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SERVIÇO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL: HIBRIDISMO E RELAÇÃO FUNCIONAL

2. REVISÃO CRÍTICA DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL

2.1 SERVIÇO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL: HIBRIDISMO E RELAÇÃO FUNCIONAL

A política social é um campo de mediação fundamental para o exercício profissional do assistente social, sendo uma resposta estatal estruturante da profissão face às requisições legitimadas no contexto de vocalização pública de demandas dos trabalhadores e incorporação parcial em forma de direitos, políticas, serviços. Serviço Social não se reduz à política social, mas sua gênese e legitimação estão diretamente relacionadas à política social como mecanismo de regulação do trabalho e demais dimensões da vida social.

A ideologia positivista/funcionalista reforça a concepção de Estado e suas instituições vinculadas, entre elas a política social, como expressão de um conjunto de regras, normas e valores que regulam num dado momento evolutivo de complexificação e diferenciação da sociedade industrializada, uma necessidade humana, na direção do desenvolvimento social, e da difusão de valores sociais que cumprem a função de coesão social, de agregação de indivíduos posicionados na divisão social do trabalho. Nesta perspectiva o Estado é neutro, a serviço de todos, com base na lei, o que reforça a lógica de fragmentação das políticas voltadas à geração de oportunidades, contribuindo, assim, para a construção da solidariedade orgânica. Partindo-se do pressuposto teórico de que a diferenciação é o elemento caracterizador das sociedades complexas, é preciso que as tarefas individuais correspondam às aptidões, sob o risco da desintegração social, daí a importância do Estado e outras instituições na difusão de valores (DURKHEIM, 1978).

As matrizes teóricas que disseminam concepções e práticas desenvolvimentistas de política social, sustentadas no pensamento liberal, partem do entendimento do direito como outorga, da política e seus serviços correspondentes como mecanismos institucionais de correção das distorções do sistema. Este último se estrutura e funciona a partir do indivíduo, que compõe uma sociedade enquanto somatória diversificada de funções e papéis. Tal compreensão se “ajusta” à cultura meritocrática, baseada na herança, na sucessão de poder, de posições sociais, da distinção dos mais aptos, para lembrar a lógica darwinista de análise da sociedade.

A meritocracia combina com focalização, residualidade e assistencialismo, traços fortes da política social brasileira.

O Estado e a política social resultam e se engendram das e nas correlações de força e poder, dos projetos societários em disputa. Evidente que por esta angulação, a política social sofre os tensionamentos da classe trabalhadora, mas é produzida numa dinâmica institucional e política em que impera o poder de uma classe sobre a outra, por isso possui como atributo a contradição entre regular, participando da reprodução social, e corresponder parcialmente às demandas configuradas como direitos legítimos.14

Na contramão de concepções estruturalistas, institucionalistas e economicistas, destaco a política social como resultante das relações de classe, cuja hegemonização é conduzida por uma classe fundamental, que agrega e direciona um conjunto de interesses e formas de organizações políticas, neutralizando possibilidades de crise orgânica, dinamizando a própria política social no âmbito do Estado.

Não se afirma com isso, que a política social, como preconizam análises interacionistas, resulta do efeito gangorra: mais direitos para sociedades mais organizadas, pela disposição e posição política dos indivíduos. Não se anula e nem se minimiza a determinação das relações de classe, do poder elaborado em condições objetivas e concretas, mas se consideram outras conjugações que podem marcar na lei institucionalidades e processos políticos que reforçam e dão sustentação a valores e princípios emancipatórios.15

14 Na perspectiva gramsciana o Estado é constituído tanto pela sociedade civil quanto pela política, que é formada pelo conjunto de mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência (controlado pela burocracia executiva e policial- militar), reprimindo legalmente os grupos que não “consentem”. A sociedade civil é formada, precisamente, pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, etc. “A supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção’ intelectual e moral. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que tende a liquidar ou a submeter também mediante a força armada, e é dirigente dos grupos afins aliados” Gramsci (2002. p. 62-63). A crise orgânica expressa a crise do próprio bloco histórico, base econômico-social e ético-política, portanto, uma crise de hegemonia, que pode conduzir transformismos ou resultar na construção de uma nova cultura. É a partir do conceito de bloco histórico que a política social pode ser entendida, na contradição entre regulação e conquista, coerção e consenso.

15 A distinção entre emancipação política e emancipação humana é necessária para não reduzir o próprio conceito a toda conquista na ordem do capital. Emancipação política se constituiu, conforme a análise desenvolvida em A questão judaica, a partir da conquista de direitos civis e

Se cada classe dominante produz seu Estado numa dada formação social (POULANTZAS, 2000), falar da política social num determinado contexto é considerar o projeto de classe que hegemonizou este mesmo Estado. Aspecto que permite uma estreita relação funcional entre Política Social e Serviço Social.

A partir da materialidade do poder, ou seja, relações de produção e divisão de classes, o Estado produz mecanismos progressivamente sofisticados para interferir no “social”, nas relações, fragmentando e “patologizando” as demandas, o que passa a ser reforçado quando os movimentos, as forças sociais também são fragmentadas e baseadas na luta corporativista, o que se agrava em contexto de ditaduras, quando a democracia formal é colocada em suspenso.16

A atuação ampliada do Estado por meio de uma sociedade civil, elaboradora da hegemonia dominante, permite a difusão de valores que cumprem a função de reproduzir no cotidiano a base desigual de sociedade, e mais, reforça os mecanismos de controle do social. Assim, poder de classe é plasmado em diversas dimensões da vida social, justificando a relação desigual na relação entre quem acumula mais riqueza e poder, em detrimento daqueles que servem e se submetem; no acesso desigual aos bens e serviços de grupos e frações de classe; na ascensão social pela progressão meritocrática e diferenciadora na educação; entre outras dimensões da vida social. Trata-se, portanto, de um componente estruturador das relações singulares, pelo impacto imaterial, subjetivo, na incorporação social de valores direcionados por projetos hegemônicos.17

Na concepção do Estado disputado e direcionado por relações de força e poder engendradas nos projetos políticos coletivos, a malha de relações expressa o

políticos, direitos trabalhistas e sociais, do desenvolvimento da cidadania e da democracia. Nesse sentido a emancipação política expressa o acúmulo político nos marcos da liberdade e igualdade formais. Já a emancipação humana requer a eliminação de toda forma de desigualdade, dominação e exploração, na direção da superação da ordem societária. Em Manuscritos

econômicos e filosóficos, Marx afirma que a “supressão da propriedade privada constitui, desse modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas” (2001, p. 142).

16 Para A. Heller (1982) no contexto de ditaduras a satisfação do carecimento tende a ser manipulada. Nesse sentido, a democracia formal é condição preliminar para a satisfação de carecimentos radicais, porém não é o suficiente.

17 “O Estado desempenha um papel bem mais amplo e assume novas funções à medida que se desenvolve a estrutura do capitalismo. (...) A partir da constituição do Estado moderno e da ampliação da participação política, ligadas às conquistas sociais e políticas resultantes das lutas dos trabalhadores, a preparação da opinião pública para aceitação de determinadas ações políticas realizadas pelo Estado torna-se fundamental na conquista e conservação da hegemonia (...) as funções de hegemonia passam a ser exercidas pela sociedade política e sociedade civil” (SCHLESENER, 1992. pp. 20- 21).

sentido dos “variados discursos” para os diversos projetos que ocupam a arena política, sob a prevalência, no movimento equalizador, dos elementos que buscam o “equilíbrio” reprodutor, cuja finalidade última é manter a hegemonia.18

Particularmente no âmbito da política social destaca-se uma resposta política e institucional, por parte do Serviço Social, funcional a um projeto político que fatia e fragmenta a questão social, impulsiona o interesse privado, a exemplo da filantropização estatal, demandando um trabalho social igualmente fragmentado, moralizador e psicologizado. A política social se coloca como mecanismo de administração das expressões da questão social, contemplando, dessa forma, as demandas da ordem monopólica conformando, “pela adesão que recebe de categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas operantes” (NETTO, 1992, p.26-27).

A política social, espaço privilegiado e central para inserção de profissões do campo social, para a mediação entre necessidades sociais e Estado, é prova inexorável da hegemonia monopolista. Os processos institucionais que revelam sua funcionalidade econômica, política e social, desdobram-se no controle e na regulação da força de trabalho e proteção social ao exército de reserva e aos inseridos com maior precarização no mundo do trabalho. Cumpre, portanto, uma função de sustentabilidade do desenvolvimento econômico na recomposição à crise estrutural.

A estruturação da esfera pública, no contexto de afirmação de um padrão de proteção social particularizado no Brasil a partir da década de 1930, delineia um Estado regulador da vida social para a reprodução da força de trabalho, por meio de um conjunto de instituições voltadas à administração de conflitos e da desigualdade social, no contexto de aprofundamento da questão social. Tal processualidade permite ao Estado atuar sobre interesses imediatos, sob o argumento da “melhor”

18 Em Gramsci hegemonia representa “a capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de classe. Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante, até o momento em que - através de sua ação política, ideológica e cultural - consegue manter articulado um grupo de forças heterogêneas, consegue impedir que o contraste existente entre tais forças exploradas, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve à recusa de tal ideologia, fato que irá coincidir com a crise política das forças no poder” (GRUPPI, 1978, p. 70). Na concepção gramsciana a sociedade civil ganha peso político na construção da hegemonia. Sociedade civil é o “conjunto de organismos chamados ‘privados’ e que correspondem à função de ‘hegemonia’ que um grupo exerce em toda sociedade” (Idem, p. 11).

pressão política, com consequente “autonomização” da política (RAICHELIS, 1998). Aspecto que baliza os argumentos meritocráticos e corporativistas, por contemplar setores mais organizados ou com capacidade de produzir consenso.

A dinâmica imbricada entre Serviço Social e Política Social reforça o entendimento, sustentado em categorias como historicidade e contradição, de que o Estado não é um ente neutro e a serviço de todos, na aplicação da regra consensuada, da lei, oferecendo a base para compreensões funcionalistas, ora desenvolvimentistas, de que direitos e as políticas referentes são outorgas e não contradição entre conquista parcial e regulação.

O Estado e a política social resultam das relações de força e poder, da atuação/inserção de classes (POULANTZAS, 2000). Evidente que a análise do Estado e da política social como resultantes de relações de força e poder, operando uma interferência direta na profissionalização do Serviço Social, não redunda no processo de gangorra de interesses, limitando a angulação de análise do Estado e mesmo da profissão, dando a ideia de que as políticas e os direitos são insuficientes porque as organizações são fracas. Tal análise acomoda as forças dominantes e impulsiona perspectivas associativistas ou mesmo institucionalistas, na medida em que apenas os mais organizados são contemplados com as respostas do Estado.

O Estado expressa a hegemonização de um projeto societário dominante, pela atuação da sociedade civil que quanto mais agregada aos interesses do projeto hegemônico, de modo consciente ou não, mais se funcionalizam ao próprio projeto e aos movimentos transformistas que procuram neutralizar crises do bloco histórico.19

A presente compreensão procura reconhecer que o modo de produção determina a configuração do Estado em resposta aos interesses dominantes, embora seja disputado por outros projetos societários. Caso contrário, corria-se o risco de reforçar angulações que preconizam a falsa homogeneidade e as visões

19 Por meio da sociedade civil é que as classes sociais buscam exercer a sua hegemonia pela disputa do poder. Os organismos voluntários coletivos são os portadores materiais específicos da sociedade civil, tida como esfera do ser social na dimensão política. Sem o conjunto de organizações materiais não há direção ideo-política, não há hegemonia. A visão gramsciniana de Estado se contrapõe à leitura do mesmo com sendo um bloco monolítico, homogêneo. Qualquer que seja a sua ligação de classe social, não há como isolá-lo das concepções diferenciadas na sociedade. Supõe-se a necessidade da luta política. Coutinho destaca que na análise em Gramsci “(...) onde a sociedade civil é fraca, onde as tradições de democracia política e de organização popular autônoma são débeis ou inexistentes, a passagem para uma nova ordem não pode contar com os mesmos pressupostos” (COUTINHO, 1992, p. 84).

estruturalistas. A apropriação pelo Estado dos meios de produção para a estabilidade da classe dominante se subsumi no imperativo do controle do social, da mobilidade social das classes, do acesso regulado à educação, aos serviços sociais, aos bens e riquezas produzidas socialmente. Portanto, interessa ao projeto político hegemônico reafirmar que é preciso, nos marcos da democracia formal, se organizar, participar, reivindicar, para conquistar, enquanto opera-se a gestão dos interesses dominantes oliguárquico-burgueses.20

A legitimidade de um projeto político no âmbito do Estado está assentada na produção de consensos, que perpassam projetos coletivos diversos, além do emprego da força policial militar, completando o sentido da hegemonia com consenso e coerção, para a garantia da relativa estabilidade social. Nesse sentido, a política social é funcional, sem com isso suprimir o espaço da contradição e da saturação das contradições da própria realidade social, ao sistema de produção, participando da reprodução social ampliada.

O padrão de proteção social brasileiro erguido na era dos monopólios caracteriza-se pela fragmentação, seletividade e focalismo em resposta às múltiplas expressões da questão social. A incorporação de parte das demandas sociais configurou, a partir da relação tensa entre as forças sociais, sob a égide dos interesses corporativos, um padrão residual de proteção social. Aspecto que converge com a expressão de um padrão meritocrático.

A particularidade brasileira de estruturação do padrão de proteção social e de emergência do Serviço Social, e demais profissões do campo social no âmbito da política social, é configurada por uma cidadania concedida, na análise do legado patrimonialista, das relações de mando e favor (SALES, 1994), e por uma cidadania regulada. A representação dos indivíduos como não cidadãos, sobretudo pela exclusão do mercado de trabalho, nos termos da cidadania invertida de Fleury (1989), revelam um padrão pautado no acesso aos direitos pelo mérito.

20 A particularidade da questão social brasileira revela uma herança colonial e patrimonialista atualizada nas formas de reprodução de relações de poder, em parte pela transição capitalista que dispare do modelo universal de desenvolvimento da democracia burguesa, constituindo uma democracia restrita, voltada aos interesses das oligarquias, do grande capital (Fernandes, 1975). A expansão monopolista brasileira mantém a dominação imperialista, com efeitos agudizadores da desigualdade, aprofundando disparidades econômicas, sociais, culturais, regionais/territoriais. O que sobressai são os processos de exclusão dinamizados por uma cultura eletista e antipopular.

O mérito é um elemento estruturante das práticas de corte social, bastante característico das prestações de serviços sociais no Brasil. Como exercício de poder simbólico à troca pelo acesso a bens culturais, recursos, serviços, programas, projetos, benefícios, o mérito é plasmado socialmente no cumprimento de regras sociais, na resposta aos pactos de convivência e socialização. Aspectos que podem, inclusive, ser identificados, nos espaços de participação popular.

O indivíduo como referência é um preceito da meritocracia, conformando, na diferenciação social: oportunidades, vocação, dedicação e aptidão. O merecimento acaba sendo, na constituição da sociabilidade moderna, o recurso individual pelo poder e distinção social. É com base no princípio da meritocracia que as políticas sociais se estruturam; que o Estado burocrático regula acessos e permanências no contexto social. Servidores são selecionados pela capacidade, alunos são avaliados pelo merecimento, sob a retórica da competência, do aumento da produtividade, da justiça e do desenvolvimento social.

Na modernidade, a meritocracia engendra relações sociais, o que se aprofunda na cultura da competição estimulada socialmente nos processos educativos e na difusão de valores. Daí sua relação com a concepção darwinista da sociedade, assumindo assim a conotação ideológica.

A lógica da distinção pela agregação de poder obtida por vocação, talento e oportunidades está sustentada por um conjunto de valores que localizam os indivíduos em suas posições sociais e econômicas pela capacidade comprovada socialmente. Assim, as sociedades modernas se influenciam pelo modo meritocrático de reprodução social (VALE, 2009). A meritocracia acaba sendo um elemento funcional à sociabilidade capitalista, particularmente na justificação da desigualdade e valorização da diferença.

No contexto da hegemonia do padrão fordista/taylorista, a racionalidade emergente exige a difusão de regras de conduta individual, familiar e coletiva reprodutoras das condições sociais, econômicas, políticas e culturais vigentes. O Serviço Social emergiu funcional, pelo cunho educativo de sua intervenção, pelo projeto conservador que o estrutura e o consolida, às lógicas de assistir, controlar, vigiar, punir, institucionalizar, segregar, neutralizar, despolitizar. As lógicas controladoras, fragmentadoras e meritocráticas estão na base da Política Social e do Serviço Social.

Nesse sentido, a crítica aos fundamentos do Serviço Social, bem como das políticas sociais, espaço de mediação no acesso aos direitos e trabalho social, requer uma análise dos pressupostos conservadores, tendo em vista a racionalidade imanente nos processos interventivos, justificando as primeiras respostas autorregulatórias da profissão, assim como, e especialmente, a ruptura com o conservadorismo na profissão, pela crítica teórico-política sistemática às bases doutrinárias, pragmáticas e positivistas, particularmente pelo tratamento moralizante atribuído à questão social, e à manipulação de variáveis empíricas do cotidiano, com consequente ocultamento das contradições e das determinações da realidade social.21

Importante destacar que as expressões que particularizam um trabalho social conservador possuem aderência a um projeto movido por uma dada racionalidade. Uma das características do exercício profissional conservador, sob a lógica formal, é o pragmatismo. A atuação pragmática, assistemática e imediatista é funcional, independente das particularidades históricas, à hegemonia de projetos que sustentam a concentração de renda, riqueza e poder, objetivo último de projetos conservadores.

2.2 BASES SÓCIO-HISTÓRICAS DA IDEOLOGIZAÇÃO CONSERVADORA: