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Outro conceito importante a ser trabalhado e de fundamental importância para a compreensão do nosso trabalho é o de território. A discussão que faremos aqui está baseada nas idéias apresentadas por Souza (2007), para quem o território “(...) é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (SOUZA, 2007, p. 78). Para o autor,

A questão primordial, aqui, não é, na realidade, quais são as características

geoecológicas e os recursos naturais de uma certa área, o que se produz ou quem produz em um dado espaço, ou ainda quais as ligações afetivas e de identidade

entre um grupo social e seu espaço. Estes aspectos podem ser de crucial importância

para a compreensão da gênese de um território ou do interesse por tomá-lo ou mantê-lo, (...), mas o verdadeiro Leitmotiv é o seguinte: quem domina ou influencia

e como domina ou influencia esse espaço? Este Leitmotiv traz embutida, ao menos

de um ponto de vista não interessado em escamotear conflitos e contradições sociais, a seguinte questão inseparável, uma vez que o território é essencialmente um instrumento de exercício de poder: quem domina ou influencia quem nesse espaço, e

como? (SOUZA, 2007, pp. 78-79, grifos do autor).

Souza recorre, antes de detalhar melhor o conceito de território, às idéias de Hannah Arendt sobre poder. Assim, para Arendt,

O “poder” corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém está “no poder” estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. No momento em que o grupo, de onde originara-se o poder (potestas in populo, sem um povo ou um grupo não há poder) desaparece, “o seu poder” também desaparece (ARENDT, 1985, p. 24 apud SOUZA, 2007, p. 80, grifos do autor).

Devemos esclarecer que a idéia apresentada por Arendt nos remete ao poder de representação, ou seja, o de um governante que representa os interesses de uma coletividade. Essa pessoa estaria investida de um poder que emanaria de um grupo, ou seja, o poder existe e, por conseguinte, a legitimidade do exercício do poder pelo governante, enquanto o grupo se mantiver unido. Arendt (1985) afirma que o poder é algo natural, legítimo, não demandando justificativas. Por outro lado, a violência surge quando o poder não está presente. Segundo a autora,

[...] politicamente falando, é insuficiente dizer não serem o poder e a violência a mesma coisa. O poder e a violência se opõem: onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente (ARENDT, 1985, p. 30 apud SOUZA, 2007, p. 81).

Parece-nos claro aqui a escala em que se está trabalhando: o poder e a constituição de territórios enquanto formas de dominação e governo por meio de representação. Trata-se aqui da dominação política de determinada porção do espaço no que concerne aos âmbitos: executivo, legislativo e judiciário. Entretanto, acreditamos que o poder pode ser compreendido em outras escalas: enquanto possibilidade e efetividade de ação, ou seja, a apropriação de determinada fração do espaço para a realização de determinado propósito.

Dessa forma, quando um grupo de pessoas passa a habitar uma área, por exemplo, termina por se apropriar desse espaço e nele constrói seu território de vida. Nesta área, materializam-se as ações desse grupo e realiza-se o poder de construir e/ou transformar objetos que garantam sua sobrevivência. Entendemos o poder, então, enquanto algo mais amplo (além da dimensão política apenas), capaz de construir e reconstruir territórios das mais diversas maneiras.

Nessa perspectiva, acreditamos que o território se constitui numa ação, uma relação de poder que se materializa no espaço, que delimita uma porção do espaço que, por sua vez, circunscreve o alcance da atuação desse poder. O território é, então, uma imaterialidade, uma ação que precisa do espaço enquanto substrato para sua realização. Sendo assim, o território é posterior ao espaço. O território é a ação do poder delimitando uma porção do espaço, não devendo ser confundido com o espaço. A esse respeito, Souza, em sua crítica a Raffestin1, nos lembra que:

[..] o território não é o substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre

um substrato referencial. (Sem sombra de dúvida pode o exercício do poder

depender muito diretamente da organização espacial, das formas espaciais; mas aí falamos dos trunfos espaciais da defesa do território, e não do conceito de território em si.) (SOUZA, 2007, p. 97, grifos do autor).

O território é uma apropriação do espaço, resultante da ação de um determinado poder. Este poder pode ser o do Estado que delimita o território nacional, por exemplo. Esta é a noção mais comum que temos sobre a idéia de território. Entretanto, os territórios são e estão constantemente a ser construídos e reconstruídos, pois são resultantes de diversos tipos de relações de poder e, assim, se materializam também em diversas escalas. Pessoas, grupos, instituições estão constantemente construindo e reconstruindo territórios.

A bem da verdade, o território pode ser entendido também à escala nacional e em associação com o Estado como grande gestor (se bem que, na era da globalização, um gestor cada vez menos privilegiado). No entanto, ele não precisa e nem deve ser reduzido a essa escala ou à associação com a figura do Estado.Territórios existem e são construídos (e desconstruídos) nas mais diversas escalas, da mais acanhada (p. ex., uma rua) à internacional (p. ex., a área formada pelo conjunto dos territórios dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN); territórios são construídos (e desconstruídos) dentro de escalas temporais as mais diferentes: séculos, décadas, anos, meses ou dias; territórios podem ter um caráter permanente, mas também podem ter uma existência periódica, cíclica. Não obstante essa riqueza de situações, não apenas o senso comum, mas também a maior parte da literatura

1 Claude Raffestin, em sua clássica obra Por uma geografia do poder (1993), dedica uma significativa parte do trabalho à discussão da relação entre território e poder. Raffestin constrói um conceito de território que o caracteriza enquanto porção do espaço (considerado em sua materialidade) sobre a qual se manifesta determinado poder.

científica, tradicionalmente restringiu o conceito de território à sua forma mais grandiloqüente e carregada de carga ideológica: o “território nacional” (SOUZA, 2007, p. 81, grifos do autor).

Uma pessoa tem, por exemplo, como seu território a sua residência. Nela está materializado o território dessa pessoa, ou seja, o campo de ação sobre o qual a pessoa exerce seu poder. Sobre aquela porção do espaço, o proprietário faz o que lhe convier. Se um dia, tal pessoa vier a se mudar, aquela porção de espaço deixa de ser seu território, mas continua a ser espaço. Essa pessoa irá construir um território em algum outro lugar. Portanto, assim, fica claro que o território é uma apropriação, uma delimitação a partir de uma relação de poder, podendo se desfazer e se refazer a qualquer tempo e em qualquer lugar. Outro exemplo pode ser identificado na atuação de gangues criminosas. Tais grupos costumam estabelecer territórios sobre porções do espaço nas quais atuam, ou seja, sua ação se restringe àquelas áreas. Freqüentemente isso acontece, pois além daqueles limites estão territórios onde prevalece o poder de outros grupos, o que significa, por sua vez, que conflitos serão gerados caso esses limites sejam transpostos. Atuar no território pertencente a outro grupo significa ter poder para isso, ou seja, tornar o território alheio parte de seu território, apropriando-se dele. Mais além, temos os casos de grandes firmas cujas filiais são distribuídas espacialmente, sendo responsáveis por atuar em determinada porção do espaço. Cada filial realiza, então, uma apropriação e suas ações se circunscrevem àquele território. Por algum motivo, a firma pode aumentar ou diminuir o número de filiais, provocando alterações na configuração territorial estabelecida. O que queremos dizer é que os territórios são flexíveis, podendo ser alterados pelos mais diversos motivos. “As grandes metrópoles modernas, do ‘Primeiro’ como do ‘Terceiro Mundo’, com toda sua complexidade, parecem conter os exemplos mais interessantes e variados de tais “territorialidades flexíveis” (SOUZA, 2007, p. 87).

Outra consideração a ser feita sobre os territórios é que eles podem se sobrepor. Em outras palavras, uma mesma porção do espaço pode servir de base para mais de um território. Por exemplo, um determinado bairro pode ser território de uma gangue criminosa, de uma agência bancária, parte do território de um município, assim como conter os territórios de vida de diversas pessoas. Sobre o fato das superposições de territórios, Souza nos ensina, ainda, que:

Do ponto de vista empírico, isto é, indubitavelmente, banal; onde residiria a dificuldade em aceitar que, superposto ao território nacional e como um subconjunto dele, encontra-se, por exemplo, a área de exercício da competência do poder estadual e, dentro desta, aquela do poder municipal? No entanto, a fixação da Geografia Política clássica no Estado, conduzindo à percepção do território nacional

como o território por excelência, redundou na cristalização do sentimento, implícito nos discursos, de que territórios são entidades que se justapõem contiguamente, mas não se superpõem, uma vez que para cada território nacional só há um Estado- Nação. Sem dúvida, isto é uma hipersimplificação, imbricada na pobreza conceitual longo tempo imperante. Não apenas o que existe, quase sempre, é uma superposição de diversos territórios, com formas variadas e limites não-coincidentes, como, ainda por cima, podem existir contradições entre as diversas territorialidades, por conta dos atritos e contradições existentes entre os respectivos poderes (...) (SOUZA, 2007, p. 94, grifos do autor)

No que tange a consideração da superposição de territórios, acreditamos ser pertinente lembrar que as ações do Estado se superpõem aos territórios construídos pelas pessoas. O Estado estabelece territórios quando define a execução de suas ações, quando constrói infra- estruturas para oferta de serviços públicos: hospitais, escolas, delegacias, fóruns etc. De modo semelhante às filiais das grandes firmas, cada posto de atendimento dos serviços públicos também estabelece um território, uma porção de espaço sobre o qual irá exercer seu poder. Sendo assim, existe a delimitação de um território, que, supostamente visa a melhor atender às populações que necessitam daqueles serviços.

Numa situação ideal, tais territórios deveriam estar em consonância com os territórios dessas pessoas, no entanto, é isso que pretendemos investigar. As instituições que iremos estudar prestam um serviço público e para que esse serviço chegue às pessoas elas distribuem núcleos de atendimento pelo espaço da cidade, definindo territórios nos quais cada núcleo exercerá seu poder enquanto representante das ações estatais. Contudo, com esta pesquisa, pretendemos investigar se essa definição de territórios estabelecida atende de fato às necessidades da população e, caso não, quais seriam outras alternativas possíveis para territorialização das ações, uma vez que essa definição é flexível. Acreditamos, deste modo, poder inserir o conceito de território na concepção mais ampla de espaço geográfico com que trabalhamos e, assim, melhor fundamentar o argumento desta pesquisa.