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Telmo Verdelho, da Universidade de Aveiro

séc. XIII. Somos levados a imaginar que seria muito fácil comuni- carmos nós actualmente com Pero Vaz de Caminha, se ele pudes- se tornar à Terra de Santa Cruz, passados 500 anos, e falar-nos nesta assembleia. O mesmo não aconteceria certamente com el Rei D. Afonso II e com os seu notários, ou com os poetas que naquele tempo cantavam amores. Provavelmente, o próprio Pero Vaz de Caminha teria mais dificuldade em entender o português falado 300 anos antes do que entender esta língua que nós fala- mos 500 anos depois.

Quer dizer, a degradação arcaizante da memória da língua parece atenuar-se ao longo dos últimos séculos, estaremos peran- te um abrandamento do processo de envelhecimento da língua.

A hipótese fundamenta-se sobretudo na observação do ritmo de sedimentação lexical.

No séc. XVI, os leitores da língua escrita portuguesa encon- trariam mais arcaísmos no texto patrimonial a que tinham acesso, do que nós encontramos hoje no texto produzido durante os cinco séculos subsequentes.

Será necessário distinguir, por um lado, a massa lexical arcai- ca, constituída por um conjunto de formas que poderemos consi- derar completamente obliteradas como os verbos “filhar”, “leixar”, que perderam qualquer ligação com o vocabulário activo, e por outro lado, as palavras desusadas e todo o conjunto lexical carac- terizado por conotações arcaizantes mas que mantêm em relação à língua moderna uma espécie de motivação interna que facilita a sua interpretação.

São sobretudo as primeiras, as palavras que perderam qual- quer ressonância no sistema lexical do português contemporâneo, que podemos designar de arcaísmos profundos e que marcam a ruptura de intercompreensão no percurso da memória linguística. Ainda neste âmbito são particularmente determinantes as formas que foram de uso mais frequente e especialmente as partículas de ligação ou de significação gramatical como os pronomes, os ad- vérbios, as preposições e as conjunções.

No séc. XVI pode marcar-se com uma certa precisão o limi- te entre um dicionário arcaico e um dicionário do português mo- derno. Todos os estudiosos da periodização da língua assinalam esta fronteira diacrónica. Logo no século XVII, Jorge Cardoso no

Agiológio Lusitano (1657, t.II) e Frei Manuel do Sepulcro, na Refeiçam Espiritual anotam (cito deste último): “E naõ ha duvida

annos do reinado de Dom Manoel, que em cento & sincoenta annos dahi para cà: como o vemos pollos ecrittos, em verso & prosa, de hüs & outros tempos” (Refeiçam Espiritual , parte hiemal, Lisboa, 1669, p.11)

Mas já antes, os humanistas tiveram a percepção, uma espé- cie de consciência metalinguística, dessa substancial mudança da memória lexical. Um primeiro testemunho, certamente entre mui- tos outros que se perderam, encontra-se no esboço de um Voca-

bulário de nomes antiguos que se guarda na Biblioteca da Aju-

da e que remonta à primeia metade do século XVI,4 trata-se é

certo de um vocabulário de nomes de especialidade referentes exclusivamente à actividade administrativa e elaborado certamente por um cronista, mas é nos textos administrativos e tabeliónicos que se guarda a memória linguística mais próxima da vida para o português medieval.

Interessante também e mais esclarecedor ainda, é o teste- munho de Aquiles Estaço (1524-1581), contemporâneo de Camões que deixou entre os seus manuscritos em Itália (depositados na biblioteca dos Oratorianos, em Roma, actualmente designada Vallicelliana), um brevíssimo apontamento com palavras de

Portugues velho explicadas em latim ou em português.5

Anota entre outras:

— a palavra “mais” com o equivalente latino “sed”, isto é com o significado da adversativa “mas”

— a forma “seente” com o equivalente latino “sedens” e a glosa “seente nüa cadeyra”

—”quite de peccado” e a explicação “livre” —”guisa” que traduz por “maneyra”

—”esguardamento” que traduz por “conspectus”

— e ainda entre várias outras formas, as partículas “pero”, “hy”, “acá”, “de suso”, “entonsce”.

Ora é sobretudo pelo abandono destas partículas de ligação ou de significação gramatical e pela obliteração de alguns verbos de grande frequência que se torna sensível essa estranheza de um português velho, de leitura muito mais difícil do que o português pós-camoniano.

Vale a pena considerar, ainda que em breve listagem, natural- mente incompleta, algumas dessas partículas obsoletas que tecem o texto arcaico. Por ordem quase alfabética, e sem detenças classificativas, lembrarei:

crás, desi, en, ende, dende, por ende, ensembra, i (ibi - y, hi), guisa, juso / suso, mais (mas), oi, oimais, ormais, ogano, pero, empero, de pram, ren, samicas, tamalavez, toste, u/hu (ubi).

Deve notar-se que esta instrumentação gramatical tornou-se muito mais estável ao longo dos últimos quinhentos anos e quase não se encontram mais formas perdidas.

Há também um conjunto de verbos que sofreram uma forte obsolescência e, porque muito provavelmente tinham uma eleva- da frequência no português medieval, a sua presença ou ausência repercute-se de maneira sensível no horizonte lexical destes dois momentos da história da língua.

Citarei apenas alguns:

acaecer, apartar, cousir, departir, enader, esguardar, filhar, gaançar, guarir, guisar, iguaar, leixar, liar, osmar, nembrar/renembrar, prasmar, quitar, retar, rezoar, saar (sanare), seer, talhar, tolher, traer. Cada um destes verbos têm a sua história e o seu percurso diacrónico. Quase todos eles se apagaram da memória lexical portuguesa activa antes do século XVI.

Destacarei entre eles os verbos filhar, leixar e guisar, que no século XV eram verbos de ocorrência bastante frequente.

Em Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, o verbo “filhar” tem 23 ocorrências; “guisar” tem 8 ocorrências e guisa têm 290; “leixar” tem 127 ocorrências e a forma moderna “dei- xar” não tem nenhuma; “Filhar” e “guisar” obliteraram-se mais cedo e não chegaram a entrar no séc. XVI, mas “leixar” foi subs- tituído pelo meio desse mesmo século.

Pero Vaz de Caminha, em 1500, traz ao Brasil ainda e ape- nas a forma “leixar”.

Na primeira edição do Auto da barca do inferno (1518) ocorre sempre o verbo “leixar”, mas na edição da Compilaçam preparada por Luís Vicente, ocorre 3 vezes o verbo “deixar” e 2 “leixar”6

Damião de Góis que viveu entre (1502 - 1572) na Crónica

do Príncipe D. João alterna “deixar” e “leixar” com predomínio

de “deixar” (21 oc.) sobre “leixar” (12 oc.).

Garcia de Resende (1470-1536) em Vida e feitos de D. João

II, escrito em 1533 usa “deixar” - 46 vezes e 3 vezes apenas “leixar”.7

André de Resende (1498-1573) que era um fervoroso latinizante, na Vida de Frei Pedro, publicada em 1570, recusou a forma “deixar” e usa apena “leixar”, meticulosamente grafada “lexar”, como quem pretende recuperar o étimo “laxare”.

do que Damião de Góis e ainda mais do que André de Resende, nunca usa o verbo “leixar” em “Os Lusíadas” e, no conjunto da obra lírica que lhe é atribuída, registam-se duas ocorrências de “leixar” contra 130 de “deixar”. Estas duas ocorrências de “leixar”, únicas em toda a obra atribuída a Camões, encontram-se em dois textos líricos, um soneto e uma glosa sobre uma “cantiga velha” e, muito provavelmente, podem não ser da autoria do poeta.

Concluindo, quando a Língua Portuguesa chegou ao Brasil, ou dizendo melhor, quando a língua portuguesa fez a sua trasumância para o Brasil, estava a criar condições para manter uma recursividade lexical interactiva e vivaz. A criação de um importante património textual, a elaboração de dicionários e o alargamento da intercomunicação diacrónica terão sido factores preponderantes para a manutenção da memória disponível das palavras.

A língua evolui e envelhece, mas os falantes de todo o tempo podem contribuir para que a língua continue a evoluir, mas que envelheça cada vez menos. Foi isso que fez Pero Vaz de Caminha ao escrever a sua famosa Carta. Contribuíu para que as suas palavras continuassem a ser revitalizadas, e, na verdade, em todo o seu texto, apenas 4 formas não vêm registadas nos dicionários do português moderno, por serem consideradas arcaísmos:

“ca, leixar, senhos, tamalavez”.

Como quer que seja, nenhuma destas palavras ultrapassou o século XVI, na memória do léxico activo português.

Notas

1— V.: Avelino de Jesus da Costa, “Os mais antigos documentos

escritos em Português”, in Estudos de cronologia, diplomática e histó-

rico-linguísticos, Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, Porto,

1992, p.169-256.

2— V. Luís F. Lindley Cintra, “Sobre o mais antigo texto não-literário

português: A Notícia de Torto (Leitura crítica, data, lugar de redacção e comentário linguístico)”, in Boletim de Filologia, t.XXXI (1986-1987), Lisboa, 1990, p.21-77; e ainda Susana Maria de Figueiredo Tavares Pedro,

De noticia de torto, Dissertação de Mestrado de Paleografia e Diplomá-

tica, na Faculdade de Letras, Lisboa, 1994.

3— V. Vocabulário da Carta de Pero Vaz de Caminha (seguido de

do Livro - Ministério da Educação e Cultura, 1964.

4 V. Telmo Verdelho, As origens da gramaticografia e da lexico-

grafia latino-portuguesas, Aveiro, INIC, 1995, p.385 e s.

5 A investigação na biblioteca Vallicelliana foi feita pelo Dr.

BelmiroPereira da Fac. de Letras do Porto, que generosamente me facul- tou o acesso a esta informação.

6 I. S. Révah, Recherches sur les oeuvres de Gil Vicente, Lisboa,

1951, p.95.

7 Evelina P. Silva Verdelho, Livro das Obras de Garcia de Resende,

Numa recente visita à Galiza, logo de ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago manifestava com louvável sin- ceridade que para optar a um triunfo internacional tão apetecido uma das condições mais vantajosas, um requisito inescusável qua- se, consiste em dispor de uma obra, além de valiosa em sentido estético, traduzida para o maior número de línguas. Era uma afirma- ção com certeza irrepreensível no caso do autor de Que farei com

este livro?, cujo património literário se estende por todo o mundo

através de variados idiomas, mais de trinta, do inglês, o alemão ou o francês até ao russo, o turco ou o chinês, sem esquecer por anteci- pado o sueco, língua para a que se traduziram quatro romances seus num período de apenas quatro anos antes de receber o Nobel. Saramago falava assim a partir da experiência privilegiada de ver felizmente alargado o espaço da sua lingua original e não se mostra- va ignorante, aliás, do amplo significado que a tradução possui para a vontade de projecção de um autor, não em vão ele mesmo viveu sacrificadamente muitos anos, longe ainda da consagração, de ver- ter obras estrangeiras em português.

É boa verdade, por suposto, que o facto de um escritor ter muitas versões dos seus livros noutros idiomas não garante a hipó- tese de qualquer ano alcançar o Prémio Nobel da Literatura. Pau- lo Coelho, nas redondezas da criação literária, cumpre a condição apontada por Saramago com vinte milhões de livros vendidos em muitos países, os quais permitem, mais do que nada, que ganhe cada mês por direitos de autor à volta de um milhão de dólares. Ora bem, nem por isso admite dúvida que a popularização interna-

Tradução literária e