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Significado e Evolução: do ler ao escrever, às alfabetizações múltiplas

Parte I Enquadramento Teórico e Legislativo

4.1 Significado e Evolução: do ler ao escrever, às alfabetizações múltiplas

ALFABETIZAÇÕES MÚLTIPLAS

A alfabetização, no sentido literal da palavra, remete para a aprendizagem do alfabeto e da sua utilização como código de comunicação e, nesse sentido, alfabetizar, implica ensinar a reconhecer os símbolos gráficos da linguagem verbal, a ler e a escrever no sentido comum dos termos. “Mesmo tomando como referência um conceito restrito de alfabetização, centrado no ensino aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo é no mínimo discutível estabelecer o momento preciso ou massa crítica de conhecimentos e de capacidades, a partir dos quais um indivíduo concreto há-de transitar da categoria de analfabeto, para a de alfabetizado” (Lima, 1994, p. 106).

Qualquer definição de alfabetização está dependente da situação social, cultural e educativa concreta e do contexto histórico, em que se insere. O conceito de alfabetização resulta de um processo de construção social que tem por base pressupostos e valores relativos ao significado e à utilidade da alfabetização e, assim, a sua definição evoluiu no tempo. “Não há alfabetização em sentido abstracto. Alfabetizar envolve finalidades e meios, pelo que, o processo decorre inserido em contextos determinados,

93 quer estes se definam por um vector ambiental, cultural, social ou ideológico” (Magalhães, 1994, p. 115).

O modo como é facultada ao indivíduo a possibilidade de aprender a ler e a escrever reveste-se de um aspecto pedagógico e de um aspecto ideológico, “toda a solução técnica de um problema pedagógico contém uma atitude ideológica” (Pinto, 2000, p. 50).

Nesta ordem de ideias, Macedo (2000) considera que o modo como é abordada a leitura e a escrita e respectivas funções implica um correspondente posicionamento em termos de alfabetização. Para o autor, numa abordagem académica, aprender a ler é sinónimo de aquisição de formas pré-definidos de conhecimentos implicando a aquisição de habilidades mecânicas de codificação e descodificação, sem que a experiência de vida e a prática linguística dos envolvidos seja tida em consideração. Este modo de encarar a aprendizagem da leitura e da escrita corresponde a uma abordagem, do processo de alfabetização em que não é valorizada a dimensão social e política do acto de ler e escrever.

Esta posição coaduna-se com a ideia de alfabetização funcional, que treina as pessoas para fazerem face aos requisitos da sociedade tecnológica, sacrificando a análise crítica das condições que deram origem à necessidade de leitura. Numa abordagem emancipadora da leitura, ler não se resume a uma habilidade mecânica de descodificação mas contempla uma compreensão crítica do texto e dos contextos históricos e ideológicos a que ele se refere. O acto de aprender a ler e a escrever é um acto criativo que implica uma compreensão crítica da realidade. Ligada a este modo de ler surge a alfabetização encarada como um meio através do qual as pessoas podem participar na transformação da sociedade (Macedo, 2000, pp. 84-85).

O conceito da alfabetização evoluiu ao longo tempo, tendo implícitos diversos entendimentos de leitura A difusão pública dos programas de alfabetização e educação para todos, nas quatro décadas posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial, está directamente relacionada com a necessidade de instâncias internacionais para a paz e o desenvolvimento mundiais (Silva, 1990, p. 15). Deste modo é no quadro da UNESCO, e das conferências sobre a Educação de Adultos, que o conceito de alfabetização assume, no séc. XX, um carácter universal e preponderante para as nações (Oliveira, 1998, p. 61). Entre 1960, ano da Conferência de Montreal sobre Educação de Adultos, e 1976, ano da Conferência de Nairobi, o conceito evoluiu de alfabetização básica para

94 alfabetização funcional e, finalmente, para alfabetização em função de um desenvolvimento integrado numa perspectiva de educação permanente (Dias, 1983, pp. 28-42).

Em 1965 realizou-se em Teerão, o Congresso Mundial de Ministros da Educação para a Eliminação do Analfabetismo. Tendo em conta este contexto foi lançado o Experimental World Literacy Programme que tinha por base uma visão funcional do conceito de alfabetização, entendida não como um fim em si mesmo, mas como meio privilegiado para a formação profissional e subsequente aumento da produtividade. Ao longo do tempo foi surgindo a tomada de consciência de que o desenvolvimento não é apenas crescimento económico, na sua dimensão humana deve ajudar o Homem a encontrar o sentido da sua existência. Após a conferência de Tóquio, em 1972, passa a considerar-se a alfabetização em termos do desenvolvimento integrado, “o seu objectivo já não vai ser talhar indivíduos para determinadas tarefas ao serviço da economia, mas sim preparar homens que se tornem capazes de compreender, controlar e orientar o próprio progresso” (Idem, 1983, p. 32).

Em 1975, passados dez anos da realização do Congresso de Teerão, realizou-se o Internacional Symposium on Literacy em Persepolis, Brasil, que pretendeu fazer um balanço dos resultados do Experimental World Literacy Programme. Além de admitir a relação do conceito de alfabetização com o de desenvolvimento económico, esta passou a ser entendida como um direito fundamental com ligações estreitas ao domínio social e político. A Declaração de Persepolis constitui um marco na reorientação do discurso em torno da alfabetização, “a verdadeira meta da alfabetização não consiste em equipar o Homem com determinadas técnicas mas, através disso, torná-lo capaz de intervir na comunidade” (idem, p. 32).

O trabalho desenvolvido por Paulo Freire veio marcar de forma determinante a evolução do conceito de alfabetização, quer pela introdução de novos métodos, quer pelo facto de ter discutido o tema na esfera política Seria, porém, Paulo Freire quem, combinando uma atitude humanista, a matriz religiosa, católica e a teoria e prática marxista, haveria de propor um novo quadro para a alfabetização, já não como socialização (no sentido de inculturação/incorporação de valores e normas dominantes nos respectivos grupos ou sociedades), mas como “acção cultural para a libertação”, como “pedagogia dos oprimidos”, como educação no sentido de “consciencialização do sujeito em acção” (Silva, 1990, p. 14). A alfabetização, para Paulo Freire, é a aprender a

95 ler, não só a palavra escrita, mas aprender a ler o mundo e, nesse sentido, supõe, não uma acumulação na memória de frases, de conceitos separados da vida, mas uma atitude de criação e recriação que deve identificar o conteúdo do conhecimento como próprio processo de aquisição do conhecimento (Humberto, 1977, p. 40).

A partir dos anos 80 do séc. XX, a política educativa de diferentes países europeus tem dado ênfase à relação entre sistema educativo e mercado de trabalho. Os apoios concedidos pela Comissão Europeia à formação profissional, nos diferentes estados membros, traduzem essa orientação assumida com a publicação, pela Comissão Europeia, do Livro Branco – Ensinar a Aprender – Rumo à Sociedade Educativa.

A aprendizagem para o trabalho e a aposta na formação profissional como meios de resolver o desemprego, a necessidade de tornar a mão-de-obra e a economia de cada Estado-membro mais competitivas são intenções bem definidas ao longo deste Livro Branco. Assim sendo, a educação para a democracia, “a educação ao longo da vida com preocupações emancipatórias e de cidadania ficam à margem deste projecto limitado de aprendizagem de tendência vocacionalista” (Veloso, 2004, p. 189).

Em 1990, realizou-se em Jomtien, na Tailândia, a Conferência Mundial sobre a Educação para Todos que se centrou na educação básica, porém a alfabetização, tanto por meio da escolarização para crianças quanto de programas não-formais para adultos, assumiu importância crucial na mensagem veiculada por esta conferência. Colocando a educação básica no contexto da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos considerou a alfabetização como instrumento essencial de aprendizagem, para que cada pessoa – criança, jovem e adulto – possa beneficiar das oportunidades de ensino oferecidas para o atendimento das suas necessidades educacionais básicas (UNESCO, 2003, p. 32).

Na cidade alemã de Hamburgo decorreu, em 1997, a V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos (CONFINTEA V), deste evento saiu a Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos, acompanhada de um plano de acção – Agenda para o Futuro, que fazem referência à problemática da alfabetização, nomeadamente à alfabetização de adultos, nos seguintes termos:

A alfabetização, concebida em termos gerais como os conhecimentos e capacidades básicas que todos precisam num mundo em rápida transformação, é um direito humano fundamental. Em todas as sociedades, a alfabetização é uma

96 competência necessária por si mesma e como fundamento para os demais conhecimentos que a vida requer (Instituto de Educação da UNESCO, 1998, p. 19).

“Em toda a parte do mundo, a alfabetização deve ser uma via para mais ampla participação na vida social, cultural, política, económica e educativa. A alfabetização deve ser relevante nos contextos sócio-económicos e culturais dos povos. A alfabetização permite que os indivíduos participem efectivamente nas respectivas sociedades e lhes dêem forma” (idem, p. 38).

No Fórum Mundial da Educação, realizado em Dacar, no Senegal, em Abril de 2000, a comunidade internacional delegou à UNESCO a coordenação do movimento Educação para Todos e a congregação do impulso colectivo de todas as pessoas envolvidas com iniciativas no campo da educação. As seis metas da Educação para Todos são, actualmente, a mais alta prioridade em educação da UNESCO (UNESCO, 2002).

Das seis metas da Educação para Todos, duas abrangem, de forma particular, a alfabetização de adultos: Assegurar que as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam atendidas por meio do acesso equitativo a programas de aprendizagem e de habilidades necessárias à vida” e “Melhorar em 50% os níveis de alfabetização de adultos até 2015, sobretudo para as mulheres, além do acesso equitativo à educação básica e continuada a todos os adultos (UNESCO, 2002).

A Assembleia Geral da ONU, proclamou o período entre 2003 – 2012 como a Década das Nações Unidas para a Alfabetização, cabendo à UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, o papel da coordenação, no incentivo e na catalisação das actividades ao nível internacional.

A década das Nações Unidas para a alfabetização, como parte integrante da Educação para Todos, irá fornecer tanto uma plataforma quanto o impulso para a consecução de todos os seis objectivos do Marco da Acção de Dacar. A alfabetização é um elemento comum que une esses seis objectivos. De facto, a aquisição por todos, de habilidades de alfabetização estáveis e sustentáveis permitirá que as pessoas participem activamente, no decorrer de toda a vida, de todo um espectro de oportunidades de aprendizado. A alfabetização para todos constitui-se a base aprendizado por toda a vida para todos e a aquisição de poder pelos indivíduos e por suas comunidades. (Annan, 2003, p. 55).

97 Em plena década das Nações Unidas para a alfabetização – 2003-2012 – proclamada pela Resolução 56/116 da sua Assembleia Geral, a alfabetização é considerada como um processo fundamental para a aquisição dos meios essenciais que possibilitam ao indivíduo enfrentar os desafios da vida actual e garantir a sua efectiva participação na sociedade, na política e na economia do séc. XXI.

“De facto, a aquisição por todos de habilidades de alfabetização estáveis e sustentáveis permitirá que as pessoas participem activamente no decorrer de toda a vida, de todo um espectro de oportunidades de aprendizado. A alfabetização para todos constitui-se a base do aprendizado por toda a vida, para todos, e da aquisição de poder pelos indivíduos e por suas comunidades” (Annan, 2003, p. 56).

A educação como prática libertadora, autónoma, participada e emancipadora é aquela em que se descobre que só se é pessoa, com o outro. “A existência, porque humana, não pode ser muda silenciosa, tem de nutrir-se de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo, não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na acção-reflexão” (Freire, 1986, p. 92).

A síntese de diferentes perspectivas associadas à alfabetização ao longo do tempo, aqui apresentada, não pretende constituir-se como um resumo histórico completo da evolução da mesma, mas, simplesmente, colocar em evidência que se trata de um conceito em evolução, que é socialmente construído, desde o simples ler e escrever até às alfabetizações múltiplas no domínio das novas tecnologias, da informação, da participação activa, da acção-reflexão e no exercício de cidadania activa, onde se enquadra a educação dos séniores.