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O L UGAR DE S ATANÁS E DOS D EMÔNIOS NA T EOLOGIA C RISTÃ

No documento Teologia Sistemática - Stanley Horton (páginas 116-121)

A V ITÓRIA DE D EUS S OBRE S ATANÁS E os D EMÔNIOS

O L UGAR DE S ATANÁS E DOS D EMÔNIOS NA T EOLOGIA C RISTÃ

Existe um lugar legítimo para a demonologia na teologia cristã? Existe uma base legítima para incluir o demonismo nas confissões de fé da Igreja? Certamente, "crer no" diabo não é linguagem apropriada para o credo cristão. Neste, a fé em Deus e o repúdio ao diabo e a todas as forças que servem a causa da iniquidade devem ser bastante claros. Mas que tipo de ênfase devemos dar, na confissão cristã, e esse repúdio de Satanás?

O poeta Howard Nemerov declarou: "Hesito muito em falar do Diabo para ninguém pensar que o estotrtn-vocan-do."66 Karl Barth deixou claro que só daria uma olhadela

rápida e penetrante na área da demonologia. A olhada deve ser "rápida" para não dar valor e atenção desnecessários ao demonismo.67 Para Barth, a teologia devia ser

dominada pela graça de Deus revelada em Cristo. Mas a olhada tem de ser "penetrante" pois o demonismo não deve ser tratado levianamente.

Infelizmente, nos movimentos pentecostais e carismáticos, os ministérios de guerra espiritual e de libertação abundam, dedicando atenção deliberada ao âmbito do demonismo. Muitos defensores de semelhantes ministérios vão nitidamente além do lugar legítimo que a mensagem bíblica atribui ao demonismo. Parece que nesses ministérios há certo fascínio com o âmbito dos demônios, e o resultado é que muito mais atenção é prestada a eles do que a Bíblia pode apoiar.

Realmente, certa glória e legitimidade são concedidas ao diabo em tais ministérios. O diabo é frequentemente referido como o elemento exclusivo (ou pelo menos, dominante) em toda a oposição aos propósitos redentores de Deus para a humanidade. A totalidade da atividade divina na redenção é reduzida à destruição do diabo de modo que a soteriologia, a cristologia, a pneumatologia e todas as demais áreas da teologia são debatidas quase exclusivamente à luz da luta contra os demônios! Sem o diabo, semelhante pregação e teologia seriam reduzidas a uma casca vazia! Em semelhante contexto, a demonologia concorre muito bem com Deus e com todas as demais áreas da teologia, e exige e conseguiu atenção igual, ou até mesmo maior. R.Gruelich sustenta que o novelista Frank Peretti tem dado seu apoio literário a semelhante distorção teológica, pois considera que o mundo e o destino humano estão dominados pelos resultados da guerra contra os demônios.68

Em semelhante contexto, a demonologia recebe glória e relevância teológica muito além dos limites estabelecidos pela Bíblia. Nessa visão, acredita-se que o horizonte do mundo cristão esteja cheio de ataques de demônios. A forma grotesca dessa crença acha- se na suposição de que os demônios podem possuir e dominar cristãos desobedientes. Para harmonizar tal suposição com o ensino bíblico de que os cristãos pertencem a Cristo e que são dirigidos primariamente pelo Espírito de Deus (Rm 8.9-17), uma dicotomia antibíblica é estabelecida entre o corpo e a alma de modo que Deus acaba dominando a alma ao passo que os demônios controlam o corpo.69 Mas a Bíblia ensina

que uma lealdade tão radicalmente dividida é uma impossibilidade para a pessoa de fé genuína (Mt 7.15-20; 1 Co 10.21; Tg 3.11-12; 1 Jo 4.19-20).

A glorificação dos demônios no mundo cristão tem seu paralelo numa tendência semelhante na cultura. A humanidade sempre sentiu certo fascínio pelas coisas sinistras e demoníacas. Maxilmilian Rudwin declarou, por exemplo, que a figura de Satanás "avulta-se amplamente na literatura". Acrescenta: "Seria realmente triste a situação da literatura sem o diabo." 70 A história das práticas ocultistas tem se alimentado do

fascínio que a humanidade sente pelos demônios. E até mesmo a ascensão do pensamento científico moderno tem servido quase nada para reduzir tal fascínio.

Na segunda metade do século XX, registrou-se um renovado interesse pelos demônios e pelo ocultismo. A indústria do cinema de terror ficou cada vez mais fascinada pelos demônios e pelos consequentes lucros financeiros. Filmes tais como O

Exorcista e Poltergeist buscam ressaltar a incapacidade da ciência e da Igreja em lidar

com os espíritos, malignos. Apresentam histórias nas quais elementos demoníacos, muitas vezes confundidos com as almas dos entes queridos, dominam o fluxo dos eventos. Em tais conjecturas, a graça de Deus está ausente, ou mostra-se débil. Até mesmo o final "feliz" surpreende mais que as vitórias demoníacas que lhe antecederam.

Por certo, semelhante fascínio pelo demonismo não é saudável nem bíblico. A fixação que os discípulos de Jesus sentiram com a sua autoridade sobre os demônios foi corrigida. O Senhor os exortou a se regozijarem" antes de mais nada pelo fato de haverem sido escolhidos pessoalmente por Deus (Lc 10.17-20).

A oposição de Satanás ao Evangelho somente pode ser entendida à luz do próprio Evangelho. A verdadeira profundidade do mal somente há de ser compreendida à luz da profundidade da graça de Deus à qual o mal se opõe, procurando destruí-la. A verdadeira tragédia das trevas apenas pode ser entendida no contexto das glórias da luz divina. A ênfase do Novo Testamento, portanto, recai sobre a glória de Deus e a vida com Deus, e não sobre as tentativas do inimigo de se opor a elas.

Entre os cristãos, a tendência de enfatizar o papel de Satanás tem até mesmo levado a uma legitimização de seu papel de oponente de Deus, como se o adversário tivesse o direito legal sobre pessoas e governos. Enfim, como se a sua posição de "deus da presente era" devesse ser respeitada até mesmo pelo Altíssimo!

De modo contrário àquilo que alguns pensam, não há em Judas 9 nenhum respeito por Satanás quando o anjo hesitou em lançar contra ele acusação caluniadora. O arcanjo Miguel refreou qualquer acusação baseada na sua própria autoridade, mas disse: "O Senhor te repreenda". Isso significa que qualquer rejeição das reivindicações enganosas de Satanás somente poderá vir da autoridade de Deus e da sua graça, e não da sabedoria ou autoridade que geramos em nós mesmos.

Na realidade, uma noção dos direitos satânicos era apoiada pela teoria do resgate na Expiação, defendida por certos teólogos latinos antigos e medievais, no Ocidente; e por Orígenes, no Oriente. Essa teoria supunha que Satanás tinha o direito de governar e oprimir a humanidade por causa da rebelião humana contra Deus. Cristo, então, foi enviado para pagar a Satanás um resgate pela libertação da raça humana.

A teoria do resgate, porém, elimina desde o início qualquer oposição real entre Deus e Satanás. Fica pressuposta a aceitação por Deus da posição e do papel de Satanás, e a disposição divina de se entender com o adversário segundo as condições impostas por este. A Satanás é concedido ter sua própria posição legítima à parte do plano redentor de Deus, posição esta que Deus precisa respeitar no seu esforço de redimir a humanidade!

Em contraste com a teoria do resgate há o ensino bíblico de que a posição e a atuação de Satanás baseiam-se numa mentira (Jo 8.44). Não há nenhuma legitimidade que Deus deva reconhecer, e com que Ele deva se conformar! O triunfo da graça divina sobre as forças das trevas não concede a elas nenhuma posição legítima e digna de respeito, e declara que Satanás, como o "deus deste século," tem uma posição ilegítima que lhe foi concedida pela cegueira e rebelião da própria humanidade (2 Co 4.4). Realmente, um "pagamento" foi feito por Cristo na cruz, não a Satanás, mas a Deus, em favor da humanidade. 71

Nossa resposta mais sábia às reivindicações falsas e enganosas de Satanás é negá- las; e devemos fazê-lo somente através da "olhadela" rápida e penetrante que o teólogo Karl Barth lhes deu na luz maior da graça e verdade de Deus. Parecer haver, contudo, uma pressuposição oculta entre muitos participantes dos ministérios de libertação no sentido de que Satanás somente pode ser derrotado por aqueles que melhor o conhecem. Noutras palavras: quanto mais mistérios pudermos desvendar a respeito dos demônios, tanto mais poderemos controlá-los e derrotá-los. Nesses casos, entende-se que a libertação é o resultado de um conhecimento secreto (gnõsis) que pessoas fora do movimento da libertação não possuem. Especulações muito complexas são feitas a respeito da organização e das características dos demônios e de como se relacionam com os governos humanos e as vidas individuais. Práticas primorosas de "amarrar" as potências demoníacas podem ser usadas contra elas, uma vez compreendidas as suas verdadeiras posições e funções no mundo.

Por outro lado, ao lermos a Bíblia, percebemos como é notável a total ausência de semelhantes especulações e práticas. A Bíblia encoraja-nos a resistir às forças enganadoras das trevas, e não estudá-las e amarrá-las.72 Nenhum esforço é feito na

Bíblia para levar-nos a conhecer melhor o diabo. O enfoque exclusivo recai em conhecer melhor a Deus, resistindo, ao mesmo tempo, quaisquer tentativas de Satanás de obter a nossa atenção. Submeter-se a Deus e resistir ao diabo é o conselho que Tiago nos deu (Tg 4.7).

Certamente não devemos ignorar a existência do diabo. Mas qualquer atenção que a ele prestarmos não deve passar de nossa negação quanto as suas reivindicações à luz do enfoque sobre as reivindicações divinas. A Bíblia não especula, nem dá muitas informações a respeito de Satanás e dos demônios. Não existe aí muita coisa para

satisfazer a nossa curiosidade. Há indícios de haver ocorrido uma queda de Satanás e dos demônios (Jd 6; Ap 12.7-9).

Alguns especulam que o Antigo Testamento descreve a queda de Satanás em Isaías 14.12-20, mas o significado desse trecho não fica bem claro, e talvez não passe de uma repreensão poética ao "rei de Babilônia" (14-4). O "quando" e "como" dessa queda não é definido explicitamente em nenhum lugar. A verdade é que o propósito da Bíblia ao tratar de Satanás e dos demônios visa à redenção do homem, e não a especulação teológica. O enfoque recai em afirmar o propósito redentor de Deus, e o seu poder em repudiar as obras e as reivindicações de Satanás. Não existe nenhuma ênfase em obtermos conhecimentos profundos a respeito de Satanás para o derrotarmos.

Precisamos de muito discernimento para derrotar o que realmente pertence ao reino das trevas, pois o próprio Satanás pode disfarçar-se em anjo de luz (2 Co 11.14). O orgulho, a idolatria, o preconceito e as fobias mais prejudiciais podem aparecer na forma de religiosidade e patriotismo, por exemplo, e serem defendidos como doutrinas e práticas nobres. A escravidão e o racismo têm sido defendidos por pessoas que alegam estar apoiando as mais nobres causas religiosas e patrióticas. Semelhantes pecados só servem para apoiar o reino das trevas. Será necessário sempre esquadrinharmos o nosso próprio coração para negar as obras do diabo e reafirmar a renovação do Espírito na Igreja.

O testemunho das Escrituras oferece-nos fontes específicas de orientação para discernirmos as forças do mal e da opressão. Há um critério cristológico e uma base no Espírito de Deus para o discernimento do mal. Por exemplo: já que Deus criou a humanidade à sua imagem, e reivindicou o direito à raça humana mediante o nascimento, morte e ressurreição de Cristo, qualquer tentativa de desumanizar uma pessoa contradiz o amor divino, e serve aos propósitos das forças das trevas. Já que o Espírito ungiu a Cristo para pregar as boas novas aos pobres, aos cegos, e aos presos (Lc 4.18), isso significa que as estruturas e as forças que encorajam a pobreza, a doença e o crime servem ao reino do mal. Já que Satanás deixa as mentes dos ímpios cegas diante do Evangelho (2 Co 4-4), as coisas que desencorajam nosso testemunho evangélico (em palavras e ações) diante dos necessitados hão de promover as ações de Satanás.

O demonismo ajuda-nos a reconhecer que a resistência humana a Deus tem relevância ulterior. Colocada no horizonte da vitória escatológica do Reino de Deus sobre as forças das trevas, a obediência e a desobediência a Deus, no presente tempo, são questões bastante graves. Com cada decisão na vida cristã, os crentes devem optar em favor do Reino de Deus e postar-se contra o reino das trevas. Buscar o Reinode Deus e a sua justiça é o desafio constante do cristão. Às vezes, as escolhas poderão parecer difíceis e ambíguas. Mas a gravidade da escolha da obediência e a necessidade do consolo e do perdão divinos em meio as nossas opções nunca deverão ser subestimadas. O papel desempenhado pelo demonismo na teologia e no testemunho cristãos indica a gravidade das nossas escolhas.

PERGUNTASDO ESTUDO

1. Considere as interpretações de Origines (nota de rodapé 84), de Tomás de Aquino (n.r. 17), de Martinho Lutero (n.r. 21), dos Cabalistas (n.r. 38), de Ireneu (n.r. 40), e de Paul Tillich (n.r. 25) acerca da natureza ou do papel dos anjos. Por que essas opiniões são problemáticas? Como suas dificuldades hermenêuticas poderão ser re- solvidas ou evitadas?

2. Tendo por base sua própria pesquisa cuidadosa de Co-lossenses 1.15-18, considere o lugar apropriado dos anjos.

3. Aliste algumas das crenças comuns na sua comunidade e igreja a respeito dos anjos. Como você corrigiria ou confirmaria cada crença alistada?

4. Anjos são servos. Como seu exemplo deve afetar a nossa motivação em servir a Deus?

5. O que os anjos podem e querem fazer por nós hoje, segundo demonstra a Bíblia? 6. O que, segundo a Bíblia, não podemos esperar que os anjos façam por nós hoje? 7. A demonologia remove-nos dos verdadeiros problemas e males da vida? Explique

como ela poderia fazê-lo? Por que é relevante repudiar o diabo e as suas obras quando resistimos às forças do mal na vida?

8. Como a abordagem do Antigo Testamento à demonologia difere dos conceitos pagãos antigos dos espíritos malignos? Considere-a em relação à soberania de Deus. Em particular, a soberania divina significa que não há oposição real entre Deus e Satanás no Antigo Testamento?

9. Qual verdade se pode achar no fato de a derrota das forças das trevas ter sido revelada no Novo Testamento somente após a revelação de Cristo como a encarnação da graça e da verdade?

10. Descreva a vitória de Cristo sobre as forças das trevas. Essa verdade desempenha algum papel na proclamação apostólica do Evangelho? Explique.

11. Descreva os problemas com o dualismo e o monismo filosóficos. Qual o

equilíbrio bíblico entre a soberania de Deus e a oposição de Satanás contra os propósitos de Deus?

12. A demonologia elimina a responsabilidade humana? Por quê?

13. Os cristãos podem ser possuídos por demônios?

14. Os discernimentos humanos e científicos dos nossos problemas têm algum lugar legítimo entre os crentes?

15. São legítimas as reivindicações e acusações de Satanás? Devem ser concedidos a ele direitos legítimos como deus desta era? Como a teoria do resgate tem apresentado incorretamente as reivindicações e direitos de Satanás?

16. Os entendimentos humanos e científicos dos nossos problemas têm algum lugar legítimo entre os crentes?

17. Existe o fascínio com o demonismo na Igreja e na cultura? O que está

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