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3. ATUAÇÃO PROFISSIONAL NO “SOCIAL”: MATRIZES TEÓRICAS E PROFISSÕES

3.1 O SOCIAL “COESO” E O TRABALHO INTEGRADOR

O positivismo de Durkheim fundamenta a compreensão, a partir da obra Divisão do Trabalho Social (1893), da sociedade integrada por indivíduos que se diferenciam socialmente. O social, em seus elementos de diferenciação, é caracterizado como um todo, integrado por partes que coesas tendem à evolução.

Importante destacar as implicações da concepção de sociedade e seus impactos, talvez os mais reproduzidos, no trabalho social. Nesse sentido, alguns aspectos centrais para a análise da sociedade e do trabalho social, recuperados por autores contemporâneos como Elias (1999), se sobressaem: a concepção da interdependência entre os indivíduos, com disposições diferenciadas pela posição

50 Esta aproximação com os métodos das Ciências da Natureza e o sucesso das descobertas daquele tempo, na Física, na Química na Biologia, fez com que Comte intitulasse, inicialmente, a ciência explicativa da sociedade como “física social”. (COSTA, 1984)

que ocupam socialmente; a sociedade regida por leis naturais invariáveis e independentes da vontade e da ação humana.51

Por consequência, na matriz positivista, especialmente pela postura pretensamente neutra axiologicamente, naturaliza a ordem estabelecida e idealiza o desenvolvimento evolutivo da sociedade, na direção idealizada de sua diferenciação, industrializada, na transição da solidariedade mecânica para a orgânica. Assim, a diferença no social não expressa desigualdade, e sim estágio evolutivo de complexificação da própria sociedade.

O fundamento evolucionista sustenta-se na função do contrato social52, numa crescente diferenciação social baseada na centralidade da ciência, da técnica, na indústria, na engrenagem entre parte e todo “harmônico”, considerando que o indivíduo é a base da sociedade e nele centraliza, igualmente, a explicação das consequências dos insucessos no desenvolvimento individual e coletivo.

A centralidade no indivíduo sustenta propostas evolucionistas, a exemplo de Condorcet,53 no que se refere à regularidade do avanço da sociedade, dos estágios

progressivos de conhecimentos humanos acumulados, já que o progresso das luzes acompanha a evolução das virtudes, um avanço inexorável, que pode ser potencializado. Mantendo a centralidade no indivíduo o filósofo se distingue de demais teóricos liberais, como Smith (FERRARO, 2009), pelo princípio da igualdade de todos, para além da liberdade abstrata, porém uma igualdade dependente do indivíduo.

51 Na teoria de Elias a sócio-gênese permite a compreensão do processo de constituição de determinados grupos, num determinado tempo e contexto. A psicogênese possibilita a identificação de sentimentos e comportamentos que conformam determinada configuração, nem sempre decodificados. A abordagem sociogênica das funções psíquicas permite analisar o processo de relação com os outros ao longo do tempo, no processo civilizatório. As relações explicitam uma dinâmica de interpenetração, transfigurando nas relações de poder a noção de nós e de outros, a autoimagem que os indivíduos fazem de si e dos outros. As redes que se configuram são socialmente tecidas, conformando uma interdependência, tanto os indivíduos como a sociedade em geral, são agentes de um processo social (ELIAS, 1999).

52 A noção de contrato social decorre de contratualistas, notadamente Hobbes e Locke, que fundamentam a diferenciação do estado de natureza do estado civil, ou político, conformando uma regulação da vida social a partir de autoridades e normas constituídas. O contrato social é “uma espécie de pacto entre os homens para estabelecer tais normas e autoridades às quais se submeterão consensualmente (...) O Estado seria o produto do contrato social, ou seja, da conjunção de vontades individuais. (MONTAÑO, DURIGUETTO, 2011, p. 23)

53 Pessupostos como progresso do homem sustentam formulações teóricas de Condorcet que atribui à República o papel de instruir a todos, contribuindo, desse modo, no aperfeiçoamento das artes e das profissões, na redução da desigualdade que a situação econômica estabelece entre os homens, visando o bem-estar (In BRUTTI, 2007).

Tais fundamentos certamente influenciaram a educação brasileira, na centralidade do indivíduo como caso de sucesso e insucesso, nas medidas paliativas e moralizantes, no sustentáculo da meritocracia no acesso e permanência na escola, e depois na universidade que “filtra” os melhores.

O princípio do contrato social e do indivíduo como base sustenta o ethos da sociedade moderna, a centralidade na ciência, na técnica, na indústria, na ordem, na coesão social, modelando relações que tendem a evoluir progressivamente, na concepção analisada. Assim, o social se constrói a partir do indivíduo e não o contrário. Observa-se, por influência do iluminismo neste fundamento, a afirmação ideológica da inevitabilidade do progresso, dos avanços evolutivos do conhecimento humano.

Retomando a análise das implicações no pensamento funcionalista, destaca- se que é importante partir da conceituação de fato social 54, que possui características que contribuem para naturalizar a compreensão do social e do trabalho social disciplinador e ajustador. A coerção social generaliza o entendimento de que os fatos sociais confirmam comportamentos, independente da vontade dos indivíduos, a exemplo do idioma e da formação familiar.

O grau de coerção vai depender das sanções espontâneas e legais, considerando os tipos de solidariedade, mecânica ou orgânica. Assim, mais uma vez as instituições cumprem a função social do regramento da vida social, de consenso e coerção, da internalização de valores aceitáveis socialmente, completando a segunda característica essencial dos fatos sociais, ou seja, sua exterioridade em relação às consciências individuais.

A terceira característica do fato social, segundo Durkheim (1995) é a generalidade, já que se torna social todo fato que é geral, que se repete em todos os indivíduos, ou em sua maioria, manifestando-se sua natureza coletiva, distinguindo- os, dessa forma, das manifestações individuais e acidentais. Um exemplo de fato

54 Fatos sociais são, para Durkheim, distintos das repercussões individuais. “Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem, portanto, uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. (1995, p. 3- 4)

social é o crime, pelas características, além da generalidade, de coerção, especialmente pela aplicação das sanções com impacto nas consciências individuais, e de exterioridade, posto que antecede os indivíduos.

Uma análise mais aprofundada da compreensão do que seja o social explicita uma funcionalidade do pensamento social positivista à racionalidade burguesa, sendo a desigualdade um aspecto natural do processo evolutivo, cabendo às instituições sociais o papel de restabelecer a coesão social, superar conflitos, reproduzir valores que previnam estados mórbidos do corpo social. Nessa perspectiva, a ordem social é constitutiva da sociedade e as mudanças sociais relacionadas às atividades dos indivíduos e grupos sociais, sem evidentemente romper com algo que é anterior, ou seja, a própria ordem.

Em analogia a um ser vivo, a sociedade é um sistema de órgãos no qual cada um tem um papel particular, sendo que determinados órgãos possuem uma condição diferenciada e privilegiada, o que é natural, funcional e inevitável. Aspecto que revela o caráter contrarrevolucionário de sua teoria.

Importante destacar que os chamados estados de “anomia” (ausência de normas) podem gerar processos de conflitos, de “desagregação social”. Aspecto que pode ser corrigido pela difusão de valores sociais agregadores, especialmente pela atuação das instituições centrais, para a assimilação das regras legitimadas e socialmente aceitas: a Igreja; o Estado; a escola; e a família.

A política social pode ser concebida, a partir da matriz positivista, como um mecanismo desenvolvimentista que favorece o acesso às oportunidades, visando o bem estar social, a inclusão e integração social. Como a integração social das partes, assim como na fisiologia, tende à agregação entre elas e das partes com o todo, o natural é a estabilidade, o equilíbrio, o progresso, a solidariedade social.

Os laços de coesão e de solidariedade dependem das sociedades, sendo que nas menos desenvolvidas, como as tribais, tal solidariedade se manifesta de modo mecânico, considerando, especialmente, a divisão incipiente do trabalho. Já a interdependência dos indivíduos, em sociedades mais complexas e desenvolvidas pela industrialização e divisão do trabalho, produz a solidariedade orgânica. Entretanto, ressalta-se o papel das instituições responsáveis pela transmissão de valores que reforcem e garantam a manutenção da integração social (DURKHEIM, 1978).

Assim, as instituições que exercem esse controle nas sociedades desenvolvidas se complexificam em sua função agregadora, diferentemente das sociedades menos desenvolvidas, uma vez que a consciência coletiva expressa o nível de reprovação que impacta sobre as consciências individuais. Dessa forma, o mesmo fato social possui contornos diferenciados se comparado sociedades primitivas e desenvolvidas, exigindo desta última maior mediação regulatória.

Ainda quanto ao controle da sociedade, a consciência coletiva revela o grau de agregação de costumes, hábitos, noções, representações sociais, reforçando uma dimensão de coerção que difunde valores que possibilitam a coesão social, de modo que os elementos desagregadores, que dificultam os estados de equilíbrio e controle estável, conduzem a um estado patológico, a uma ausência de normas. A educação, por exemplo, cumpre o papel de “produzir o ser social”, sendo que a pressão social “tende a modelar” a criança ao meio social (DURKHEIM, 1995, p.6). Assim sendo, os estados de desorganização da sociedade devem ser corrigidos, para o restabelecimento da ordem social e da tendência evolutiva.55

A aplicação funcionalista do pensamento social positivista descreve a sociedade como um organismo formado por partes que interagem. A Teoria Social em Durkheim caracterizou tipos de sociedades, ou seja, simples, primitivas e industriais; identificou elementos de coesão social, notadamente os tipos de solidariedade, mecânica e orgânica, que dinamizam a regularidade da ordem social; e formas de controlar a sociedade, especialmente a divisão do trabalho, em seus traços característicos, e a consciência coletiva, e sua relação com as instituições de integração social.

A base darwinista de análise das sociedades pressupõe, e tem como consequência, a centralidade no indivíduo, a diferenciação social pela hierarquização, ou a evolução como finalidade última, a diferença em detrimento da desigualdade, o que sustenta políticas e ações meritocráticas. Outros aspectos possuem sintonia com a matriz positivista e sustentam propostas neopositivitas atualizadas para a contemporaneidade: o recurso da técnica, da ciência; a preparação dos indivíduos para a produção e suas requisições, para o consumo; a

55 As análises de Comte e de Durkheim são “fundadas sobre premissas político-sociais tendenciosas e ligadas ao ponto de vista e à visão social de mundo de grupos sociais determinados. Sua pretensão à neutralidade é às vezes uma ilusão, às vezes um ocultamento deliberado, e, frequentemente, uma mistura bastante complexa dos dois” (LÖWY, 1994, p. 32).

subsunção do econômico e do social, com submissão dos interesses sociais e adaptação às exigências postas. Tais aspectos condicionam, sobremaneira, a constituição do Estado e das políticas sociais.

A partir desse referente teórico-metodológico, são produzidas, no campo do trabalho social, inferências sobre, por exemplo, a qualidade dos vínculos e laços que contribuem no desenvolvimento da sociedade integrada. Embora se afirme a neutralidade axiológica como fundante da objetividade, a formulação de leis gerais e suas consequentes generalizações, são funcionais, pela correção dos fatores de “desequilíbrio social” ao projeto hegemônico de harmonização das relações estruturalmente contraditórias e históricas.

Destacam-se, nas derivações teórico-metodológicas, aplicações cotidianas no trabalho social, que reforçam o poder das instituições sociais no controle e na moralização da sociedade; a aplicação exemplar de normas e regras sociais que conduzam condutas individuais, considerando o impacto nas consciências do que seja aceitável e reprovável; a hierarquização da sociedade, como somatória interdependente de indivíduos, por prestígio e diferenciação social; análises empiristas com reforço às características exteriores, à identificação da repetição e generalização; o reforço das estruturas predispostas a estruturarem e não serem estruturada pela vontade dos indivíduos; a implantação de propostas e ações desenvolvimentistas corretivas de desequilíbrios sociais; e o reforço de elementos de coesão e integração social, como a cooperação e solidariedade.

Considerando as orientações metodológicas desta matriz e seus desdobramentos, compete ao serviço social “ajudar” os indivíduos e grupos a identificar e resolver ou minorar os problemas oriundos dos desequilíbrios entre eles e o ambiente; identificar áreas potenciais de desequilíbrios entre indivíduos e grupos e o ambiente, a fim de prevenir este desequilíbrio (VIEIRA, 1979, p.37).

Com o propósito de promover indivíduos nos contextos sociais e “conservar” ou estimular aspectos que contribuem para superar disfunções sociais, o assistente social “desenvolve uma ação em benefício do indivíduo, para capacitá-lo na orientação da sua vida”, tendo em vista a interação entre indivíduos dentro do sistema (Idem, p.25).

A incidência da matriz positivista no âmbito do Serviço Social resultaram em propostas modernizadas: novas competências no campo da política social e do

planejamento, ou da chamada macro atuação, administração de serviços sociais, além do tradicional atendimento direto, de caráter “corretivo, preventivo e promocional, destinados aos indivíduos, grupos, comunidades, populações e planejamento” (CBCISS, 1986, p. 28); e de definições que “ampliam” enfoques do indivíduo em sociedade, como “globalidade”, sistema aberto. Entretanto, a naturalização da sociedade, a proposição de “melhoramentos” da funcionalidade ao projeto de manutenção da estrutura, são elementos mantidos.

No contexto de renovação da profissão em sua perspectiva modernizadora, percebe-se a incidência da ideologia desenvolvimentista em sintonia com a matriz teórico-metodológica positivista em sua versão estrutural-funcionalista, requisitando do assistente social, no limite, competências de planejamento para além da execução terminal de políticas. Já a teoria geral de sistemas, em sua proposta “psicologizante” do social, expressa o aprimoramento do repertório profissional no desenvolvimento de técnicas inerentes aos processos interventivos, atualizando as referências teórico-metodológicas às exigências da política social refuncionalizada.