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1.2 Soberania

1.2.2 A Soberania da transformação

O conceito de soberania no Direito Internacional vem passando por transformações face à nova ordem mundial, por meio das quais surgem novas formas de poder e de integração complexas e controversas.

Sobre as mudanças no conceito de soberania, Claudio Finkelstein ensina que a sua primeira evolução já lhe impôs limite: o poder, antes nas mãos do soberano, agora estava nas mãos do povo, com os limites da soberania inseridos na Carta Magna do Estado que o monarca representava. E, atualmente, tem-se que a soberania deve ser exercida na medida em que respeite a soberania dos outros países que integram a comunidade internacional80.

Para Carlos Alberto Gomes Chiarelli e Matteo Rota Chiarelli, a soberania assegura a igualdade entre os Estados. No entanto, os autores ressaltam que esse conceito, antigamente dito como dogmático, agora está sendo alvo de questionamento, pois a dogmática ligada a ele não passa do plano teórico, uma vez que as relações entre os Estados já transformaram o exercício da soberania. Além disso, asseguram, ainda, que essa transformação é uma verdadeira revolução na esfera do direito público, visto que reconhece o fato de que os Estados são interdependentes. Para eles, a soberania, necessariamente, deixa de ser absoluta, ilimitada e indivisível – se é que alguma vez o foi81.

Sobre o tema, J. J. Gomes Canotilho leciona que a soberania, no sentido do plano internacional, é, por natureza, relativa, posto que existe sempre a soberania de outro Estado82.

80 O processo de formação de mercados de bloco. São Paulo: IOB-Thomson, 2003. 81

Soberania e Integração. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, v. 39, n. 15, p. 89-95, maio 1995, apud FINKELSTEIN, Claudio, op. cit., p. 79.

40 Importante ressaltar que a mudança do conceito de soberania poderá causar uma abertura das Constituições, as quais, segundo Canotilho, deixarão de ter a pretensão de fornecer um esquema regulatório, totalizante e assente num poder estatal soberano, para aceitar os quadros ordenadores da comunidade internacional83.

Ives Gandra Martinstambém compartilha da ideia de que o perfil do Estado está mudando. Segundo ele, há um abismo profundo entre o Estado Clássico surgido do constitucionalismo moderno, após as Revoluções Americana e Francesa, e o Estado Plurinacional, que adentrará o século XXI de outras formas. O Estado Moderno, em sua formulação clássica de soberania absoluta, está devendo ceder campo a um Estado diferente no futuro84.

Celso Ribeiro Bastos, nesse mesmo sentido, preconiza que:

O princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato85.

As constantes reformulações no conceito de soberania e a atual fase de interdependência dos Estados implicam uma reformulação da ordem jurídica constitucional, formadora dos mesmos. Ao que tudo indica, o conceito de soberania indivisível e ilimitado está adstrito à teoria e, portanto, caduco no que se refere à prática das relações internacionais.

Sobre as mutações constantes das definições de Estado e soberania, Adolfo Posada afirmou que a soberania é um processo; portanto, sujeito à evolução e modificação86.

Nessa mesma linha, J. J. Gomes Canotilho sustenta que a identidade da constituição não significa a continuidade ou a permanência do “sempre igual”, pois,

83 Direito Constitucional e teoria da Constituição, p. 329.

84 O Estado do futuro. In: ______. O Estado do futuro. São Paulo: Pioneira, p. 13-28, 1998. 85

O Estado do futuro. In: MARTINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do futuro. São Paulo: Pioneira, p. 164-173, 1998, p. 165.

41 num mundo sempre dinâmico, a abertura à “evolução é um elemento estabilizador da própria identidade”87.

Podemos verificar que a soberania foi sendo reconstruída e passou por transformações significativas ao longo do tempo, especialmente no que tange ao seu conteúdo, na medida em que o fenômeno da globalização do capital impôs ao Estado a adoção e a integração de normas jurídicas oriundas do ordenamento jurídico internacional.

A partir dos ensinamentos de Hans Kelsen sobre soberania88, criou-se o

conceito de soberania relativa, o qual afirma que a noção tradicional de soberania é incompatível com a supremacia de Direito Internacional e com o estabelecimento de uma ordem jurídica dessa natureza no cenário político mundial. As considerações de Kelsen fizeram com que pensadores verificassem que a concepção clássica de soberania não se enquadra nos moldes do atual estágio de desenvolvimento da comunidade internacional.

A partir de suas análises e em decorrência das causas de um período de transição, o poder ilimitado da soberania absoluta começou a perder o seu significado, para dar espaço a um conceito mais flexível, permitindo maior possibilidade de relacionamento entre Estados soberanos e organismos internacionais.

O conceito de soberania sempre causou, e ainda hoje causa inúmeras divergências entre os estudiosos do tema. Há a corrente que se inclina a defender que os Estados devem permanecer lacrados às integrações da comunidade internacional, e, por outro lado, há os que defendem89 que a soberania deve sim

acompanhar as mudanças da comunidade internacional e, portanto, precisa se adaptar aos novos conceitos e às novas necessidades dos Estados. Essa flexibilização há de ser vista como uma forma de sobrevivência dentro do atual estágio de desenvolvimento das relações internacionais, pois nunca, em todos os tempos, os países foram tão interdependentes como hoje o são.

A soberania não é e nem nunca foi um instrumento ilimitado de poder dos Estados no plano internacional. Seus limites tampouco ultrapassam barreiras geopolíticas. O ato de se adequar aos novos padrões internacionais não se

87 Direito Constitucional e teoria da Constituição, p. 367. 88

Ver KELSEN, Hans. Teoría General do Estado. Barcelona: Editorial Labor, 1934.

89

Cf. FINKELSTEIN, Claudio, O processo de formação de mercados de bloco; CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e teoria da Constituição.

42 configura em uma flexibilização, perda ou diminuição da soberania, e sim em uma forma diferenciada do exercício desta.

Com o novo exercício do poder de soberania, os Estados Constitucionais que hoje fazem parte da comunidade internacional poderão se tornar cooperativos, como propôs Häberle90. O exercício de cooperação entre os Estados Constitucionais torna-

se necessário para a sobrevivência de todos, levando-se em consideração o atual estágio de desenvolvimento das relações internacionais.