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No presente capítulo vamos estudar brevemente os traços comuns dos oito contos traduzidos para o checo para podermos depois pormenorizar a análise da personagem da mulher. Nos próximos parágrafos vamos frisar a importância do estrangeiro e dos imigrantes, o espaço e o tempo nos quais desenvolve a intriga e o personagem do narrador, entre outras coisas.

Um dos traços que chama atenção não só nesta antologia, mas em toda a obra migueisiana, é o tema da imigração – uma reflexão sobre a sua própria vida, o que confirma também Cavalcante Cruz dizendo que «o fato é que, tanto os aspectos biográficos quanto os

aspectos históricos insurgem na sua Obra, uns mais e outros menos; […]» (2011: p. 25),

unida com a sensação de segregação e marginalidade numa sociedade alheia. Nalguns contos os protagonistas são estrangeiros que se encontram em Portugal (o Bob de Mudança de

Posto), noutros, a intriga desenvolve-se no exterior, sobretudo nos Estados Unidos, sendo os

protagonistas portugueses (a Agnès e o seu amante do conto Agnès – Ou o Amor Assexuado) ou outros estrangeiros (a «Norueguesa»). Os Estados Unidos da América é um país onde Miguéis viveu, mas, segundo Cavalcante Cruz e outros autores, não conseguiu encontrar a felicidade absoluta: «Ainda fosse um exílio optado diante de quase nenhuma outra opção,

protagonistas. Geralmente, o leitor inteira-se do lugar onde a história acontece seja por meio dos topónimos, seja por meros sinais ou alusões, ou por empréstimos analisados no capítulo 3.3. Há dois contos que não só sucedem em Portugal, mas também os protagonistas são, sem dúvida, portugueses (Simples Conto do Natal, Mudança de Posto, A Bota), nos quais é muito bem tratada a realidade do seu país natal.

Para desenvolvermos alguns exemplos, a Amália de Mudança de Posto pergunta ao Bob sem receber alguma resposta: «O senhor é […] estrangeiro… Pela fala!» (Rodrigues Miguéis 1982: p. 16). Todo este conto situa-se em Lisboa, mesmo que no momento que preceda a partida do Bob para a Turquia. Sobre o lugar onde acontece o conto Episódio

«Norueguesa» com a mulher da Escandinávia chegamos a saber da derradeira frase do conto: «América, que depressa mudas!» (p. 145). Como um modelo diferente desta desarmonia do

homem com o meio no qual se encontra mencionemos Simples Conto do Natal. Neste caso, trata-se do estrangeiro num sentido figurado. A saber, ambos os protagonistas são portugueses em Portugal, mesmo que morem em lugares completamente contraditórios; ela, nas Serras, e ele, na Cidade. Assim, paradoxalmente, o ambiente urbano é para a protagonista muito mais alheio e hostil que Portugal para o Bob ou os Estados Unidos da América para a «Norueguesa», o que vamos ver em 4.3.

O narrador não costuma mencionar a época em que a narração se desenvolve, mas é evidente que se trata do presente ou de um passado recente, inspirado pelas memórias de Miguéis, ao qual se acrescenta a narração sobre a vida anterior dos protagonistas. No que diz respeito à parte do dia, no caso de contos com traços eróticos o narrador opta pela noite que se mostra a mais apropriada para os encontros amorosos exemplificando-o por Agnès – Ou

o Amor Assexuado ou Tendresse. Também noutras partes do dia o ambiente costuma ser

misterioso, como um dia cheio de névoa e chuva em Mudança de Posto. Em A Bota, é muito bem salientada «a hora dos fracassados» que deambulam sozinhos como o Joaquim pela Lisboa noturna na Noite de Natal.

Com referência ao narrador, na maioria dos casos costuma ser ao mesmo tempo o protagonista que conta a sua história e as suas emoções (Mudança de Posto, Agnès – Ou

o Amor Assexuado). Mas, num caso, em O Jardineiro de Almas, os papéis invertem e Miguéis

nos representa de maneira brilhante o ponto de vista de uma mulher sensível que narra a sua vida acompanhada por vezes com os encontros com o «Jardineiro». Em A Bota aparecem dois narradores, não só o protagonista, cuja história é comunicada ao leitor por meio dos seus

pensamentos (da mesma forma que em Tendresse), mas aparece também o narrador omnisciente presente tipicamente nos contos mais curtos: em Simples Conto do Natal,

O Telefonema das Oito e Episódio «Norueguesa». Nos contos que estamos a analisar

é também bastante evidente a função pedagógica do narrador: «Os narradores de José

Rodrigues Miguéis assumem geralmente […] a capacidade pedagógica de avaliar os actos humanos e de ensinar melhores formas de vida, norteadas pelos valores éticos que subjazem à sua escrita.» (Saraiva de Jesus 2002: p. 232) Na maioria dos casos, nos contos mais

extensos, ele relata as circunstâncias e o passado dos personagens principais, os seus motivos internos e ao mesmo tempo as suas experiências negativas para que o leitor perceba e compreenda melhor o comportamento dos protagonistas e para que possa tirar melhor as conclusões e a seguir tomar a lição.

Na maior parte dos contos predomina a narração e a descrição em contraste com muito pouco discurso direto, concretamente, com exceção de Mudança de Posto e Agnès – Ou

o Amor Assexuado, que está baseado no diálogo; há sempre uma ou duas réplicas ao máximo.

Geralmente, nos contos que ultrapassam a extensão de duas páginas, aparece uma descrição detalhada e poética do lugar e da mulher, da qual vamos dissertar a seguir.

Relativamente ao aspeto gráfico dos contos, o autor recorre com frequência às maiúsculas em palavras como Homem, Mulher, Cidade, Campo etc. para assinalar o valor simbólico e generalizar o problema. Para sublinhar algumas ideias ou pensamentos, para introduzir os estrangeirismos ou para indicar ambiguidade ou ironia («Feliz Natal!» , p. 280), usa o itálico.

Todos os contos escolhidos e submetidos à análise giram em torno da relação entre os co-protagonistas, o homem e a mulher. Há um traço interessante; ao longo da narração normalmente evolui só um dos protagonistas, e nunca os dois. Por exemplo, a personagem do conto Tendresse tem que madurar para se dar conta de estar apaixonada pelo homem com quem mora, mesmo que este esteja consciente disso já desde o momento em que a viu pela primeira vez. Podemos encontrar uma situação semelhante no conto O Jardineiro de Almas, em que a diferença é ainda mais evidente: a mulher passa por uma evolução enorme, mudando toda a sua vida, enquanto que o homem degrada de maneira completa. A Amália de

Mudança de Posto parece não mudar nada, em contraste com a luta interna que aflige o Bob

que finalmente consegue dominar. O amante da Agnès também evoluciona do estado em que acha que já é velho demais para ter uma relação amorosa, mas depois de uma noite com

a Agnès (ou de um mero sonho com a Agnès), diz que «apesar da idade, glabro e sem

defeitos, a mulher podia ainda amar-me sem se sentir dominada ou insatisfeita.» (Rodrigues

Miguéis 1982: p. 177), ao passo que Agnès continua no seu modo de viver anterior. A «Princesa» do Simples Conto do Natal também muda, enquanto que o seu namorado não se apercebe da necessidade que teria de começar a viver doutro modo para que a sua namorada não deva vir a ser prostituta.

E, quanto ao entredo, cada um dos contos consegue surpreender o leitor com um desenlace inesperado; mencionemos por exemplo a morte do Venâncio de O Telefonema

das Oito ou o destino cruel da protagonista de Simples Conto do Natal. Do resto dos traços

comuns, relacionados com a personagem da mulher, vamos ocuparnos no capítulo seguinte.

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