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3. A ANATOMIA DE UM CONCEITO: CONTROVÉRSIA OU DESCOBERTA?

3.1. Tecnologias Solidárias – Uma Noção Global?

Nas primeiras páginas desta tese está caracterizada uma primeira noção de Tecnologias Solidárias: tecnologias adaptadas (acessíveis a todos) que se baseiam na comunicação, na conectividade em rede, na colaboração, na acessibilidade e na relação afectiva entre as pessoas que as usam. Inerente ao conceito está também a ideia de mediação entre homens e computadores, através daquilo que apelidámos de uma semiótica de interfaces, pois se não houver uma comunicação bilateral entre a tecnologia e o utilizador ou se não houver coerência e sentido entre dois programas, o processamento da informação não acontece e estamos perante uma “caixa negra” sem entradas nem saídas, cuja existência é inútil. As interfaces com os utilizadores são o meio através do qual os sistemas justificam a sua existência no que concerne a questões de ergonomia e de acessibilidade, e que veiculam e maximizam a transmissão de informação. Estamos a falar de TIC universais, acessíveis a todas pessoas, ligadas à inovação, à investigação e ao desenvolvimento de um conjunto de dispositivos electrónicos facilitadores da autonomia e da inclusão digital.

Ao longo das páginas seguintes é traçada a convergência e aproximação entre Tecnologias Solidárias e áreas relacionadas como a ergonomia, a construção de software, o design (a funcionalidade e a estética de hardware e periféricos), a motivação e capacidade experimental dos alunos, a comunicação e a expressão de conteúdos nas relações sociais e culturais desenvolvidas. Nesse sentido houve necessidade de esclarecer através de um esquema como as Tecnologias Solidárias e as suas dimensões se inter-relacionam representando o quadro conceptual que está na base, não só, da criação do conceito, mas também na sua utilização em situações concretas e na sua gestão (figura 3.1.).

30 Figura 3.1. Contexto do conceito de Tecnologias Solidárias

As TIC têm passado por diferentes fases de evolução, tendo vindo a absorver novas ferramentas e funcionalidades que lhes determinaram novos significados. Conhecidas inicialmente por Tecnologias da Informação foram definidas em 1990 (OECD, 2005) como conjugação das áreas de hardware, de

software, de redes, de telecomunicações, de equipamentos, de indústrias baseadas

na troca de dados digitais a todos os sectores económicos, de publicação e de difusão, a bibliotecas e a bases de dados, entre outros serviços de informação. A maior diferença entre as Tecnologias de Informação (TI) e as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) corresponde, de acordo com a OECD (2005), à ênfase atribuída aos aspectos comunicacionais facilitados pelas tecnologias de colaboração e da conectividade, por isso um novo vocabulário está emergindo com a referência ao prefixo/letra “e” (de electrónico e de ligação às redes) que destaca cada vez mais as especificidades da interface homem-máquina.

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Segundo Forester (1993) e Hargreaves (2003) a tecnologia engloba objectos físicos, dispositivos, serviços, produtos, contextos organizacionais ou modos de agir de acordo com uma série de princípios e componentes técnicos. Alguns desses dispositivos como telemóveis, controlo remoto, meios de transporte, entre outros, dos mais elementares aos mais complexos, podem ser, também, auxiliares de tarefas a pessoas com deficiências e incapacidades, permitindo-lhes realizar determinada actividade e simplificar a sua vida quotidiana. Aprofundando ainda o conceito, as TIC incluem realidades tecnológicas tão díspares como a nanotecnologia, dispositivos ubíquos, redes de comunicação de capacidade ilimitada, sistemas de apoio à decisão, controlo e segurança com localização via satélite, super computadores, simuladores, inteligência artificial, visualizadores que permitem a interacção em ambientes de realidade virtual, para além de toda a panóplia informática que permite a formação, a aprendizagem e o trabalho em diversas dimensões e contextos.

Estamos, assim, no que diz respeito à integração da tecnologia, perante um leque de aplicações que se desdobram, tal como as necessidades inscritas na pirâmide de Maslow5, partindo de ambientes pessoais nos quais encontramos implantes, interfaces, interconexões e equipamentos de comunicação portáteis, prolongando-se para espaços de socialização em que as redes, os dispositivos de entretenimento, controlo e interoperabilidade, a robótica e as infra-estruturas inteligentes proporcionam uma melhor qualidade de vida de acordo com os padrões de sociabilização existentes. A nível individual as TIC são cada vez mais importantes porque permitem a mobilidade física e virtual, pois é possível estabelecer contactos mediante as redes, aproximando estilos de vida e grupos de interesse e fomentando a inclusão. Na vertente da educação, da formação e do entretenimento as TIC são repositórios de conteúdos interactivos e de espaços onde se desenvolvem processos colaborativos, nos quais a resposta em tempo real funciona como o incentivo para novas aprendizagens e vivências em sala de aula ou a distância (Levy, 1997; Warschauer, 1997; Warschauer & Healey,1998).

5 Este autor sugeriu uma teoria sobre a ordem específica de desenvolvimento das necessidades humanas,

em função da ordem da sua satisfação, das “inferiores” às “superiores”: fisiológicas, segurança, sociais, auto-estima e auto-realização.

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Dentro da filosofia e da génese das Tecnologias Solidárias estão alguns projectos como “Um computador por criança” (The One Laptop Per Child - OLPC) idealizado por Nicholas Negroponte e pela sua família, que em 1999 fundaram uma escola numa aldeia remota no Cambodja, instalando um satélite, geradores e ofereceram computadores às crianças. Os computadores iluminavam os lares que não tinham electricidade e as crianças ensinaram às suas famílias como usar os computadores e, essa ligação à tecnologia permitiu que não faltassem tanto à escola. Os frutos dessa experiência conduziram a que em 2005, o Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, através de uma fundação sem fins lucrativos, tentasse levar computadores às crianças nos mais remotos e pobres locais do planeta. Os objectivos de proporcionar uma educação de qualidade, aceder ao conhecimento e fornecer a oportunidade de ter a noção das próprias capacidades de aprendizagem, sem limitações financeiras ou espaciais, também motivou a divulgação do computador Magalhães, em Portugal, em 2007, com

software livre e ligado ao programa e-Escolinhas dirigido a crianças do primeiro

ciclo. Para os jovens e adultos foi lançado em simultâneo o programa e-Escolas, que abrange actualmente os alunos das Novas Oportunidades e todo o universo do segundo ciclo do ensino básico e do secundário.

A crescente expansão das TIC e da Sociedade do Conhecimento deu origem a novas realidades e exigências no que diz respeito às qualificações académicas e profissionais. As TIC e mais concretamente a Internet têm contribuído de forma decisiva para a disseminação da informação, para a divulgação do conhecimento e para a formação da cidadania, mas ao mesmo tempo é selectiva, pois só quem detém o conhecimento da utilização das TIC pode realmente conhecer o alcance desse mesmo conhecimento. Uma aparente contradição repetida por Steger (2006, p.75) que questiona: “a globalização torna as pessoas por todo o mundo mais parecidas ou mais diferentes?” Castells (2000) já tinha tentado esclarecer esses e outros aspectos sociais, políticos, educacionais, tecnológicos e culturais que influenciam o planeta globalmente e trazem para o espaço público a discussão sobre a inclusão digital e social. Este autor refere as múltiplas e recíprocas relações existentes e alerta para o facto de vivermos numa sociedade em rede, cada rede em

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relação às outras funciona como um pólo de dominação e transformação. De um lado dessa rede estão os que têm acesso à informação e ao conhecimento, do outro temos os info-excluídos.

O Fórum Europeu da Deficiência estimou, em 2004, que em 2020, 37% das pessoas na Europa terão uma deficiência (cerca de 93 milhões de pessoas), correspondendo a um acréscimo de 17% (50 milhões em 2004). Este acréscimo vai criar uma grande procura em tecnologias mais próximas da sua realidade que permitirão que as pessoas com deficiência participem mais na sociedade e gozem de maior qualidade de vida.

A Declaração Ministerial de Riga de 2006 indicou um conjunto de objectivos a atingir até 2010, para diminuir a infoexclusão, pois ainda se verificam grandes discrepâncias entre as diversas regiões da União em termos de posse e uso de tecnologia. De acordo com o documento europeu denominado Iniciativa Europeia i2010 sobre Info-Inclusão. Participar na Sociedade da Informação (COM, 2007, p. 3-4.) e que transcreve, quase na totalidade, as preocupações da Declaração Ministerial de Riga, é importante para entender o que está em jogo em termos práticos para os países da União Europeia, que se concretize o seguinte: fomentar a utilização da Internet entre os idosos, pessoas com deficiência, mulheres, grupos com baixo nível de formação, desempregados em regiões menos desenvolvidas; investir na cobertura de banda larga, na literacia digital e apostar na acessibilidade dos sítios Internet públicos e por isso todos os sítios públicos deveriam cumprir as orientações relativas à acessibilidade dos conteúdos da Web, versão 1.0 (Web Content Accessibility Guidelines 1.0), aspecto que é especialmente importante para as pessoas com deficiência. Ainda no mesmo documento (COM, 2007, p.2):

O termo info-inclusão designa as acções que visam a realização de uma sociedade da informação inclusiva, ou seja, uma sociedade da informação para todos. O objectivo é permitir uma participação plena na sociedade da informação a todos os que o desejem, apesar de desvantagens individuais ou sociais. A info-inclusão é necessária para a promoção da justiça social, assegurando condições de

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equidade na sociedade do conhecimento. É igualmente necessária por razões económicas, para uma realização plena do potencial da sociedade da informação em termos de crescimento da produtividade, bem como para a redução dos custos da exclusão social e económica. Finalmente, uma sociedade da informação inclusiva proporciona grandes oportunidades de mercado para o sector das TIC.

As pessoas com deficiência estão sujeitas a diversas barreiras que as excluem, tal como prédios e cidades inacessíveis, desemprego e lacunas de educação. Inclusive alguns direitos são-lhes negados como: acesso à educação; deslocar-se e mover-se livremente; viver independente na comunidade; conseguir emprego mesmo quando se é bem qualificado; ter acesso à informação; obter os cuidados de saúde adequados; exercer os seus direitos e deveres políticos; tomar as suas próprias decisões.

Essas são, também, algumas das conclusões anunciadas pela OECD (2005) onde são recolhidas algumas linhas mestras comuns no âmbito da política da deficiência de acordo com dois objectivos: assegurar que os cidadãos com deficiência não sejam excluídos, mas sim encorajados a participar tanto quanto possível na vida económica e social de um país ou de uma região, incluindo a criação de emprego; confirmar que os que são ou se tornaram deficientes possuem meios para subsistir.

A União Europeia (COM, 2007, pp. 8 e 9) tem demonstrado também a preocupação em investir, em matérias de info-acessibilidade, na criação de aplicações que respeitem a privacidade de pessoas com limitações sensoriais, físicas, motoras e/ou cognitivas, de forma a permitir-lhes a utilização da TV digital (TVD acessível) e das comunicações electrónicas (conversação total). Pretende-se, assim, estabelecer a normalização no que diz respeito a aquisições públicas de produtos e serviços TIC acessíveis, na prossecução de um programa de formação europeu sobre concepção inclusiva das TIC e de um roteiro para a acessibilidade dos sítios Web públicos, melhorando as competências digitais, as

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cibercompetências e a formação em literacia digital para os que se encontram em maior risco de exclusão.

Essas tecnologias, diz-nos Bougie (2001, p. 35), estarão cada vez mais omnipresentes na vida de todos os dias e no futuro, exigindo novas competências, uma comunicação presente e actual que funcione em rede e evite o risco de exclusão devido aos novos obstáculos e barreiras causadas por tecnologia de ponta, de design inapropriado “uma forma de exclusão social que é indubitavelmente uma negação básica de direitos humanos”.

A Declaração de Lisboa (2006) veio reforçar a estratégia da União Europeia face a economias digitais, dinâmicas, competitivas e baseadas no conhecimento e para isso adverte que é vital que a clivagem do digital não aumente as diferenças mas as esbata e apela a todos os governos nacionais que desenvolvam prioridades endereçadas a grupos alvo específicos como as minorias, crianças, idosos e deficientes.

Dizem-nos Valente & Fonseca (2007, p.18) sobre a acção da escola:

[…] Numa lógica de esperança e assente em premissas que acentuam a categoria do possível, recusando desse modo uma hermenêutica negativa, os estabelecimentos de ensino não deverão ser pretensamente espectadores éticos passivos. A Escola deverá fazer tudo aquilo que estiver ao seu alcance para ser um contributo objectivo e válido no desenvolvimento moral dos alunos, reconhecendo-os sempre como pessoas merecedoras de todo o esforço e dedicação das mais variadas valências educativas. Em última análise, mesmo em circunstâncias turbulentas e instáveis, assumir a importância da Escola como veículo para a formação de uma cidadania plena, consistente e enformada por um núcleo basilar de valores. Na promoção do desenvolvimento pessoal e social dos alunos, num paradigma holístico e esclarecido, a Escola deve ter legitimidade e reconhecer a urgência de uma intervenção mais compreensiva, estruturada e consistente.

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Nesse sentido é de salientar também a contribuição de Blackhurst & Lahm (2000, p. 7):

Afirmamos que a inclusão digital requer solidariedade e parceria entre governos, sociedade civil, academia, sector privado e organizações internacionais. As iniciativas de cooperação, tanto dentro das fronteiras nacionais como entre Estados e regiões, devem contribuir para estabelecer uma agenda mundial de solidariedade digital, que constituirá a base para o desenvolvimento da Sociedade de Informação em áreas e regiões menos desenvolvidas.