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A VIRADA NEOLIBERAL: DA REGULAÇÃO FORDISTA À CONDUTA NEOLIBERAL

CAPÍTULO 1. NEOLIBERALISMO: A RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA DO CAPITAL

1.2 A VIRADA NEOLIBERAL: DA REGULAÇÃO FORDISTA À CONDUTA NEOLIBERAL

O desenvolvimento da sociedade contemporânea envolveu uma série de regulações em processos, estruturas socioeconômicas, políticas e culturais, que consolidaram a globalização econômica e comercial. Essa consolidação implicou, também, uma globalização do mundo do trabalho e o avanço da Racionalidade Neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016).

Chesnais chamou esse período de “mundialização do capital”, que se configura como a

[...] capacidade estratégica de todo grande grupo oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta “globais”. O mesmo vale, na esfera financeira, para as chamadas operações de arbitragem. A integração internacional dos mercados financeiros resulta, sim, da liberalização e desregulamentação que levaram à abertura dos mercados nacionais e permitiram sua interligação em tempo real. Mas baseia-se, sobretudo, em operações de arbitragem feitas pelos mais importantes e mais internacionalizados gestionários de carteiras de ativos, cujo resultado decide a integração ou exclusão em relação às “benesses das finanças de mercado”. (CHESNAIS, 1996, p. 17)

Essa fase atual de acumulação capitalista13 com predominância financeira, “na qual o capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais” (CHESNAIS, 2005, p. 35), tem afetado todas as dimensões da vida social em que a concorrência se constituiu como uma norma global.

Essa predominância se impôs pouco a pouco como a direção global e fez despontar a profundidade estratégica das políticas neoliberais. Essa estratégia objetivou favorecer, dentro de uma coerência global, a concorrência generalizada, que Dardot e Laval chamaram de “a grande virada”, desenvolvida partir de determinados aspectos:

O primeiro diz respeito à relação de apoio recíproco graças à qual as políticas neoliberais e as transformações do capitalismo ampararam-se

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Para Harvey (2013, p. 117), “um regime de acumulação ‘descreve a estabilização, por um longo período, da alocação do produto líquido entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a transformação tanto das condições de produção como das condições de reprodução de assalariados’. Um sistema particular de acumulação pode existir porque ‘seu esquema de reprodução é coerente’”.

mutuamente para produzir o que denominamos “a grande virada”. Contudo, essa virada não se deve apenas à crise do capitalismo nem surgiu de repente. Ela foi precedida e acompanhada por uma luta ideológica, que foi sobretudo uma crítica sistemática e duradoura de ensaístas e políticos contra o Estado de bem-estar. Essa ofensiva alimentou diretamente a ação de certos governos e contribuiu enormemente para a legitimação da nova norma quando esta por fim surgiu. Esse é o segundo ponto. No entanto, apenas a conversão dos espíritos não teria sido suficiente – foi necessária uma mudança de comportamento. Isso foi obra, em grande parte, de técnicas e dispositivos de disciplina, isto é, de sistemas de coação, tanto econômicos como sociais, cuja função era obrigar os indivíduos a governar a si mesmos sob pressão da competição. Esse é o terceiro ponto. Finalmente, a progressiva ampliação desses sistemas disciplinares, assim como sua codificação institucional, levaram à instituição de uma racionalidade geral, uma espécie de novo regime de evidências que se impôs aos governantes de todas as linhas como único quadro de inteligibilidade da conduta humana. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 193, grifos dos autores)

Na relação de apoio recíproco, encontra-se a globalização financeira associada à transformação da base técnica capitalista. Essa relação manifesta-se a partir da crise econômica da década de 1970 e da crise de regulação fordista com base nos princípios tayloristas.

Essa reciprocidade começa a despertar interesses de muitos dirigentes dos países capitalistas que reclamavam constantemente da suposta ingovernabilidade de suas democracias, em virtude do compromisso político da social democracia, que possibilitava o “excesso” de participação dos governados.

Nesse contexto, iniciado de maneira processual nas décadas de 1970/1980, a chamada “grande virada”14

se deu, na realidade, pela conexão “de um projeto político a uma dinâmica endógena, a um só tempo tecnológica, comercial e produtiva” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 194).

Essa conexão do projeto político neoliberal manifesta-se pela luta ideológica nos governos neoliberais de Reagan e Thatcher, que representou o rompimento das políticas de bem-estar numa resposta política à crise econômica e social do modelo fordista de regulação entre capital e trabalho.

A regulação fordista deve ser compreendida “como ponto extremo do processo de tentativas sucessivas da indústria no sentido de superar a lei tendencial da queda da taxa de lucro” (GRAMSCI, 2015, p. 242), subordinada ao virtuoso crescimento da

14 Dardot e Laval (2016, p. 193-194) alertam-nos para não cairmos nos dois enganos do sentido da

“grande virada”, isto é, “a primeira consiste em fazê-la proceder exclusivamente de transformações econômicas internas ao sistema capitalista. Desse modo, a dimensão de reação-adaptação a uma situação de crise é artificialmente isolada. A segunda consiste em ver a ‘revolução neoliberal’ como a aplicação deliberada e concertada de uma teoria econômica, privilegiando-se na maioria das vezes a de Milton Friedman”.

produtividade do trabalho, associada à determinada solidariedade macroeconômica entre “salário” e “lucro”.

A efetivação do aumento da produtividade sob a regulação fordista na organização do trabalho apoiou-se na gerência científica do trabalho de Taylor, com alicerce em três princípios: o primeiro, na dissociação do processo de trabalho das especialidades dos trabalhadores; o segundo, na separação entre concepção e execução; e o terceiro, na utilização do monopólio do conhecimento sobre o processo de trabalho e sua execução (BRAVERMAN, 1974).

É interessante destacar que tais princípios visam à “apropriação do saber especializado do trabalhador, com a consequente concentração desse saber na gerência e a sua utilização com fins de reduzir drasticamente a porosidade do trabalho humano” (RODRIGUES, 1998, p. 50), maximizando a subsunção real do trabalho, ocasionando uma mudança qualitativa na organização e na racionalização do trabalho.

Medeiros (2013) destaca duas tendências: por um lado, supõe-se que o avanço extensivo do capital tenha sobrepujado progressivamente os ganhos de produtividade facultados pela produção em massa “fordista”: afinal de contas, no início da década de 1960, o desemprego foi virtualmente eliminado, ao menos nos países desenvolvidos.

Por outro lado, a redução do valor da força de trabalho facultada pelo aumento da produtividade (barateamento de produtos) e salários estáveis ocasionados pela organização sindical, pela redução do desemprego e pelo Estado de bem-estar, impediram temporariamente a manifestação fenomênica da lei geral da acumulação capitalista15.

A classe trabalhadora, durante esse período, conquistou, sem sombra de dúvidas, melhores condições de vida16, inclusive nas oportunidades de trabalho, sem que isso tenha ameaçado a taxa de mais-valor. Portanto, “reduziu-se a pobreza, massificou-se o consumo, difundiu-se o otimismo” (MEDEIROS, 2013, p. 397). No entanto, esse

15 Para Marx, “A força de trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força

expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as potências das riquezas, mas, quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista” (MARX, 2013, p. 719, grifos do autor).

16 Rodrigues (1998) ressalta que o fordismo não se restringiu às fábricas (indústria automobilística ou

transformação em geral) isto é, atingiu os diversos âmbitos da vida social, cultural e política, visto que ele foi “forjado no cadinho da luta de classe, envolvendo decisões políticas, econômicas, empresariais estatais e sindicais” (RODRIGUES, 1998, p. 52). Tendo papel de destaque os sindicatos e o Estado regulador no consenso ativo das classes subalternas, com base na solidariedade macroeconômica entre salário e lucro, centrado na base territorial Estado-nação.

suposto modelo virtuoso de crescimento se deparou com limites endógenos do mercado interno.

No final da década de 60, o modelo virtuoso de regulação fordista já se mostraria esgotado com a queda na taxa de lucratividade das empresas em virtude da desaceleração dos ganhos de produtividade, resultado da relação de forças sociais e da combatividade dos trabalhadores.

A ofensiva do capital para combater o esgotamento da regulação fordista materializou-se no aumento da inflação, das taxas de juros e do desemprego. E, também, na contração do poder de compras dos salários, na redução do consumo e na eliminação das conquistas sociais da classe trabalhadora.

Essa situação “permitiu lançar rapidamente uma série de ofensivas contra o poder sindical, baixar os gastos sociais e os impostos e facilitar a desregulamentação” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 196). Isso representou, para os intelectuais orgânicos neoliberais, o combate ao “excesso de democracia”17 e ao Estado burocrático.

Esse contexto de combate ao “excesso de democracia” e ao “Estado burocrático” demarca o ponto de inflexão da virada à pró-acumulação financeira do capitalismo mundial iniciada no final dos anos 1970 e, mais tarde, nos anos da década de 1990, ao conjunto das economias da América Latina, através da subordinação da governança das economias dos países, que introduziram um “novo conjunto de regras que definem não apenas outro ‘regime de acumulação’, mas também, mais amplamente, outra sociedade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 24).

Com a chegada do neoliberalismo no Brasil, essas transformações pró-capital financeiro se aprofundaram, quando ocorreu essencialmente a conformação do “bloco histórico conservador formado pela burguesia e setores intelectuais, técnicos e administrativos das camadas médias organicamente relacionados ao Estado brasileiro, a centros de pesquisa, às empresas, e ao fim e ao cabo, às classes dominantes no país” (BARROS R., 2007, p. 308), ao subsumir a economia brasileira aos ditames do

17 “A Comissão Trilateral, fundada em 1973 por David Rockfeller, reúne duzentos ‘cidadãos distintos’,

isto é, membros selecionadíssimos da elite política e econômica mundial provenientes da ‘tríade’ (Estados Unidos, Europa, Japão) que se dedicaram a ‘desenvolver propostas práticas para uma ação conjunta’. [...] Essa dimensão propriamente reativa é patente no relatório da comissão trilateral, intitulado The Crisis of Democracy, um documento-chave que mostra a consciência da ‘ingovernabilidade’ das democracias compartilhada por muitos dos dirigentes dos países capitalistas” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 194), dentre eles, Reagan e Thatcher. A lógica do documento é simples, para o bom funcionamento da democracia política, é necessário certo nível de abatimento e abstenção da parte de certos indivíduos e grupos, isto é, a ampliação do consenso passivo.

imperialismo norte-americano. Tendo como expressão fenomênica inicial a figura do governo Fernando Collor de Mello.

Dessa forma, para a recuperação da economia, era necessária uma nova regulação, isto é, a instauração da concorrência como norma geral e suprema aos governos, sob o disciplinamento de um sistema intergovernamental gerido pelos aparelhos de hegemonia internacionais. Esse sistema ganha corpo através do “Consenso de Washington”, conjunto de recomendações e ajustes que todos os países deveriam seguir junto às instituições financeiras internacionais para obter empréstimos e auxílios. Os aparelhos de hegemonia (Banco Mundial e FMI) tiveram papel de destaque na disseminação dessa norma mundial. Inicialmente, eles modificaram suas missões, que se baseavam na ordem econômica keynesiana de regras fixas (taxas de câmbio, políticas comerciais e divisão de renda). Para, posteriormente, subordinar as economias dos países subalternizados à execução das recomendações expressas no Consenso de

Washington, visando instituir um novo quadro político intergovernamental dos Estados-

nações, agora, sob a hegemonia do capital financeiro.

Esse quadro político exigiu dos Estados-nações a implementação de ajustes (privatizações, equilíbrio fiscal, cortes de verbas em áreas sociais etc.) com a finalidade de conquistar a confiança dos investidores internacionais. Assim, os Estados-nações se tornaram um dos elementos centrais para a promoção da concorrência neoliberal (sendo, às vezes, eles próprios alvos da concorrência) ao criarem condições favoráveis para o capitalismo financeiro.

No entanto, essa grande virada neoliberal levou quase uma década de luta ideológica, por meio do conjunto de dispositivos de controle da sociedade e de orientação de condutas, até a consagração da disciplina e da racionalidade neoliberal nos governos Thatcher e Reagan. Conforme explicitou Harvey:

[...] buscando uma estrutura mais adequada para atacar os problemas econômicos de sua época, descobriu politicamente o movimento (neoliberal) e voltou-se para seu corpo de pensadores em busca de inspiração e recomendações, depois de eleita em 1979. Em união com Reagan, ela transformou toda a orientação da atividade de Estado, que abandonou a busca do bem-estar social e passou a apoiar ativamente as condições “do lado da oferta” da acumulação de capital. O FMI e o Banco Mundial mudaram quase que da noite para o dia seus parâmetros de política, e, em poucos anos, a doutrina neoliberal fizera uma curta e vitoriosa marcha por sobre as instituições e passara a dominar a política, primeiramente no mundo anglo- saxão, porém, mais tarde, em boa parte da Europa e do mundo. (HARVEY, 2004, p. 130)

O neoliberalismo constituiu-se com um discurso mais congruente para essa etapa capitalista, como já dito, nos governos Thatcher e Reagan. Nesse sentido, para a manutenção das taxas de acumulação de capitais, os intelectuais orgânicos e defensores do neoliberalismo elegeram como inimigos o Estado de bem-estar e a classe trabalhadora. O Estado, responsabilizado pela crise do capital, e os trabalhadores, os supostos maiores favorecidos por esse modelo de regulação, principalmente aqueles organizados nos sindicatos.

O neoliberalismo caracterizou-se pelo ataque franco aos direitos conquistados pelos trabalhadores, mas não só, também pela disputa ideológica contra a solidariedade de classe e as suas organizações. Logo, seria necessário forjar uma nova racionalidade com base na concorrência e excluir qualquer forma de solidariedade. Foi dessa forma que o “capitalismo mundial rompeu o casulo do Estado do bem-estar e caminha para completar sua mais nova metamorfose” (RODRIGUES, 1998, p. 93).

Isto posto, ressaltamos que o modelo que melhor se adaptou a essas transformações foi o da acumulação flexível, conforme a caracterização de Harvey:

A acumulação flexível [...] é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (HARVEY, 2013, p. 140)

Essa flexibilidade, em tempos neoliberais, representa um novo modelo de organização do mundo do trabalho que intensifica a exploração da classe trabalhadora. Nos tempos de agudização das crises e de acirramento das lutas, a flexibilidade favorece a classe dominante e penaliza a classe trabalhadora, tornando-se sinônimo, para os subalternos, de limitação, riscos e incertezas, que se implementam por meio dos ajustes estruturais.

Esses ajustes se traduzem em cortes de verbas públicas para áreas sociais, desmonte do setor produtivo estatal, privatizações, desempregos, ataque aos direitos dos trabalhadores e aos direitos de suas organizações. Justamente, são essas medidas que visam recompor as taxas de acumulação de capitais, e nisso se caracteriza a flexibilidade tão almejada pela fração burguesa hegemônica, a financeira.

Esses são os parâmetros das políticas da racionalidade neoliberal que basearam a intervenção dos organismos internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para a

configuração do quadro político do Estado concorrencial. Os organismos submetem as economias dos países subalternizados às suas recomendações, como forma de encontrar supostas soluções aos problemas internos.

No entanto, as economias dos países subalternizados não suportaram a “terapia de choque”, fruto dos ajustes neoliberais. Essa terapia submetida aos “humores do mercado”, do regime de acumulação flexível e da volatilidade do capital financeiro, resultou no “crescimento com taxas de juro muito elevadas, [que] arruinaram a produção local expondo-a sem cautela à concorrência dos países mais desenvolvidos, muitas vezes agravaram a desigualdade e aumentaram a pobreza, reforçaram a instabilidade econômica e social” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 198).

A concorrência neoliberal é, comumente, apresentada às classes subalternas como uma necessidade de modernização do Estado e das relações sociais, que se vale de um discurso quase irrepreensível de “reforma” ou de “ajustes” para atender a um amplo setor das massas subalternas e atacar os direitos sociais, tidos como privilégios de poucos. Citamos como exemplos as contrarreformas trabalhista e previdenciária. Essa concorrência visa convencer as massas a se adaptarem ao protagonismo da globalização financeira.

Em síntese, os objetivos da empresa globalizada para eliminar a concorrência são: elevar a capacidade de resiliência das empresas; reduzir os encargos fiscais sobre os rendimentos do capital e as frações mais favorecidas; disciplinar a mão de obra, diminuir os custos do trabalho e melhorar a produtividade.

O protagonismo da globalização tem o Estado como empreendedor, um dos elementos-chave para a virada neoliberal. O Estado empreendedor refere-se à função de construtor e colaborador do capitalismo financeiro, na atração de investimentos estrangeiros diretos (IED) com a criação de condições (sociais e fiscais) favoráveis à acumulação do capital.

Contraditoriamente, esses mesmos Estados são cada vez mais reféns das leis férreas da dinâmica da globalização. Suas ações públicas são dirigidas por normas concorrenciais sujeitas às exigências de eficácia, semelhantes àquelas a que se submetem as empresas neoliberais.

O papel mais ativo do Estado na função de atender às novas exigências da mundialização do capital ficou mais nítido com a crise de 2007, quando o Estado neoliberal deu um salto de qualidade ao se tornar uma instituição financeira (idealizador, edificador e parceiro do capitalismo financeiro), em última instância. No

entendimento de Dardot e Laval (2016), essa afirmação ganha veracidade na overdose de capitais investidos pelos Estados em plena crise para salvar bancos e seguradoras.

Esse “salvamento conseguiu transformá-lo provisoriamente numa espécie de Estado corretor, que compra títulos na baixa para tentar revendê-los na alta” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 205).

Esse fato afasta qualquer possibilidade de um retorno a um Estado interventor social, somente confirma o papel do Estado de credor e minimizador de qualquer risco. Esse salvamento dá corpo ao princípio neoliberal da estatização dos riscos e da privatização dos lucros.

Por isso há necessidade da intensificação ideológica dos aparelhos de hegemonia contra o Estado social, para justificar o discurso contra o Estado promotor de políticas sociais. Porém, os argumentos são sempre renovados, como, por exemplo: “muito oneroso”, “desregula os frágeis mecanismos da economia”, “desestimula a produção”.

Essa intensificação ideológica culpabiliza constantemente os serviços públicos de serem ineficientes e ineficazes. No imaginário neoliberal criado pelos aparelhos de hegemonia, os servidores públicos são responsabilizados pela incompetência, pela injustiça, pela espoliação e pelo imobilismo do Estado. Essa responsabilização do funcionalismo público se manifesta na crítica à ausência da concorrência e ao excesso de estabilidade no emprego, que destrói a competitividade “inerente” aos sujeitos.

Dardot e Laval (2016) realizam uma síntese do pensamento dos intelectuais orgânicos do capital sobre o discurso do papel do Estado na intervenção social:

O “Estado de bem-estar” tem o efeito perverso de incitar os agentes econômicos a preferir o ócio ao trabalho. Essa argumentação, repetida até fartar, associa a segurança dada aos indivíduos à perda do senso de responsabilidade, ao abandono dos deveres familiares, à perda do gosto pelo esforço e do amor ao trabalho. Em uma proteção social destrói valores sem os quais o capitalismo não poderia funcionar. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 211)

Esse discurso neoliberal intensificado no imaginário popular criou a necessidade de um novo sistema de disciplinas, instaurado por meio de diversos dispositivos para moldar a conduta dos sujeitos, com o intuito de efetivar a boa governança através das ações de indivíduos supostamente livres em suas escolhas. Quando, na verdade, a liberdade de escolha representa a obrigação de obediência a uma conduta maximizadora (legal, institucional, regulamentar, arquitetural e relacional) que o indivíduo deve seguir conforme “seus interesses”.

Nessa perspectiva, a estratégia neoliberal foi a de ampliar os dispositivos de conformação dos sujeitos à lógica do mercado, contrapondo-se ao Estado de bem-estar. Aceitando com naturalidade os mais variados ataques aos direitos sociais, em nome da “liberdade de escolha”, quais sejam: privatização, terceirizações, abertura de concorrência de serviços públicos, isenções fiscais ou guerra fiscal, mercantilização da saúde e da educação etc.

Dardot e Laval esclarecem que a liberdade de escolha se torna “obrigação de escolha”. Tem o intuito de facilitar passivamente a aceitação da lógica do mercado pelo indivíduo como a única “regra do jogo”, caso deseje “valorizar seu capital pessoal num universo em que a acumulação parece ser a lei geral da vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 217).

A regra do jogo neoliberal é de que o êxito e o fracasso dos indivíduos são tratados sempre como responsabilidades individuais, isto é, da culpa individual. Assim,