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A teoria da translatio iudicii compreende inovação procedimental significativa positivada há alguns anos na jurisdição italiana e objeto de estudos no direito pátrio após a sua adoção pelo Código de Processo Civil.

Este instituto é previsto - mesmo que sem denominação expressa - no artigo 64, §4º do CPC, e traduz que as decisões proferidas por magistrado incompetente terão, em regra, seus efeitos conservados até que nova decisão seja prolatada no juízo competente; a exceção se perfaz na hipótese de o juiz expressamente revogar os efeitos da própria decisão (BUENO, 2018, p. 152; DELLORE et al., 2018a, p. 245; MEDINA, 2015), ipsis litteris:

Art. 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação.

[...]

§ 4º Salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente. (BRASIL, 2015).

Importante anotar que não há menção quanto à nulidade ou não da decisão proferida por juízo incompetente. Nesse ponto, observa-se que o dispositivo não distinguiu a classificação de competência absoluta ou relativa nem elencou a incompetência absoluta como fator inexorável de nulidade das decisões, como havia no sistema anterior (BUENO, 2018, p. 152). Sob esta ótica, Cabral (2018, p. 14) faz o adendo de que o Diploma Processual atual não distingue os regimes de invalidação das nulidades relativas ou absolutas, pois “todos os defeitos no direito processual civil são convalidáveis porque os atos processuais devem ser considerados válidos prima facie [...].”

Isso porque, a preservação ou não da decisão anteriormente exarada pode ser versada no momento do reconhecimento da incompetência absoluta, pois, mesmo que seja determinado o declínio da competência, é certo que constitui nova decisão (BUENO, 2018, p. 152). Assim, mesmo que os atos processuais apresentem defeitos, seus efeitos permanecem até o seu desfazimento de maneira explícita, independentemente de a invalidação do procedimento ocorrer por meio de ordem judicial (DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2016, p. 132).

Por derradeiro, Cabral (2018, p. 14) qualifica os defeitos dos atos decisórios em sanáveis ou insanáveis, porquanto a invalidade de tais atos é posterior, como consequência da incompetência.

Logo, a decisão concedida pelo Tribunal incompetente e, portanto, defeituosa, após a transferência de juízo aos Juizados pode ser sanada ou não, a depender da interpretação da Turma Recursal sobre a possibilidade de admitir recurso que impugnou decisão que indeferiu a tutela provisória. Ou seja, o defeito será sanado caso o órgão colegiado entenda pela admissibilidade, confirmando (tornando válida) ou cassando (tornando inválida) a decisão liminar do Tribunal na análise final do recurso; ou o defeito será insanável, se entender-se pela inadmissibilidade, pois a Turma Recursal sequer poderá dispor sobre as razões recursais, havendo a revogação automática do ato decisório, como se o recurso não houvesse sido interposto.

À vista disso, Cunha (2012 apud AVELINO, 2017) pondera que “é preciso interpretar o §4º no sentido de que a conservação de que trata o dispositivo deve abranger todos

os atos processuais, incluídas as decisões proferidas e seus efeitos processuais ou materiais.” Assim, extrai-se que a translatio iudicii abrange os efeitos processuais e materiais das decisões (AVELINO, 2017).

Para Lourenço (2019, p. 125), a translatio iudicii, “[...] a grosso modo, nada mais seria do que trasladar para outro processo a relação jurídico processual que era travada em outro foro, uma transferência de juízo, conservando os efeitos totais da relação jurídica processual anterior [...].” O doutrinador Cunha (2016) aduz, em complemento, que a translatio iudicii estabiliza e aproveita os atos processuais já praticados.

Por fim, quanto à essência da translatio iudicii, conclui-se que a pretensão é aproveitar os atos processuais realizados, porquanto, apesar de o órgão prolator ser incompetente, ainda exerce a mesma jurisdição dentro do Estado que o juiz competente em razão da divisão organizacional e funcional do Poder Judiciário. Logo, não subsiste razão para torná-los nulos (SOUZA; THAMAY, 2018; MEDINA, 2015).

Neste crivo, em que pese a incompetência absoluta, não subsiste razão para que a decisão liminar não seja mantida, visto que os Tribunais são órgãos revisores com estruturação e qualificação semelhante às Turmas Recursais.

Enfatiza-se que os colégios dos Tribunais Regionais Federais, assim como os colégios dos Tribunais de Justiça, detêm competência funcional e material para julgar o agravo de instrumento, porquanto a ação somente se submete ao trâmite no Juizado Especial Federal ou no Juizado Especial da Fazenda Pública em razão do valor dado à causa. Se o valor fosse superior aos 60 (sessenta) salários mínimos fixados pela legislação, as razões recursais do agravo de instrumento seriam apreciadas pelas Cortes de Justiça.

Além disso, mesmo que a decisão monocrática não seja decretada nula automaticamente, por certo, será confirmada, revogada ou dada como prejudicada pelo juízo competente posteriormente. Assim, demonstra-se que a translatio iudicii não tem condão de convalidar a decisão liminar do Tribunal absolutamente incompetente, mas sim de manter seus efeitos materiais enquanto não há nova disposição das Turmas de Recurso sobre a tutela pleiteada.

Isto posto, alegada a incompetência e remetendo-se os autos ao juízo competente, torna-se impreterível a observância à teoria da translatio iudicii, por aplicação integrativa do Código Processual Cível, conservando-se os efeitos da decisão liminar do Tribunal incompetente.

5.2.1 Base principiológica

Notadamente a regra da translatio iudicii espelha muitos princípios positivados na Carta Maior, citando-se os princípios da duração razoável do processo, da economia processual (ROQUE et al., 2018a, p. 829), do aproveitamento dos atos processuais, da efetividade da jurisdição, (CUNHA, 2012) e da eficiência (CUNHA, 2016).

Urge ressaltar, em pertinência à análise da conservação da liminar em pauta nesta monografia, que tais princípios ainda dão força à translatio iudicii, “sobretudo se tais atos consistirem na prolação de provimento de urgência”, evitando prejuízos irreparáveis para a parte que demonstra ter razão (CUNHA, 2012).

Desta feita, não restam dúvidas que há fundamentação principiológica para que se preservem os efeitos materiais e processuais das ações, “servindo como elemento de estabilização e de aproveitamento dos atos praticados no processo.” (GRECO, 2008, p. 9/26 apud CUNHA, 2012).

Milano (2006, p. 57 apud GRECO, 2008, p. 14) traz firmeza em seu entendimento de que é o provimento do direito material que se concretiza o acesso à justiça, e não os atos os atos processuais em si.

Com efeito, tais princípios remontam ao caso desta pesquisa, porque, nos pleitos de tratamento medicamentoso, o bem maior tutelado é a vida, por meio do direito à saúde, que carece de urgência para ser garantido, não sendo razoável que se interrompa uma ordem judicial desta importância por conta do procedimento inadequado que a ação foi submetida, confirmando que a translatio iudicii tem fundamentação não só processual, mas também material para ser aplicada.

5.2.2 A origem da regra no direito italiano

Vê-se que, igualmente à evolução do ordenamento pátrio, a jurisdição italiana, que se norteava pela norma de extinção do processo sem resolução do mérito quando reconhecida a incompetência do juízo, após muita discussão acerca da regra frente à função maior da jurisdição evoluiu, fixando a regra da translatio iudicii na legislação processual civil italiana. No entanto, o avanço se deu “[...] não sem a necessidade de interpretações jurisprudenciais dolorosas e uma declaração de ilegitimidade constitucional, da introdução da translatio iudicii mesmo em caso de defeito de jurisdição do tribunal apreendido.” (ASPRELLA, 2010, tradução nossa).

Inicialmente, o Código italiano, em seu artigo 5050, já previa que havendo a

declaração de incompetência, o processo deve prosseguir perante o novo juízo. Contudo, havia restrição expressa quanto à sua utilização na concorrência entre a jurisdição comum e a administrativa. Nesses casos, nos ditames do Código de Processo Civil italiano, quando houvesse “defeito de jurisdição”, assim denominado pelos italianos, o processo seria extinto sem resolução do mérito. Entretanto, em atenção ao direito de acesso à Justiça e na garantia de que o processo deve ser justo e adequado, a Corte de Cassação italiana, no dia 22 de fevereiro de 2007, manifestou entendimento no sentindo de que o reconhecimento da incompetência implica no prosseguimento do processo no juízo competente sem impedimento quanto à jurisdição comum e a administrativa.

Por conseguinte, a Corte Constitucional da Itália, na data de 12 de março de 2007, exercendo o controle de constitucionalidade do artigo 30 da Legge 6 dicembre 1971, n. 1034, também concluiu que a incompetência ou o “defeito de jurisdição” não seria mais causa de extinção do processo, mas sim a ocasião de determinar-se a remessa dos autos ao juízo entendido como competente, inovando ao ordenar a preservação dos efeitos processuais e substanciais das decisões prolatadas no juízo anterior.

Nessa evolução, sob tais regras, a translatio iudicii fora introduzida no ordenamento jurídico italiano Legge 18 giugno 2009, n. 69 (CUNHA, 2012) e ainda possui grande destaque na jurisdição italiana, exercendo grande influência em outras jurisdições, tal qual a jurisdição brasileira, a partir do novo CPC.