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Questão básica há muito levantada trata da divergência jurisprudencial e seus efeitos nocivos para os jurisdicionados e para o próprio sistema jurídico. Este fato e as discussões decorrentes têm revelado que a moderna metodologia do Direito traz questões cada vez mais sofisticadas.

De acordo com Bruno Dantas, Robert Alexy traz ao menos quatro justificativas para o fato de que, em boa parte dos casos, “a afirmação normativa singular que expressa um julgamento envolvendo uma questão legal não é uma conclusão lógica derivada de formulações de normas que se supõem válidas”,73 tomadas em conjunto com afirmações sobre os fatos, provadas ou tidas como verdadeiras. Tais justificativas, capazes de romper o sistema clássico, seriam as seguintes:

(1) a imprecisão da linguagem do Direito, (2) a possibilidade de conflitos entre as normas, (3) o fato de que é possível haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, que não cabem sob nenhuma norma válida existente, bem como (4) a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria textualmente um estatuto.74

72 CHIMENTI, Ricardo Cunha et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 370.

73 DANTAS, Bruno. Reflexões sobre a sumula vinculante. Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-

publicacoes/volume-iii-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-a-consolidacao-das-

instituicoes/hermeneutica-constitucional-sumula-vinculante-o-stf-entre-a-funcao-uniformizadora-e-o- reclamo-por-legitimacao-democratica>. Acesso em: 15 jun. 2008.

74 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 17, apud DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 4.

Mesmo partilhando da ideia dos que entendem que a lei tende a possuir uma única interpretação correta dentro das mesmas condições fáticas e momento histórico, tem-se que a ampla possibilidade de interpretação, somada ao extenso sistema processual brasileiro, transborda em elevado número de causas repetitivas que desaguam nos tribunais superiores.

Diante desse quadro, tentando encontrar um caminho para apaziguar o assoberbamento dos tribunais, foi acrescido à Constituição Federal o artigo 103-A, caput e parágrafos 1º e 2º — regulamentados pela Lei n. 11.417/2006 —, resultado da aproximação histórica entre os sistemas da Common Law e da Civil Law e da necessidade de uniformização da conduta jurisprudencial.

O dispositivo em tela prevê a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal editar enunciados de súmula com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nos níveis federal, estadual e municipal.

A ideia da instituição da súmula vinculante é amenizar as questões interpretativas de ordem constitucional através de um sistema vertical que determina aos órgãos jurisdicionais e à Administração Pública que observem a interpretação fixada pelo STF. O objetivo, sem dúvida, era uniformizar a jurisprudência, limitando a tão questionada atividade criativa do juiz, e, assim, pretendeu-se amenizar a difundida crise do Judiciário, agilizando sua atuação e buscando tornar mais célere a solução dos litígios. A EC n. 45/2004 constitucionalizou a noção de súmula até então tratada pela doutrina e pelos regimentos internos dos tribunais, fixando rígido rol de requisitos específicos para sua ocorrência. O objetivo era claro: ao adicionar efeito vinculante também às súmulas editadas, procurou-se fortalecer o quadro sumular e reduzir o acesso ao Judiciário de casos novos que viessem a se enquadrar em precedentes e súmulas portadoras deste caráter vinculante.

Conforme elenca Mônica Caggiano, neste quadro da vinculação do constituinte cabe ressaltar:

A inequívoca tendência em se adotar o modelo europeu de controle de constitucionalidade, erigindo-se o Supremo Tribunal Federal a corte constitucional.

Não deve haver questionamento se as decisões proferidas pelo Superior Tribunal Federal em sede de constitucionalidade vinculam a atividade do legislador. Este em nenhum momento foi abarcado pelo constituinte, que, de forma clara, exige a

observância dos pronunciamentos vinculantes, apenas e tão somente por parte do Poder Judiciário e dos órgãos do Poder Executivo, nas três esferas de governo. Nada obsta, daí, que o legislador venha a reproduzir norma entendida inconstitucional pelo STF.

Deixou o constituinte de constitucionalizar o efeito vinculante que a Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, cometeu à decisão prolatada em arguição de descumprimento de preceito fundamental (§ 3º, art. 10). Parece-nos, portanto, revogada esta regra, porquanto não pode vir a ser recepcionada pelo novo ordenamento, afigurando-se, ademais, incompatível com esta. É que esta qualificação de “vinculante” às decisões judiciais é acoplada em caráter especialíssimo pelo constituinte, que a concretiza de forma explícita nas hipóteses que contempla expressamente. Por comparecer como conotação peculiar e extraordinária, não admite interpretações flexíveis, ampliadoras, nem por parte do legislador nem mesmo para o aplicador dos princípios contidos no Estatuto Fundamental. O constituinte revisional de 2004 poderia ter elevado a vinculação, preconizada na Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, a nível constitucional, convalidando a interferência do texto infraconstitucional. Não o fez; ao invés, ampliou o domínio de abrangência da ideia de vinculação e deixou fora do seu círculo a hipótese da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Sob a nova incursão do constituinte, destarte, o indigitado preceito do § 3º, art. 10, da Lei n. 9.882/1999 não detém condições de resistência e, consequentemente, de sobrevivência.

Contrariamente ao entendimento dominante no universo da prática da vinculação, o constituinte brasileiro insiste em resguardar o efeito vinculante para as decisões proferidas em ações declaratórias de constitucionalidade, degradando o instituto e transformando-o em mecanismo de preservação do poder, à disposição do governo para impedir a evolução jurisprudencial nas matérias de seu interesse.

A vinculação não atinge os particulares. Estes, a qualquer tempo, podem ressuscitar a questão, o que na prática apresenta- se perfeitamente viável no espectro das interpretações conforme à Constituição. De fato, se, de uma parte, é certo que a invalidação da lei ou ato normativo inquinado de inconstitucional ocasiona um quadro de inexistência da referida lei ou ato — o que inviabiliza que este venha a servir de superfície, no futuro, para qualquer nova situação jurídica —, de outra, também é verdade que, em se tratando de mera interpretação conforme, esta poderá sofrer alteração por parte dos particulares, até mesmo por via de mediação ou arbitragem.75

75 CAGGIANO, Monica Herman. Emenda Constitucional 45-2004. Revista Brasileira de Direito

Porém, até a publicação da Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que disciplinou a edição, a revisão e o cancelamento dos enunciados e súmulas pelo Supremo Tribunal Federal, não houve a edição de súmula vinculante. A lei trouxe novidades em relação ao texto base da Constituição Federal, em particular ao estabelecer dois mecanismos geradores da edição, da revisão e do cancelamento dos enunciados das súmulas vinculantes pelo STF: direto e incidental.

O procedimento incidental difere do direto no tocante à legitimidade e à existência de caso específico em julgamento no Supremo Tribunal Federal para que possa ser iniciado. Logo, exige os seguintes requisitos: (i) requisitos idênticos ao procedimento direto: objeto (validade, interpretação e eficácia de normas determinadas), controvérsia atual entre órgãos judiciários, ou entre esses e a administração pública, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica; (ii) requisitos específicos: legitimidade e propositura no curso do processo. Por exemplo, o município poderá propor, incidentalmente ao curso do processo em que seja parte, a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante.

A adoção da súmula vinculante não é unânime na doutrina nacional, trazendo grande controvérsia e posições antagônicas. Maria Tereza Sadek comenta que:

a súmula vinculante (stare decisis) é vista por seus defensores como indispensável para garantir a segurança jurídica e evitar a multiplicação, considerada desnecessária, de processos nas várias instâncias. Tal providência seria capaz de obrigar os juízes de primeira instância a cumprir decisões dos tribunais superiores, mesmo que discordassem delas, e impediria que grande parte dos processos tivesse continuidade, desafogando o Judiciário de processos repetidos. Seus oponentes, por seu lado, julgam que a adoção de súmula vinculante engessaria o Judiciário, impedindo a inovação e transformando os julgamentos de primeiro grau em meras cópias de decisões já tomadas. Dentre os que contestam tal expediente, há os que aceitam a súmula impeditiva de recurso, um sistema em que o juiz não fica obrigado a seguir o entendimento dos tribunais superiores do STF, mas permite que a instância superior não examine o recurso que contrarie a sua posição.76

76 SADEK, Maria Tereza. A crise no Judiciário vista pelos juízes: resultados da pesquisa quantitativa. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Uma introdução ao estudo da justiça. São Paulo: Sumaré, 1995.

O fato é que, na verdade, caberá a cada magistrado, na análise do caso concreto, concluir pela aplicação ou não de determinada súmula, bem como decidir por levantar questão não analisada pela súmula e, ainda, por demonstrar que não é o caso de aplicação de determinado precedente na hipótese em julgamento.

A EC n. 45/2004 não disciplinou mecanismo de responsabilização disciplinar do juiz pela não adoção das súmulas vinculantes. Assim, do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar súmula aplicável ou que indevidamente aplicá-la, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, de acordo com cada caso, sem prejuízo dos recursos cabíveis ou outros meios admissíveis de impugnação (art. 7º da Lei n. 11.417/2006).

Conforme conclui Mônica Sifuentes:

não fere a independência do juiz o respeito à jurisprudência uniformizada fruto de reiteradas decisões do tribunal no mesmo sentido, como preceitos normativos genéricos, a orientar os seus julgamentos. A liberdade da decisão judicial deve coexistir com a exigência de que ela atenda ao critério de racionalidade, que também decorre do Estado de Direito e do próprio princípio da legalidade. A jurisprudência deve ser estável, mas não impedir a evolução do Direito. A estabilidade do entendimento dos tribunais acerca das normas é um dos pontos básicos de segurança das relações jurídicas, necessária à paz social.77

5 DADOS E REFLEXOS DOS EFEITOS DA ALTA LITIGIOSIDADE NAS PESQUISAS

Passa-se aqui aos dados referentes aos números do Poder Judiciário brasileiro para contextualizá-lo na realidade do alto índice de judicialização no Brasil, bem como seus reflexos. O pensamento comum se volta para o Judiciário todas as vezes que surge um litígio — basicamente, esta é a razão do incremento crescente da sobrecarga do número processos.

Conforme escreve José Carlos Francisco,78 o índice de litigiosidade é expressivo também para um número de juízes importante, mas notoriamente incapaz de dar conta dessa avalanche de ações com qualidade e com quantidade em um ambiente globalizado de risco.

Neste capítulo, por tratar especificamente de números e de sua correta interpretação, tem-se como apoio e roteiro o estudo detalhado de Rubens Curado Silveira,79 que, baseado nos dados oficiais dos relatórios do Conselho Nacional de Justiça, em sua publicação “Justiça em números”, pretende esclarecer o que sugerem os números da gestão judiciária. São muitos dados e de difícil compreensão para os leigos que não atuam na área de estatística; assim, para não incorrer em falsa interpretação, o capítulo segue linhas gerais e pretende servir de apoio exemplificativo e não como rol exaustivo dos números e situações contidas no Relatório.80

A inclusão de dados e gráficos pretende apenas ilustrar, palidamente, através de números de pesquisa confiável, uma realidade que, por experimentação prática, já o sabem os operadores do Direito em qualquer frente que atuem minimamente.

78 FRANCISCO, José Carlos. Busca por alternativas à judicialização e possibilidades. In: Arbitragem

em geral e em Direito Tributário: soluções alternativas de resolução de conflitos. Belo Horizonte: Del

Rey, 2013, p. 3-23, p. 15.

79 SILVEIRA, Rubens Curado. 10 anos de reforma do judiciário e o nascimento do CNJ. São Paulo: RT, 2015.

80 Os dados mencionados neste capítulo foram extraídos do relatório “Justiça em números”, publicado em 2014, relativo ao ano de 2013. Uma particularidade de interesse quanto ao relatório aqui estudado é que se trata do décimo relatório produzido pelo CNJ: “Os dez anos da primeira edição do relatório Justiça em Números configuram uma excelente oportunidade para o registro de um salto evolutivo nas políticas judiciárias do país. A experiência acumulada nessa quase primeira década desde a edição da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, proporciona um balanço cujo saldo é positivo. Pela primeira vez na história do Poder Judiciário, já são palpáveis os avanços institucionais obtidos na coleta, sistematização e análise das informações reunidas sobre as organizações que o compõem.” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números: 2014. Op. cit., p. 392). O início da consulta aos dados se deu no segundo semestre de 2015, quando da elaboração desta dissertação. Não se pretende, de forma alguma, esgotar e analisar todos os tópicos lá relacionados.

E aqui, já se antecipando à conclusão, independentemente das medidas tomadas, em uma rápida observação em relação aos dados trazidos pelos relatórios de anos anteriores, os números, principalmente dos processos em acervo, não experimentaram declínio substancial.

O CNJ aprovou em junho de 2014 a “Estratégia Judiciário 2020”, pela Resolução CNJ 198, que estabelece os desafios da Justiça para o período de 2015- 2020, a partir da revisão do plano estratégico inaugurado em 2009 e findo em 2014. Pelas conclusões apresentadas pelo CNJ, nesses cinco anos passados auferiu-se, como frutos do aprimoramento de sua gestão, significativos ganhos de produtividade, um Judiciário mais consciente de seus problemas e virtudes, ciente da necessidade da qualidade dos serviços prestados à sociedade.

O enorme desafio do Judiciário é dar vazão aos 67 milhões de casos pendentes. Mantida a tendência do último quinquênio, o Judiciário receberá, no ano de 2020, 36 milhões de casos novos, volume impossível de ser dirimido com a estrutura atual.

Em 2009, o acervo era de 59 milhões; projetado o mesmo comportamento para 2020, a próxima década terá início com acervo de 78 milhões, 12 milhões a mais que o atual.

A produtividade dos últimos 5 anos — de 25,3 milhões para 27,66 milhões de processos baixados por ano (9%) — foi insuficiente para dar conta do aumento da demanda anual por Justiça — de 24,6 para 28,2 milhões de casos novos (15%) — fato que exigirá mais inovação e novas soluções urgentes.

Portanto, é preciso que se compreendam as causas do problema e principalmente da litigiosidade, para que se possam indicar caminhos possíveis de prevenção. A prevenção dos litígios é fator crucial para o aprimoramento do Judiciário. Na análise dos dados, o primeiro ponto é atentar para a terminologia, que difere nas ciências exatas, especificamente na estatística judiciária. Um processo novo no primeiro grau corresponde a um caso novo de primeiro grau. Mas um recurso porventura em segundo grau desse mesmo processo gera um outro “caso novo”, agora de segundo grau. E assim sucessivamente nos demais procedimentos do mesmo processo. Portanto, estatisticamente, um mesmo processo enseja múltiplos “casos” cada vez que se exige um pronunciamento judicial. Logo, o número de casos é superior ao número real de processos, de lides ou de litígios.

Estatisticamente, portanto, o Judiciário tem um acervo de 67 milhões de processos pendentes, somadas todas as instâncias, e não o comumente citado número de 95 milhões de casos. É esse o grande desafio da Justiça.

A soma dos processos pendentes — aproximadamente 70 milhões (67 milhões) — com os novos (28 milhões) resulta em 95 milhões em tramitação. Se deduzidos os 27,8 milhões solucionados nos períodos, o acervo retorna a 67 milhões. É essa a quantidade de processos que, em tese, existia no último dia do ano de 2013 e que inaugurou o ano judiciário de 2014 (Gráfico 1).

Gráfico 1 - Total de casos em tramitação por ramo de justiça (ano-base 2013)

Fonte: CNJ, 2014.

O quadro atual de servidores conta com cerca de 16 mil magistrados e aproximadamente 300 mil servidores, distribuídos conforme os gráficos 2 a 5. Os ganhos de produtividade entre 2009 e 2013 (gráfico 6) — de 25,3 milhões para 27,7 milhões de processos baixados por ano (9%), aqui entendidos os processos que, além de julgados sejam arquivados definitivamente ou remetidos para a instância superior (recurso) ou inferior (arquivo definitivo ou execução e cumprimento), — foram insuficientes para dar conta do aumento da demanda anual por Justiça — de 24,6 para 28,3 milhões de casos novos (15%) —, exigindo do Judiciário mais inovação e criatividade.

Gráfico 2 - Distribuição da força de trabalho total (ano-base 2013)

Fonte: CNJ, 2014.

Gráfico 3 - Série histórica do total de magistrados e servidores

Gráfico 4 - Número de magistrados por ramo de justiça (ano-base 2013)

Fonte: CNJ, 2014.

Gráfico 5 - Número de servidores por ramo de justiça (ano-base 2013)

Gráfico 6 - Série histórica da movimentação processual

Fonte: CNJ, 2014.