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Os senhores de escravos na cidade de Juiz de Fora: aspectos econômicos e sociais

No documento caiodasilvabatista (páginas 123-130)

3 OS SENHORES DE ESCRAVOS EM UM CENTRO URBANO DO

3.3 Os senhores de escravos na cidade de Juiz de Fora: aspectos econômicos e sociais

A partir dos dados obtidos pelos inventários post-mortem analisados, foi possível detectar que os senhores de escravos juiz-foranos concentravam sua riqueza, respectivamente, em: escravos, bens de raiz, dívida ativa, ações e títulos da dívida pública, móveis, joias, animais e gado, outros bens (carros e instrumentos de engenharia) e dinheiro. O quadro a seguir mostra a quantidade de capital concentrada em cada um desses itens.

Quadro 5 - Distribuição da riqueza nos inventários post-mortem dos senhores de escravos em Juiz de Fora (Total em Réis), segunda metade do século XIX

Bem Total Escravos 759:427$500 Bens da Raiz 653:386$330 Dívida Ativa 509:181$674 Ações e Títulos 61:340$000 Móveis 42:313$467 Joias 25:608$120 Animais e Gado 14:240$000

Outros 2:696$000 Dinheiro 1:433$321

Fonte: AHJF. Fundo: Fórum Benjamin Colucci, Processos Civis. Série: Inventários. AHUFJF. Fundo: Benjamin Colucci. Série: Inventários. Observação: Outros se referem a “carros” e instrumentos de engenharia.

É importante salientar que, dos 13 inventários post-mortem utilizados nesta pesquisa, o de Francisca Rosa do Espírito Santo não foi contabilizado no quadro exposto acima, pois a soma dos valores de seus bens era menor do que os custos do processo119. Em 20 de março de 1873, Manuel Alves de Carvalho, marido da finada Francisca Rosa do Espírito Santo, foi designado pelo juiz de órfãos de Juiz de Fora a ser o inventariante dos bens que pertenciam a ele e sua falecida esposa.

O inventário deveria ser aberto, pois entre os herdeiros havia menores de idade que eram netos do casal. De acordo com o inventariante, eles possuíam um casal de escravos, Manoel, cabra, roceiro de 50 anos, e Luiza, preta, roceira, 30 anos; eles eram casados e estavam devidamente matriculados. Além dos cativos, Manuel e Francisca possuíam um tacho de cobre “velho” e alguns utensílios domésticos. Dado o valor reduzido dos bens, foi pedido o arquivamento do inventário. De acordo com a justificativa, se o processo continuasse os custos ficariam mais altos que o valor partilhável. Infelizmente não constam os valores dos escravos, do tacho e dos utensílios domésticos.

A fonte em análise apresenta uma família de livres pobres residentes na cidade de Juiz de Fora. Eles eram membros da “arraia-miúda”, formadora, como demonstrei no capítulo anterior, da “Cidade Negra”, entidade paralela ao centro urbano “moderno”, “salubre” e “ordeiro” almejado pelas elites locais.

O inventariante era um indivíduo de cor, pois no inventário os escrivães fazem referências a ele como “o preto Manuel Alves de Carvalho”. Essa referência me permite concluir que Manuel Alves de Carvalho era egresso do cativeiro. Tal como observado por Hebe Mattos, no contexto do Brasil oitocentista a cor “preto” era designada, preferencialmente, a escravos ou forros recentes (MATTOS, 2013).

Localizei outro inventário que apresenta um indivíduo de cor residente na cidade de Juiz de Fora. O mesmo foi aberto em 1885120. Nesse ano o juiz de órfãos designou o levantamento dos bens do africano Andalisto para a partilha entre seus três filhos, sendo um deles, Benedita, menor de idade. Espirituosa Felicidade, então mulher do finado, foi designada para ser a inventariante.

Em juízo ela alegou que seu ex-marido não havia bens para partilhar, pois quando faleceu era escravo. De acordo com a inventariante, que em 1885 estava casada com José Marcelino, Andalisto havia falecido havia muitos anos e deixou três filhos, sendo uma menor de idade.

A menor Benedita, em 1885, tinha 14 anos e foi entregue aos cuidados de um tutor. O juiz de órfãos determinou aos demais filhos do casal provarem não dever mais “favores” a seu antigo senhor. Não há como saber as estratégias desenvolvidas por Espirituosa Felicidade para alcançar sua alforria em decorrência da falta de informações na fonte consultada. Em relação à vida de seus filhos, também não constam detalhes no processo de inventário.

No documento em análise, há o registro de batismo de João, filho do meio do então casal Andalisto e Espirituosa. Ele foi batizado em 20 de novembro 1865 na matriz de Santo Antonio do Parahybuna em Juiz de Fora. Nesse período, seus pais eram escravos de Antonio José Tinoco. Seus padrinhos foram Maria e Vicente, provavelmente cativos.

No inventário não há nenhuma reclamação de quaisquer indivíduos alegando serem os filhos de Andalisto e Espirituosa Felicidade seus escravos. Por esse motivo, creio serem esses indivíduos forros.

A partir do que consta no inventário, é possível verificar que João tinha 18 anos e era solteiro. Ele tinha duas irmãs, uma de nome Rita, de 22 anos, casada, e Benedita. Esta última, como disse acima, foi entregue ao tutor Camilo Gomes Teixeira, responsável pela sua educação e cuidados.

Mais uma vez vemos um exemplo de indivíduos egressos do cativeiro que habitavam a cidade de Juiz de Fora. Como consta no inventário ora analisado, não havia bens para partilhar. Talvez, o juiz de órfãos tenha aberto o processo depois de saber da condição de miséria na qual se encontrava a menor Benedita. Em busca de bens para auxiliar sua educação e sustento, o processo de inventário foi iniciado.

120AHUFJF. Fundo: Benjamin Colucci. Série: Inventários. Inventário de Francisca Rosa do Espírito Santo, 1873.

Os inventários de Francisca Rosa do Espírito Santo e Andalisto eram exceções. Como apresentei anteriormente, a produção historiográfica demonstra que o processo de inventário era realizado quando um indivíduo possuía bens suficientes para partilhar121.

Além dessa questão, os inventários de Francisca e Andalisto nos leva ao mundo dos libertos das cidades brasileiras oitocentista. Tal como observado por Mônica de Oliveira, um forro buscava se distinguir dentro do próprio grupo social (OLIVEIRA, Mônica, 2016, p. 81). No processo de inventário de Francisca Rosa do Espírito Santo, é possível observar que, mesmo sem recursos, ela e seu marido possuíam um casal de cativos. Durante a segunda metade do século XIX, a mercadoria escrava tornou-se cara em decorrência da proibição do tráfico atlântico de almas.

Esse fenômeno, tal como observado por Hebe Mattos, começou a reverter a pulverização da mão de obra mancípia (MATTOS, 2013, p. 45). Nesse contexto, a mercadoria escrava passava a concentrar-se nas mãos de cada vez menos pessoas (MATTOS, 2013, p. 45). Por outro lado, a presença de senhores de escravos pobres demonstra a difusão da escravidão em todos os setores da sociedade juiz-forana oitocentista.

Assim, possuir escravos era uma das alternativas encontradas pelos libertos para se inserirem no “mundo dos livres pobres”. Outra estratégia era o casamento; no caso de Espirituosa Felicidade e sua filha Rita é possível verificar esse exemplo. Ambas eram forras e haviam contraído casamentos com indivíduos livres.

Provavelmente os maridos de Rita e Espirituosa eram pobres. Porém, o matrimônio com indivíduo livre era uma forma de se diferenciar de seus pares. A busca da distinção permitia ao liberto, de acordo com Mônica de Oliveira, redefinir suas posições dentro da hierarquia social (OLIVEIRA, Mônica, 2016, p. 81).

Feitas essas observações, retornarei à análise dos inventários dos senhores de escravos juiz-foranos. Em relação às ocupações que exerciam, dos 13 inventários utilizados neste estudo, em 7, ou 53,8% do total, foi possível adquirir tal informação do inventariado. O gráfico a seguir apresenta de forma mais clara essas cifras.

121 Dentre os diversos trabalhos históricos que utilizam e demonstram a importância do inventário enquanto fonte

histórica, cito: ALMICO, Rita de Cássia da Silva. Dívida e obrigação: as relações de crédito em Minas Gerais séculos XIX/XX. 2009. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Op. Cit.. PIRES, Anderson José. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora, 1870 – 1930. 1993. Dissertação (Mestrado em

História) – Faculdade de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1993. SAMARA, Eni de Mesquita. A familia na sociedade paulista do século XIX. (1800-1860). 1980. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.

Em uma localidade sem instituição bancária, os capitalistas exerciam importante função na oferta de crédito. Juiz de Fora teve sua primeira instituição bancária em 1887. Antes da abertura do Banco Territorial e Mercantil, o crédito na localidade em análise era adquirido por meio de particulares. O comendador Halfeld e o Barão da Bertioga são exemplos desses indivíduos que ofertavam o serviço financeiro em Juiz de Fora durante o século XIX.

Rita Almico, analisando a oferta de crédito em Juiz de Fora no decorrer do oitocentos, aponta para a existência de mais indivíduos procurando esse tipo de transação do que ofertando (ALMICO, 2009, p. 205). De acordo com Almico, “o ato de emprestar está diretamente ligado a disponibilidade de capital que o credor possa dispor por algum tempo” (ALMICO, 2009, p. 201). Essa característica se dava porque emprestar dinheiro e tê-lo de volta ao longo prazo era algo exercido pelos indivíduos mais afortunados. Estes possuíam recursos suficientes para se manterem sem o capital emprestado por um período. Todavia, Rita Almico observou que a heterogeneidade fez parte do grupo dos credores e devedores juiz-foranos (ALMICO, 2009, p. 205).

O Barão da Bertioga e o comendador Halfeld são exemplos de pessoas que, dentre seus meios de captar recursos, exerciam o empréstimo de dinheiro a juros na cidade de Juiz de Fora durante o século XIX. Em seus inventários consta uma dívida ativa avaliada em 213:918$473 (duzentos e treze contos novecentos e dezoito mil e quatrocentos e setenta e três réis) e 3:000$849 (três contos e oitocentos e quarenta e nove réis), respectivamente122. Halfeld e Bertioga se enquadravam dentro do segundo grupo que mais emprestava dinheiro em Juiz de Fora, os fazendeiros (ALMICO, 2009, p. 202). Como demonstrei, ambos exerciam em concomitância a atividade de capitalistas com de cafeicultor e gêneros para a subsistência.

Além do Barão e do Comendador, outros 5 inventariados possuíam dívidas ativas, que somavam 292:262$352 (duzentos e noventa e dois contos duzentos e sessenta e dois mil trezentos e cinquenta e dois réis). Esses inventariados se dividiam entre homens e mulheres. O quadro a seguir apresenta de forma mais clara esses indivíduos e quanto cada um possuía em dívidas para receber.

122AHJF. Fundo: Fórum Benjamin Colluci. Ações Civis. Série: Inventário. Inventário do Comendador Halfeld,

28/02/1874. AHUFJF. Fundo: Benjamin Colluci. Série: Inventário. Inventário do Barão da Bertioga. Caixa 75, 05/05/1870.

Quadro 6 - Inventariantes com Dívida Ativa em Juiz de Fora, 1853–1879

Nome Dívida Ativa Ocupação (ões)

Baronesa da Bertioga 283:498$576 Não Consta

Barão da Bertioga 213:918$473 Cafeicultor/Capitalista Ana Candida Barbosa 4:176$019 Não Consta

Comendador Halfeld 3:000$849 Lavrador de mantimentos/Capitalista Efigenia Ferreira da

Costa 2:803$883 Não Consta

Francisco José de Assis 1:593$874 Negociante João Carlos da Fonseca 190$000 Dono de carro

Fonte: AHJF. Fundo: Fórum Benjamin Colucci. Processos Civis. Série: Inventários. AHUFJF. Fundo: Benjamin Colucci. Série: Inventários.

Dos sete inventariados no quadro acima, é possível verificar que 3 eram do sexo feminino e 4 do masculino. Em relação às profissões, consta a presença de produtores de café, gêneros para o mercado interno, capitalista, negociante e dono de carro. No universo de inventários nos quais estou analisado, esses indivíduos representam 53,8 % do total.

Rabib Antonio, analisando a oferta de crédito em Vassouras, localizada no Vale do Paraíba Fluminense, demonstra que, nessa localidade, assim como em outras áreas cafeeiras do período, muitos particulares ofertavam crédito (ANTONIO, 2012). Como ressaltado pelo autor, em algumas ocasiões esses indivíduos eram chamados de “capitalistas” (ANTONIO, 2012).

Nos inventários em análise, o Barão da Bertioga e o Comendador Halfeld exerciam tal ocupação. Essa evidência permite inserir Juiz de Fora dentro do perfil das “regiões cafeeiras” do Brasil oitocentista observadas por Rabib Antonio. No entanto, além desses grandes “emprestadores de dinheiro”, havia outros que ofereciam seus recursos para o empréstimo. No quadro 06 é possível detectar alguns desses indivíduos.

O crédito ofertado por esses indivíduos podia atender a diversas demandas. Nesse sentindo, esse capital poderia suprir o pagamento de dívidas, a aquisição de imóveis, terrenos, casas, escravos ou na abertura de negócios (ALMICO, 2009, p. 188). Tal como disse anteriormente, o crédito era solicitado por um grupo heterogêneo, abrangendo desde grandes fazendeiros e negociantes a indivíduos de camadas sociais mais baixas (ALMICO, 2009, p. 188).

Em relação aos credores, os inventariados apresentados no quadro exposto anteriormente seguem a tendência detectada por Rita Almico para Juiz de Fora (ALMICO,

2009, p. 189). Como se pôde observar, os emprestadores de dinheiro tinham status sociais variados.

Nesse sentido, de acordo com o quadro 06, é possível verificar que a ocupação de José Francisco de Assis era “negociante”. Ele não foi o único inventariado com tal profissão; Cassiano Ferreira Damasceno também era um “homem de negócios”. Porém, em seu inventário, não consta o ativo dívida ativa como no de José Francisco de Assis.

Por fim, a presença de senhores de escravos que emprestavam dinheiro a juros em Juiz de Fora evidencia a diversificação da economia pela qual o município passava. É importante salientar que os inventários abrangem o período de 1858 a 1879. Como apresentei no capítulo anterior, a década de 1860 foi significativa para o desenvolvimento econômico de Juiz de Fora.

A oferta de crédito na região representa a força da economia cafeeira e urbana na localidade em análise. Tal como observado por Anderson Pires, a presença de capital excedente representava a diversificação econômica vivida por Juiz de Fora (PIRES, 2004). Graças aos recursos gerados pela produção de café, foi possível o investimento em outras áreas que possibilitaram a oferta de serviços, dentre os quais o crédito. Sobre a oferta de dinheiro para o empréstimo, Pires faz a seguinte observação: “[...] Assim como o comércio, as finanças vão refletir, por excelência, a questão estratégica da transferência de fundos na economia cafeeira regional” (PIRES, 2004, p. 183).

No entanto, nem só de dívidas ativas viviam os senhores de escravos da cidade de Juiz de Fora. Eles também investiram em escravos, bens de raiz, ações e títulos da dívida pública. Na próxima seção irei promover uma análise geral dos bens desses indivíduos inventariados.

No documento caiodasilvabatista (páginas 123-130)