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Sem Dor, Sem Ganho

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 61-66)

Por:

Kelly Amorim

Bio:

Kelly Amorim é autora do livro de contos INOCÊNCIA, publicado na Amazon. Escreve terror e tem participação em várias antologias. Além disso, é membro da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror.

Contato: E-mail Conto:

Cida nunca achou que tivesse algo de anormal com ela, afinal tinha vivido muito bem os seus quarentas anos até aquele momento. Até o dia em que ela andava na rua e percebeu uma multidão gritar, todos olhando em sua direção. Um homem olhou espantado para ela e falou:

— Moça, você não percebeu que tem uma faca cravada nas suas costas?

Cida achou aquilo esquisito e olhou sobre o ombro. Não conseguiu ver nada, então se contorceu um pouco e tateou as costas até sentir o objeto no meio dela.

— Eu estava sentindo algo estranho mesmo, mas achei que pudesse ter sido alguém que só tivesse encostado em mim.

O homem continuava olhando incrédulo para ela. Ele a arrastou para o hospital mais próximo, já suando em bicas.

— Tudo bem, eu posso me virar a partir daqui–Cida não entendia o porquê de todo o desespero do homem, afinal era só os médicos tirarem aquilo das costas dela e estava tudo resolvido.

— Eu fico aqui te esperando. Não é bom ficar sozinha, provavelmente terá que fazer uma cirurgia. Ou se quiser eu chamo um familiar ou amigo seu.

Cida deu de ombros e falou que ele podia ficar, já que insistia tanto. Ela se apresentou na triagem na enfermaria que logo a passaram na frente de todos os outros pacientes.

Após a remoção do objeto, o médico que a atendeu foi conversar espantado com ela, dando graças que não tinha sido atingido nenhum órgão vital.

— Sabe o que eu achei mais curioso?–perguntou o médico.–Não foi necessário nenhum tipo de anestesia para fazer a remoção.

— Ainda bem, não é mesmo? Sobra mais pra um próximo paciente!–riu Cida.

— Você não sentiu nenhum tipo de dor? Como não pôde não perceber que uma faca foi enfiada nas suas costas?

— Eu não sei, casos estranhos acontecem de monte por aí!

— Cida, o que isso no seu braço?–ele pegou o braço direito dela que tinha uma mancha vermelha e amarela na parte direita do antebraço.

— Ah, isso? Foi esses dias enquanto eu fazia o almoço. Fui mexer a panela de trás, mas tinha esquecido a boca da frente com o fogo acesso. Quando me dei conta, tava com o braço chamuscado!

— E você demorou tanto assim para perceber?

— Foi–a mulher deu de ombros.

O médico passou a fazer uma série de perguntas, puxando todo o histórico de machucados de Cida. Ela de fato não sentia dor, não percebia quando água fervendo caía em sua pele ou se alguém puxava muito forte seus cabelos. E pelo que ele constatou também, ela não sentia medo ou ficava ansiosa.

— Nunca achei que isso fosse um problema – disse Cida.

— A dor serve para te alertar. Veja só quantas coisas te aconteceram e você só se deu conta tempos depois. Qualquer

hora, você vai morrer e nem vai perceber também.

Aquela última frase encucou a cabeça de Cida. Ela não queria não perceber quando fosse morrer. Além disso ficou curiosa para saber como era dor. Claro, já tinha visto outras pessoas sofrerem desse mal, dor de cabeça, dor de estômago, dor na coluna... Nada disso a afligia. Ela achava pelo menos. Talvez ela tivesse tudo isso, mas seu corpo não dava nenhum sintoma. Ela queria morrer sentindo dor.

Ela então decidiu tentar de tudo: veneno, tiro, facadas, choques, afogamento, cortar os pulsos, pular de um lugar alto, ser atropelada. Pediu para alguém esquartejá-la, mas na hora sua carne se mostrou dura como aço. Tentou se incinerar, enforcar, invadiu uma jaula no zoológico para tentar ser comida por leões – mas até estes lhe torceram o nariz. Tentou morrer por inanição, desidratação e hipotermia, mas seu corpo continuava saudável e pleno.

Certamente teria que esperar o fim dos tempos para que o mundo acabasse junto com ela, mesmo que seu sonho fosse sentir um pouco dor, por menor que fosse. A raiz do problema estava nela mesma e ela teria que encontrar.

No meio da sala de casa, começou pelas perfeitas cutículas dos pés, puxando as unhas de ponta a ponta. Não sentia nada, era como tirar adesivos do caderno escolar. Conforme tirava, ia pondo na boca e engolindo. Em seguida foram os dedos da mão esquerda. Arrancados e mastigados por dentes alvos. Mesma coisa, sentia-se tirando batatas fritas do pacote para comer. Depois, foram as pernas, uma de cada vez, sendo retirada e ingerida formando um lago rubro em volta dela.

Restava o tronco e nada de dores. A apatia já dominava todo o corpo da pobre Cida. Àquela altura, decidiu partir para os cabelos sedosos e arrancou o couro cabeludo. A cartilagem da orelha era estranha de mastigar. Com a mão direita, cortou o braço esquerdo. Os olhos azuis foram engolidos inteiros para logo em seguida ser dado cabo do nariz, bochechas e o resto de pele exposta.

A Lua já brilhava no alto quando só restava uma massa disforme e vermelha em meio ao caos. Ela engoliu o último pedaço de carne descendo rasgando sua garganta e em seguida, arrancou o coração. Ele ainda batia morno quando ela o ingeriu a dentadas. Tinha que ser rápida.

Aah, aquilo doeu. Finalmente doeu. Doí cada nervo que sobrara de Cida. Era uma dor tão boa e viciante, uma sensação que só resolveu aparecer aquele momento. Ela mastigou cada pedacinho do coração, como se fosse a mais deliciosa e última iguaria no mundo, mastigou bem rápido, enquanto ainda tinha domínio sobre seus comandos.

Lágrimas começaram a ser derramadas pelo oco dos seus olhos. Ela se sentia quase em êxtase quando finalmente acabou a refeição.

Sem se preocupar em limpar os lábios em carne viva, a coisa tombou morta no chão.

Serafim

Por:

Rennan Teixeira

Bio:

Nascido no interior do Ceará, na cidade de Iguatu, o jovem autor iniciou a arte do escrever desde a infância, dividindo-a com o desejo de ser médico. Tendo como gênero literário predileto e modelo o suspense policial, escreveu seu primeiro livro aos 19 anos. Em 2010, foi agraciado com o prêmio de melhor autor em um concurso de melhor conto curto Stephen Knitz, com o texto titulado ´´um reflexo difuso´´. Graduado em Medicina pela Universidade de Fortaleza em 2016, tem ´´Riscos Duplos´´

como sua obra de lançamento.

Contato: E-mail Conto:

Uma pequena rachadura se espalhava e culminava com o desabamento de parte de uma ponte. Seu corpo caía de uma altura de dezenas de metros rumo ao impacto com as águas caudalosas de um rio. Acordou com o som do próprio grito e do despertador. Seguindo uma rotina diária, levantou-se, lavou o rosto, escovou os dentes, arrumou-se e desceu até a sala de refeições, onde estavam uma mulher e uma menina.

Ele era um jovem de dezesseis anos, pele alva e cabelos loiros lisos, chamado Serafim. Estava diante de uma mulher gorda com óculos de armação vermelha, que era sua mãe e que se chamava Magali, além de uma garota ruiva de rosto sardento, que era sua irmã Angelina.

— Meu anjo está com cara de sono outra vez, problemas de insônia, filho?

— É o mesmo pesadelo que vem me perseguindo nos últimos meses, mãe. Uma ponte e uma queda.

— É só um mal sonho, querido.

A senhora rechonchuda pegou um jornal que estava sobre a mesa e o foleou.

— De volta à realidade, soube das notícias de hoje? Foram registrados pequenos tremores de terra nos arredores da cidade. Isso é surpreendente.

Serafim tomou um gole do café, pegou uma maçã e se dirigiu à saída.

— Não me agradam as surpresas.

Em um ônibus, seguiu até as proximidades de seu colégio. Quando desceu do transporte e se encaminhava ao portão do local, cruzou com uma mulher alta que vestia um chamativo traje cigano. Ela parou como um muro à sua frente, seus olhos negros pareceram fulminá-lo.

— O nome de um anjo, o encontro dos quatro elementos da natureza. Você estará lá. Posso ver, posso sentir.

Podemos tentar fugir, mas ninguém escapa do seu destino.

A cigana caminhou com velocidade e sumiu do campo visual dele como em um passe de mágica.

Ainda estava trêmulo, quando sentiu uma mão delicada tocar no seu ombro, virou-se e se deparou com uma jovem magra, de cabelos negros com mechas azuis e que usava piercing no nariz.

— O que houve, amigo? Parece que viu um fantasma.

— Quase isso, Ester. A aula de História já começou?

— Sim, com um professor novo, o anterior não durou muito tempo no colégio.

— Quem é esse novo?

— Chamam ele de senhor Pontes, acho que por causa do sobrenome.

Já passavam pela porta de entrada quando o jovem parou aterrorizado.

— Parece que não está a fim de estudar sobre o Renascimento.

— Estou tendo pesadelos com pontes e com minha morte e você quer que eu assista uma aula de um tal senhor

Pontes que fala sobre Renascimento. Soa um pouco demais pra mim.

— Ainda com essa bobagem de sonhos ruins? Amigo, somente nós estamos matando algo, uma aula. Pense na nossa excursão e no nosso acampamento que serão amanhã, toda a turma irá.

Apreensivo, dirigiu-se até a biblioteca que ficava em uma porção lateral do prédio. Selecionou alguns livros e os posicionou sobre uma das mesas, sempre seguido de perto por uma inseparável amiga.

— Não está a fim de História, mas anda flertando com a Geografia, pra que o livro com mapas?

Os dedos ágeis do rapaz seguiam algumas coordenadas desenhadas na obra, identificando um percurso oficial e alguns alternativos, evidenciados e diferenciados com um marca-texto amarelo e um verde.

— O ônibus que levará a turma até a serra da excursão e do acampamento passará por duas pontes que estão sobre dois rios, marquei esse trajeto de amarelo. Não correrei esse risco. Nós iremos seguir uma rota diferente, a marcada de verde.

— Parece até que está fugindo de algum criminoso.

— Haverá vida depois da morte? Estou escapando de uma terrível premonição e usarei todas as armas que tiver.

A jovem de piercing encontrou abaixo dos livros de geografia uma obra que lhe chamou atenção.

— Esses pesadelos andam mexendo com seu juízo. Lerá agora sobre os significados dos nomes? Depois me diz o meu?

— Não é hora para humor, Ester. Encontrei com uma cigana que falou sobre o meu nome e sobre o encontro dos quatro elementos da natureza.

— Terra, ar, fogo e água... Um encontro entre eles e ainda uma conexão com o seu nome, Serafim. Pra mim isso tudo só se pode nomear de uma forma: fantasia.

— Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.– Disse Serafim, fazendo alusão à Shakespeare.

Separou os livros e os colocou na mochila. Dirigiu-se à sala de aula, após a saída do professor de sobrenome sugestivo.

O dia foi carregado com estudos e com trabalhos interdisciplinares. Quando chegou em casa era final da tarde e, dominado pelo cansaço, encaminhou-se direto para seu quarto. O sono profundo trouxe de volta um pesadelo superficial, à flor da pele. Agregava-se à ponte e à sensação de queda livre a fala enigmática e fragmentada de uma cigana, cujos fragmentos pareciam não se encaixarem.

O despertar em meio à madrugada foi definitivo. Estava acordado quando a melhor amiga ligou às seis da manhã.

— Tentei falar a noite toda contigo. Já arranjei o meio para irmos até o local do acampamento. Vamos às oito da manhã com um primo da mamãe que está retornando para capital. Por você abdico de ir com a galera da turma no ônibus.

— Ótimo, vou te mandar a foto daquele mapa. Não esqueça de dizer ao primo para seguir o percurso marcado em verde.

Ele teve apenas duas horas para arrumar uma mala e sua mochila. Despediu-se da mãe e da irmã com um forte abraço compartilhado. Partiu num veículo junto com Ester e com um homem de pele branca como neve, que era parente da jovem. Enquanto viajavam, passou a folear o livro sobre o significado dos nomes.

— Andei pesquisando e meu nome significa estrela, nada mais condizente, porque nasci pra brilhar.

— Ainda estou procurando o significado do meu. Se os nomes estivessem em ordem alfabética facilitaria, são centenas.

Dezenas de quilômetros tinham se passado quando um acidente com uma carreta tombada obrigou o motorista a mudar a rota original, marcada num papel com tons esverdeados. Distraído entre significados nominais, Serafim não reparou na alteração de trajeto. Ester estava cochilando.

Minutos depois, os olhos dele ganharam novo brilho. Com um dedo apontado para uma das páginas da obra, acordou a amiga.

— Encontrei o significado! E tem a ver com um dos elementos da natureza. Serafim significa ´´ aquele que arde em fogo´´.

Recém-acordada e surpresa, Ester observava o local exato por onde passavam com o carro.

— Tinha uma ponte no meio do caminho?

Abalado, o jovem passageiro olhou pela janela lateral e confirmou a veracidade das palavras da amiga.

— Um obstáculo na estrada me fez mudar o trajeto.– Disse o homem ao volante.

Ester tomou o livro das mãos do amigo.

— Já descobriu o fogo, mas como os outros elementos se encontram?

Um forte tremor de terra causou a expansão de rachaduras na porção central da ponte, que se rompeu. Um carro vulnerável deslizou para um lado, chocando-se contra a beirada de uma parte da ponte que pendia. Um dos ocupantes do automóvel, que não usava cinto de segurança, teve o corpo expelido com o impacto e iniciou um voo sem volta ao ar livre. Aquele que ardia em fogo teve a vida apagada após o impacto contra a água caudalosa de um rio.

Será fim?

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 61-66)

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