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SOCIEDADE CONTRADITÓRIA E PROJETO ÉTICO-POLÍTICO: TOTALIZANDO A

3. ATUAÇÃO PROFISSIONAL NO “SOCIAL”: MATRIZES TEÓRICAS E PROFISSÕES

3.3 SOCIEDADE CONTRADITÓRIA E PROJETO ÉTICO-POLÍTICO: TOTALIZANDO A

TOTALIZANDO A ANÁLISE DO “SOCIAL”

Em Marx (1818-1883) fica revelada a contradição das sociedades em suas relações de classe. As particularidades sócio-históricas expressam relações sociais de produção e processos de reprodução social. Tais relações manifestam a dominação de uma classe sobre a outra, e os consequentes antagonismos.

Uma atitude crítica diante da vida social exige saturar a realidade em suas contradições, no movimento de totalização de suas determinantes causais, complexos e tendências, apreendendo sua historicidade, nas determinações presentes e nas possibilidades a serem potencializadas, em termos de processos sociais, econômicos, políticos e culturais. Evidente que tal saturação, no emprego da capacidade de agir racionalmente, requer a apreensão da existência da realidade. A atitude diante da realidade, substrato da intervenção social, implica teleologia, objetivação de escolhas entre alternativas concretas.

O cotidiano, base de intervenção e crítica, possui uma regularidade, uma programação que prende os sujeitos ao singular, ao imediato, ao factual (NETTO, 2000). Tal causalidade é rompida pelos sujeitos com capacidade de, a partir da heterogeneidade do cotidiano, da contradição constitutiva, suspender o próprio cotidiano, de modo a sair e voltar deste em novos e superiores patamares de compreensão e práticas. Isso porque a sociedade não é uma entidade de natureza teleológica. Os indivíduos sociais agem, individual ou coletivamente, tendo por base necessidades e interesses, implicando projeção, finalidades. Assim, apenas na vida cotidiana o ser genérico, coparticipante do coletivo, da humanidade, se encontra em potência, nem sempre realizável (Idem).

Na relação entre razão e cotidiano há uma tendência das análises sobre os fenômenos sociais ocultarem suas reais determinações. Assim, os resultados são tidos como causas dos fenômenos. Para Marx no capitalismo os homens apreendem a realidade de maneira inversa da sua gênese e desenvolvimento. Há, portanto, uma inversão ontológica, por consequência, entre aparência e essência (MARX, 1978).

Marx avança no entendimento ontológico da Teoria Social, da análise sobre a realidade, na compreensão de que o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência. Nessa matriz, há a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. (NETTO, 2009 p. 7)

Em Marx, a crítica do conhecim ento acum ulado consiste em trazer ao exam e racional, tornando -os conscientes, os seus fundam entos, os seus condicionam entos e os seus lim ites – ao m esm o tem po em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecim ento a partir dos processos históricos reais. É assim que ele trata a filosof ia de Hegel, os econom istas políticos ingleses (especialm ente Sm ith e Ricardo) e os socialistas que o precederam (Owen, Fourier) ( Idem , p. 7).

No movimento crítico-dialético o objeto tem existência objetiva, independentemente do pensamento do pesquisador, como supõe o idealismo. A superação da aparência fenomênica, imediata, sendo esta um nível da realidade, expressa a apreensão da essência do mesmo objeto. Nesta apropriação da matéria parte-se do entendimento de que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Afinal, são “os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio material, que ao mudarem esta sua realidade, mudam, também, o seu pensamento e os produtos do seu pensamento” (MARX, ENGELS, 1984, p.23).

Em contraposição às propostas metodológicas empiristas, que manipulam as variáveis do cotidiano e capturam o singular como objeto do conhecimento, passível de comprovação empírica, as proposições decorrentes do pensamento kantiano, que pressupõem a impossibilidade de conhecer a “coisa-em-si”, mas apenas as sensações capturadas pelo sujeito em relação ao objeto, ou, ainda, as formulações hegelianas em que o sujeito aparece como o processador do conhecimento identificando-se com o próprio objeto.

Marx, numa passagem em A Sagrada Família, afirma que os filósofos especulativos explicam o objeto como autoatividade do sujeito, como mero resultado de seu “próprio intelecto abstrato”, desconsiderando as determinações do mundo real e concebendo a realidade como produto do pensamento.

Em Os Grundrisse, versão inicial da crítica da economia política, “Introdução” redigida em 1857, Marx aborda como o pensamento captura gnosiologicamente o real. No prefácio “Para a crítica da Economia Política” problematiza a análise de uma cidade pelo conceito de população, sem elucidar seus elementos constitutivos, o que não passaria de uma abstração. A análise dos seus elementos constitutivos implica na análise do trabalho assalariado, subordinado ao capital, reproduzindo, por sua vez, divisão do trabalho e outros aspectos determinantes. Ao se avançar nas abstrações mais sutis é possível atingir uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações. Assim, o objeto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o verdadeiro ponto de partida (MARX, 1978).

Para Marx o contato com o mundo objetivo configura um todo caótico a ser representado na consciência e por abstrações chegar-se ao concreto real, que por meio das mediações revela as “legalidades particulares e gerais”. No entanto, trata- se de uma perspectiva ontológica, descartando-se formalizações metodológicas que desconsiderem as relações sociais numa dada formação social.

A sociedade não é um todo unificado por partes, como pressupõe o pensamento positivista. É sim uma totalidade concreta, complexa. Assim, é preciso descobrir as relações entre totalidades constitutivas e a totalidade em sua máxima complexidade, ou seja, a sociedade burguesa (LUCKÁCS, 1979). “Tais relações nunca são diretas; elas são mediadas não apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade”. A unidade na diversidade da totalidade concreta que é a sociedade burguesa é analisada na construção de um “sistema de mediações” (internas e externas) que articulam tais totalidades (LUCKÁCS, 1979; NETTO, 2009, p. 29).

Se a história é a substância da sociedade e os homens portadores de objetividade social, as transformações do cotidiano, por sua vez, dependem da consciência dos indivíduos sociais, dos valores, concretizados em condições objetivas.

Numa análise sócio-histórica parte-se do reconhecimento de que o passado é configurado pelas determinações que permitem os sujeitos serrem o que são. O futuro é um tempo que interpela e desafia a sociedade, quanto às possibilidades de reagir ao presente, antecipando neste último, finalidades, teleologias. Assim, o presente, a cotidianidade, é o foco das atenções, e a ética é a dimensão que permite saltos intelectivos e práticos aos sujeitos.

A racionalidade burguesa suprime as dimensões ontológicas do real que permitem saltos civilizatórios, reduzindo a existência à imediaticidade do presente. Assim, a tendência é dar respostas técnicas e políticas no campo do superficial, na manipulação de variáveis empíricas do real. Tende-se ao senso comum, ao juízo conservador das pessoas, à criminalização dos pobres, à individualização dos problemas.

A concepção burguesa é incapaz historicamente de considerar o tempo como uma totalidade ontológica, na articulação entre passado, presente e futuro. O apego é pelo presente, pela disputa, pela mercantilização e “coisificação” das pessoas (MÉSZÁROS, 2002).

A lógica destrutiva da sociabilidade burguesa parece inabalada, mesmo mostrando suas crises orgânicas. Evidente que diante de um longo período contra- revolucionário, ainda que alguns ventos se mostrem fortes na lógica da contra-mola que resiste, há uma sensação de impotência, de ausência de perspectivas projetadas por projetos societários.

Como afirma Konder (1997) quando o sujeito sai de cena o empirismo reina, mas não o empirismo simplista, o sofisticado, alienando aqueles que olham e confundem o real com o existente, pelo processo de alienação, uma vez que a realidade é mais do que o existente, é também o possível. Entretanto, sua totalização depende do rigor teórico, que confronta as contradições da realidade, de atitude crítica, ético-política mobilizada pelos sujeitos, pela práxis, pela antecipação no presente do que se projeta para o futuro, utilizando-se do recurso da totalidade e da história, visando mediatizar os fatos empíricos, retirando deles a aparência de fetiches isolados ou de coisas naturais (COUTINHO, 1994).

É com o sentido da historicidade e da objetividade de valores construídos na teia das relações concretas que se passa a compreender a necessária e estratégica análise da realidade sócio-histórica, das condições de vida e de trabalho da

população, na identificação de suas necessidades, e no fortalecimento das formas inventivas de resistir, sem sucumbir diante da aparente impossibilidade. Aspectos que dão centralidade aos direcionamentos éticos e à incidência do pensamento crítico na formação e no exercício profissional dos assistentes sociais brasileiros.

A aproximação do Serviço Social com o pensamento dialético e com os “marxismos” provocou inflexões, ainda que nos limites da autocracia burguesa, ideoculturais e sociopolíticas “estruturantes” da ruptura com o conservadorismo. O universo da profissão se “oxigenou” de novas representações e intervenções, que vinculam a profissão às classes subalternas, marcadas pela diversidade de angulações e objetivações teórico-metodológicas. Tais particularidades são identificadas no estruturalismo de Louis Althusser, explicitando um marxismo sem Marx, com consequente supervalorização da estrutura.

No caso do Serviço Social outros aspectos particularizam a interpretação teórica althusseriana, pela redução do pensamento a manuais; na pobreza teórica (NETTO, 1998); a recusa da via institucional, entendida como aparelhos monolíticos; o “militantismo” e “messianismo” (IAMAMOTO, 1992). Entretanto, é com esse marxismo equivocado que o Serviço Social questiona a prática profissional, as instituições, o Estado, a política social, a realidade social, inaugurando uma perspectiva de ruptura com o tradicionalismo, com as formas conservadoras de explicar e agir no social.

No campo do Serviço Social destaca-se a influência de Antonio Gramsci na análise do Estado ampliado; do assistente social como intelectual orgânico; da construção do projeto ético-político, do papel da sociedade civil na manutenção ou construção da hegemonia; do sentido ampliado de classes pela definição das classes subalternas. A influência de Agnes Heller possibilita uma análise consistente do cotidiano, da ética. Em Lukács, teórico de grande influência na produção acadêmica contemporânea, as mediações ganham sentido ontológico central na crítica à realidade e no trabalho social.

A análise do social e do trabalho no social passa a expressar, de modo geral e especialmente, a problematização do cotidiano, ressaltando-se o emprego da autonomia relativa (IAMAMOTO, 1982), na perspectiva do fortalecimento das demandas do trabalho; a afirmação de um paradigma das relações de força e poder, balizada por relações de classe (FALEIROS, 1981); o Serviço Social como trabalho

e as a questão social como base de fundação e de desenvolvimento da profissão, sendo suas expressões objetos de intervenção (IAMAMOTO, 1998); e o Serviço Social orientado pelo projeto ético-político-profissional hegemônico (NETTO, 1999).60

A produção acadêmica e o debate teórico nos espaços políticos da profissão dinamizam o pluralismo inaugurado com a renovação do Serviço Social (NETTO, 1998), configurando particularidades analíticas que se aproximam pelo “tom” crítico, pelo reconhecimento da contradição e pela antecipação de nova ordem societária no presente, teleologia que passa, hegemonicamente, a orientar o trabalho social da categoria.

Importa analisar que o significado da profissão é configurado nas particularidades do capitalismo, especialmente no modo como são produzidas as respostas à questão social na relação público/privado. Aspecto que, no contexto da profissionalização do Serviço Social assume feições típicas da filantropização estatal, do autoritarismo, da burocratização; no contexto desenvolvimentista da modernização que segue conservadora e é aprofundada no marco monopolista, explicitando a perspectiva da integração social à agenda governamental; no período da redemocratização, configura-se uma cultura de democratização do Estado, de implementação de novos espaços participativos sob a diretiva da descentralização político-administrativa; e no contexto da cultura neoliberal, o incentivo à “refilantropização”, diante das investidas da contra reforma, de restrição de direitos, de responsabilização do indivíduo pelo provimento de suas necessidades sociais e pela sua condição pessoal e social.

A centralidade na questão social como matéria de investigação e intervenção social, possibilita o entendimento “desnaturalizante” do social. Questão social entendida como o conjunto de expressões das desigualdades sociais da sociedade

60 Iamamoto, em “Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social” (2007), sintetiza as principais teses explicativas dos fundamentos do serviço social, destacando: o balanço crítico de Relações Sociais e Serviço Social (Iamamoto); a tese do sincretismo e da prática indiferenciada (Netto); a tese da identidade alienada (Martinelli); a tese das correlações de força e poder (Faleiros); a tese da assistência social (Yazbek); a tese da proteção social (Costa); a tese da função pedagógica do assistente social (Abreu). As particularidades analíticas expressam a riqueza de análises que são nucleadas pelo reconhecimento do caráter contraditório da sociedade e da profissão.

capitalista, não apenas as manifestações imediatas, mas também, os nexos entre seus elementos e processos constitutivos na relação entre capital e trabalho.61

A questão social assume novas configurações e expressões, especialmente nas transformações das relações de trabalho e da proteção social dos trabalhadores. Do ponto de vista conceitual, dentre os seus nexos, explicita exclusão do acesso aos bens e serviços; a garantia de conquistas parciais, vocalizadas pelos trabalhadores organizados; a subalternidade explicitando a ausência de protagonismo, de poder; e a pobreza, enquanto um fenômeno multidimensional que implica na existência de múltiplos carecimentos (YAZBEK, 1993, HELLER, 2008).

Questão social revela elementos de apreensão dos modos de ser e de pensar dos sujeitos, e das estratégias de sobrevivência, resistência e organização; processos de fortalecimento de relações de subserviência, de mando, favor e dádiva (SALES, 1994).

Os processos referentes à relação entre Estado e sociedade civil diante das alterações na esfera da produção afetam frontalmente as formas de sociabilidade que explicitam uma imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações que a sustentam (IAMAMOTO, 2001).

A relação entre Serviço Social, trabalho e questão social expressa a base da profissionalidade na contemporaneidade, demandando uma análise mais consequente das requisições sociais e das respostas técnico políticas circunscritas ao campo dos direitos como espaço ocupacional e político de maior legitimidade social.

Como referência hegemônica, a matriz marxista incidirá nas bases constitutivas do projeto ético-político profissional, direcionando a construção das Diretrizes Curriculares, em 1982 e 1996, e das legislações profissionais, particularmente do Código de Ética e a nova Lei de Regulamentação da Profissão (nº 8.662/1993), base constitutiva da nova profissionalidade.

61 A opção pela centralidade categorial do trabalho se dá pelo reconhecimento de que a atividade humana incide sobre a natureza e a transforma nos bens necessários à reprodução social. É, assim, a categoria fundante do mundo dos homens. Entretanto, a existência humana é mais do que o trabalho em si, considerando a sociabilidade e as atividades resultantes pelas necessidades que surgem no desenvolvimento das relações entre os homens em atividade social.