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Serviço Social como especialização do trabalho coletivo

2. REVISÃO CRÍTICA DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL

2.5 CONCEITUAÇÕES DO SERVIÇO SOCIAL COMO PROFISSÃO E DISCIPLINA DO

2.5.1 Serviço Social como especialização do trabalho coletivo

Superando perspectivas endógenas, Iamamoto (1982) aborda a profissão a partir das análises sobre as relações sociais de produção, na sociabilidade do capital, considerando os processos de alienação e reprodução social, tendo como efeito analítico um deslocamento fundamental: de profissão como mero resultado de um contexto mais abrangente, para serviço social enquanto constitutiva da produção e reprodução das relações sociais capitalistas. 37

Inspirada na tradição marxiana a autora concebe o Serviço Social considerando seu significado histórico a partir da sua inserção na sociedade. Apreende o “serviço social como profissão no contexto de aprofundamento do capitalismo na sociedade brasileira”. Busca, assim, “desvelar o significado social dessa instituição e das práticas desenvolvidas em seu âmbito” (IAMAMOTO, 1982, p. 15. grifos nossos).

A interpretação teórico-crítica do Serviço Social como instituição transita no reconhecimento totalizante dos processos que determinam a reprodução das relações sociais da ordem burguesa e a particularidade da formação social brasileira. A partir da problemática da polarização entre profissão a serviço da burguesia e profissão comprometida com os interesses da classe trabalhadora, a autora constrói a base dos fundamentos que justificam historicamente a origem e o

37 A contribuição teórica de Iamamoto recupera os traços particulares da formação sócio-histórica brasileira, com explicitação de particularidades econômico-sociais, culturais e políticas, nas vinculações entre as oligarquias e a pequena burguesia, na junção entre o moderno e o arcaico, as feições patrimonialistas, entre outros determinantes forjados e explicitados no cotidiano de trabalho no âmbito da política social, como a ideologia do favor e do mando, os constrangimentos na realização dos direitos entre outros processo imbricados no exercício profissional.

desenvolvimento da profissão: o processo de produção social e seus mecanismos reificantes, avançando na tessitura das relações imbricadas, no cotidiano, nos modos de ser e de pensar e suas implicações.

Em suas análises críticas, a profissão é apreendida em seus nexos de funcionalidade à sociabilidade burguesa, o que se adensa com o reconhecimento dos processos basilares da divisão social e técnica do trabalho. O fundamental aqui é reconhecer sua formulação sobre o significado social da profissão na sociedade capitalista, por situá-la como “um dos elementos que participa da reprodução das relações de classe e do relacionamento contraditório entre elas”. Desse modo, Iamamoto apreende a “profissão historicamente situada, configurada como um tipo de especialização do trabalho coletivo dentro da divisão social do trabalho peculiar à sociedade industrial” (1982, p. 91).

Assim, a profissão é tida como “realidade vivida e representada na e pela consciência de seus agentes” e como “atividade socialmente determinada pelas circunstâncias sociais objetivas que conferem uma direção social à prática profissional” (idem).

Importante observar que Iamamoto localiza a profissão inserida no processo social, nas tensões entre as classes, constituindo um conjunto de sistemas de mediações que possibilitam as alternativas de ação. Desse modo, e com o recurso das categorias reprodução social e intelectual orgânico, o assistente social é situado como partícipe dos processos de reprodução social, podendo na mesma atividade responder aos interesses do capital e do trabalho. O Serviço Social só pode fortalecer um ou outro polo “pela mediação de seu oposto”, assim, participa “dos mecanismos de dominação e exploração” e

(...) ao m esm o tem po e pela m esm a atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência da classe trabalhadora e da reprodução do antagonism o nesses interesses sociais, reforçando as contradições que constituem o m óvel básico da história. A partir dessa com preensão é que se pode estabelecer um a estratégia profissional e política, para fortalecer as m etas do capital ou do trabalh o (IAMAMOTO, 1982, p. 75).

Evidente que, embora não compareça com maior ênfase, a política social justifica-se como espaço contraditório de correspondência aos direitos parciais do

trabalho, ao tempo em que regula a vida social. Desse modo não se suprimem as forças contraditórias do contexto social, e ressalta-se a dimensão política da prática na contramão de falsa neutralidade axiológica. O reconhecimento do significado sócio-histórico da profissão é passo indispensável para a leitura da dinâmica institucional e das estratégias empregadas no atendimento prioritário de demandas do capital ou do trabalho.

A questão social é apreendida como base fundante do Serviço Social, na transição de capitalismo concorrencial ao monopolista, por meio da progressiva intervenção do Estado mediante, especialmente, as políticas sociais, num contexto de racionalização da oferta e acesso aos serviços sociais e visibilidade política da classe trabalhadora.

Na interpretação da localização do assistente social na prestação de serviços sociais é reconhecida a natureza de uma atividade profissional liberal, porém assalariada pelo Estado ou patronato, realidade que inscreve a profissão como uma “tecnologia social” e o profissional como “um técnico”, em geral em políticas específicas, como um intelectual subalterno” (IAMAMOTO, 1982, p. 110-111). Cabe sublinhar o entendimento da profissão subalternizada socialmente pela lógica dos mecanismos de produção e reprodução da vida social, maiores do que intencionalidade e estratégias profissionais, assim como as implicações político- ideológicas dos direitos e serviços sociais.

Na análise sobre a trajetória da profissão nos marcos da gênese, desenvolvimento e consolidação, iluminada pelo aporte categorial crítico, a autora elucida o seu significado social, que tende aos mecanismos de difusão da ideologia da classe dominante junto à classe trabalhadora. Entretanto, no movimento totalizante do método crítico-dialético, sempre recupera a contradição e historicidade como categorias centrais e explicativas das atividades profissionais.

No processo de auto-representação crítica e de legitimação, a autora situa os caminhos para as crises da profissão, o que certamente prescinde do mero aprimoramento técnico-operativo. Para aqueles que recuperam as bases políticas, as crises e legitimações “incorporam as contradições básicas da ordem burguesa” (IAMAMOTO, 1982. p. 157).

Ao abordar a questão social diante da organização monopolista e sua relação com o Serviço Social, a autora explicita o cunho essencialmente político-ideológico

da prática profissional, já que a eficácia da atuação profissional é ideológica, embora travestida de técnica (Idem, p. 177).

Como síntese fundamental da obra de Iamamoto para a análise da profissão na sociedade capitalista, sob o risco das imprecisões e reducionismos, ressalta-se, partindo-se das ambiguidades de seu estatuto e particularidades de seu perfil profissional, o entendimento de que a profissionalidade do Serviço Social é construída nas relações entre as classes no interior da divisão social e técnica do trabalho, e suas atividades são tensionadas pelo conflito de interesses.38

Outro elemento fundamental para a análise da profissão é que a obra de Iamamoto abre o debate sobre o Serviço Social configurar-se como trabalho produtivo ou improdutivo, ainda que o maior empregador seja o Estado no âmbito dos serviços sociais. Para a autora a profissão não está inscrita de modo predominante em “atividades diretamente vinculadas aos processos de criação de produtos e valor, o que não significa o seu alijamento da produção em sentido amplo (produção, distribuição, troca, consumo)”. Entretanto, a profissão está integrada às condições indispensáveis ao funcionamento da força de trabalho, à extração da mais-valia (1982, p. 86; 2007, p. 256).

A crítica às formulações teóricas de Iamamoto sobre Serviço Social como trabalho, veiculada por Lessa (2007), na análise sobre a obra Serviço Social na Contemporaneidade, quando é antecipado o grande desafio profissional, com grandes repercussões, inclusive pela incorporação deste entendimento no Currículo Mínimo, passa, entre outros aspectos: pela identificação de todas as ações humanas ao trabalho, afastando-se do trabalho sua especificidade, ou seja, o intercâmbio com a natureza; pela identidade entre matéria prima, no caso do Serviço Social a questão social, e objetividade social; conceito de meios e instrumentos de trabalho é “ampliado para conter o que é necessário à profissão do assistente social; a postulação de um produto não material” do trabalho do assistente social, quando objetividade que não é material, na perspectiva marxiana, não é nada, já que o que particulariza as materialidades são as determinações ontológicas distintas; a identificação do assistente social como parte do trabalhador coletivo, por ser

38 Entre as ambiguidades destaca-se a condição de profissional liberal, porém predominantemente assalariado e características do perfil, como o predomínio absoluto de mulheres, de baixa escolaridade e renda.

necessário à reprodução social, socialmente útil, como parte do trabalho combinado, tendo por efeito a diluição do proletariado no “restante dos assalariados” e o “cancelamento da função social que faz o operariado uma classe distinta do restante dos assalariados” (Idem, pp. 89-105).39

A partir da perspectiva de Iamamoto, o Serviço Social (com ampla adesão) é considerado trabalho que transforma uma matéria-prima, no caso a questão social, que se insere em processos de trabalho e que o resultado é imaterial. Outra argumentação essencial na proposta teórica é que o Serviço Social é necessário à reprodução social, tem um valor de uso, resulta da divisão social do trabalho, participa do trabalho social produzido pela sociedade, podendo, na empresa ou em outros contextos determinados, ser um trabalhador produtivo membro do trabalhador coletivo.

Para Lessa (2007), na formulação de Iamamoto, o “trabalho deixa de ser o intercâmbio orgânico com a natureza para se converter na totalidade da práxis social” (p. 103), afastando-se das categorias de Marx. A perspectiva totalizante de reconhecer o Serviço Social como trabalho com produtos imateriais, para o autor incorreu em equívocos, já que a função do assistente social é prestar “serviços de assistência social”. O assistente social presta um serviço que interfere na “vida social através da reprodução de valores, culturas, comportamentos, etc.” (p. 98).

Apesar da interpretação reducionista de que Serviço Social presta serviços de assistência social, o que exigiria nesta parte uma ampla argumentação teórica sobre a composição dos sistemas de proteção social, a especificidade normativo-jurídica da assistência social e a dimensão assistencial como constitutiva das demais políticas específicas, cabe sublinhar a interpretação da profissão como prestação de serviços sociais com implicações ideo-políticas. Ressalta-se, nesse sentido, o papel “agregador” e direcionador dos projetos profissionais, sem com isso identificar a profissão como trabalho, compondo o trabalhador coletivo, ainda que a identificação ético-política seja esta.

Importante sublinhar que a definição do Serviço Social como prestação de serviços que reproduzem valores, comportamentos e culturas remete, na direção do

39 O objetivo da síntese do diálogo entre os autores foi situar a polêmica que permitiu deslocamentos na explicitação teórica e mesmo aprimoramentos que só fortaleceram a compreensão do acumulo teórico na compreensão da profissionalidade, da profissão inscrita nos processos mais amplos que contraditoriamente regulam e são regulados politicamente.

que Iamamoto preconiza, uma angulação totalizante da inserção profissional nos processos de reprodução da vida social, revelando, desse modo, uma contradição n no contraponto de Lessa à localização da profissão nos processos mais amplos. Resumir serviço social a uma “ideologia” reduz a compreensão das profissões como constitutivas da sociabilidade. As perspectivas reducionistas possuem coerência com visões neofuncionalistas e não sócio-históricas.

Na análise das convergências interpretativas da produção contemporânea que conta com especial contribuição de Iamamoto, sobressai o reconhecimento da questão social como “determinação essencial da constituição da profissão” apresentando-se na atualidade “(...) sob novas mediações históricas, que atualizam as características determinantes da lógica do capital nas particularidades da formação econômica, social e político-cultural da sociedade brasileira” (IAMAMOTO, 2007, p. 259).

Outros elementos importantes para a conceituação do que seja a profissão podem ser reconhecidos na produção da autora: profissional linha de frente na relação entre instituições e demandas por serviços, com poder de interferência na viabilização dos direitos e difusão de informações sobre a população usuária; um “técnico em relações humanas por excelência”; exercício profissional com dimensão educativa que incide sobre “valores, comportamentos e atitudes”; atua nas expressões das relações sociais no cotidiano da vida da população, dispondo de relativa autonomia (Idem, p. 262-263).

Para analisar o Serviço Social como profissão é essencial partir da contribuição teórica de Iamamoto (2007, p. 215) quanto à relatividade da autonomia, embora seja um profissional liberal, tendo em vista sua condição de trabalhador assalariado. Sua autonomia é “tensionada pela compra e venda dessa força de trabalho especializada a diferentes empregadores” (Estado, empresariado, organizações de trabalhadores e outras organizações da sociedade civil). Cabe, portanto, destacar que “o significado do trabalho profissional do assistente social depende das relações que estabelece com os sujeitos sociais que o contratam, os quais personificam funções diferenciadas na sociedade”.

A produção teórica de Marilda expressa o marco divisor em termos das elucidações teórico-críticas da profissão, reforçando o movimento totalizante do posicionamento da mesma nos processos sociais e os impactos ideo-políticos

decorrentes da dinâmica entre direcionamentos e referentes internos e determinantes sociais e institucionais.

O debate sobre a definição de um objeto de intervenção e das atribuições privativas tem demonstrado a insuficiência da delimitação teórica e política das expressões da questão social, quando se sabe que uma das dimensões da demarcação da especificidade profissional é a produção de conhecimento, exigindo- se, dessa forma, novos estudos que partam da produção acumulada.

O Serviço Social como área de conhecimento científico revela sua vitalidade, especialmente pela atividade político-institucional de suas organizações acadêmicas e profissionais articuladas política e programaticamente. A profissão produz conhecimentos relevantes, especialmente sobre a questão social, direitos e políticas públicas, dimensão fundamental na constituição de sua legitimidade, mas parece insuficiente para as respostas das especificidades diante das requisições.

A delimitação da especificidade profissional no exercício do trabalho social que presta um Serviço Social, desde a orientação até a implementação de políticas referenciadas por direitos reclamáveis e constitucionalizados, assim como pesquisas que revelem as contradições da realidade social e condições objetivas de vida, é conduzida por direcionamentos éticos e políticos. Assim a ética é a grande mediação do exercício profissional que se diferencia, em parte, das demais profissões, pela implicação das escolhas profissionais, pelos direcionamentos dos objetivos democráticos e mesmo emancipatórios das intervenções.