprimir os restos de “superstições” herdadas dos tempos célticos. Especialmente em algumas regiões, como a Bretanha.

Remontando no tempo, poderia citar-se o papa Gregório (século VII) e suas recomendações ao missionário Agostinho, quando mandado a terras Anglas. E, mais cedo ainda, o outro Agostinho, o grande, criticando as peregrinações aos túmulos dos santos, de sua própria mãe Mônica.

Quanto à pregação de Martinho de Dúmio em Portugal, ela serviu de modelo em toda a Europa, inclusive na Escandinávia. Sinal de que o problema estava em toda a parte presente.” (grifo nosso, Sanchis, 2006, p. 88)

Portanto, as romarias são hoje, em parte, resultado do encontro e “fricção” (criativa) entre a religião do “povo” e a do “clero” (Sanchis, 2006). Essa dinâmica que conformou e transformou as características dos fenómenos das romarias pode ser compreendida como elemento do contexto cultural que estabeleceu o que hoje se observa.

Nesse sentido, as romarias do Minho, em cada uma das suas manifestações, são importantes expressões de identidade cultural que refletem modos singulares da

criatividade humana.

Além do que foi exposto, é significativo perceber que o projecto de

patrimonialização em foco trata de romarias e, também, de festas. Essa aproximação entre os dois termos fica mais clara ao observar as dinâmicas culturais que envolvem as práticas das romarias. A associação das romarias com as festas, ou arraiais, se dá como sendo ambos lugares para encontros que reiteram sentimentos de pertencimento além do fortalecimento de relações identitárias. E, históricamente essas expressões de romarias e festas estiveram ligadas às tradições que as colocavam como dois momentos de um mesmo fenómeno. Todas têm igualmente como característica a participação

52 Por tudo isso, uma perspectiva de reconhecimento de Património Cultural

Imaterial das romarias e festas é indiscutivelmente válido. O que é importante trazer para o campo de análise são as definições de como se dará esse processo. Pois, além de um trabalho de documentação, investigação, levantamentos, registros, entre outras ações de salvaguarda de Património imaterial, para cada uma das expressões culturais

inventariadas, importam também que sejam realizados estudos, discussões e reflexões sobre como essas podem ser compreendidas em seu conjunto.

Capítulo 4 - Estudo de caso: Romaria do Bom Despacho em Vila Verde