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A alfabetização no período colonial: os colégios jesuítas

A história da educação no Brasil se deu marcada por rupturas. A primeira que pode ser listada é a chegada dos portugueses em terras brasileiras, trazendo o padrão europeu de educação e ignorando aquilo que o povo indígena, que habitava o Brasil, já possuía e seu próprio modo de fazer educação (ROMANELLI, 2003).

A educação das crianças indígenas, antes da chegada dos colonizadores, obedecia às crenças da comunidade e os alunos aprendiam as habilidades necessárias e desenvolvidas pelos

8 Cf. Jesus (1989, p. 31): [...] etimologicamente, hegemonia deriva do grego eghestai, que significa ‘conduzir’,

‘ser guia’, ‘ser chefe’ e do verbo eghemoneuo que quer dizer "conduzir" e, por derivação "ser chefe", "comandar",

"dominar". Eghemonia, no grego antigo, era a designação para o comando supremo das Forças Armadas. Trata- se, portanto, de uma terminologia com conotação militar. O eghemon era o condottiere, o guia e também o comandante do exército.

adultos de cada tribo. Conforme Saviani (1996), o modo de produção indígena era o comunismo primitivo9, ou seja, não havia classes e muito menos o conceito de propriedade privada, os homens se relacionavam entre si, tendo a natureza como fonte de sobrevivência e modo de produção.

A vinda dos jesuítas, em 1549, para as terras brasileiras, marca a primeira fase da história da educação brasileira. Essa primeira fase foi a mais longa e significativa do ponto de vista histórico, em decorrência da obra realizada e pelas consequências resultantes para a cultura brasileira. Ao analisar o Projeto Jesuítico para o Brasil Colônia, deve-se ter em mente que, apesar de ter atingido satisfatoriamente seus objetivos iniciais de catequização e estabelecimento da cultura europeia, ocorreu de modo gradual, com efetivo empenho dos membros da Companhia de Jesus.

Partindo do pressuposto de que o fenômeno educacional não é um fenômeno independente e autônomo da realidade social de determinado momento histórico. Deve-se analisar o projeto jesuítico levando-se em conta o desenvolvimento social e produtivo da época colonial. Assim, pode-se supor que o modelo educacional proposto pelos jesuítas, que pretendia formar um homem, baseado nos princípios escolásticos10, era coerente com as necessidades e aspirações de uma sociedade em formação na primeira fase do período colonial brasileiro.

Os jesuítas compuseram as primeiras legiões de missionários europeus a dedicarem- se à catequese daqueles que não conheciam o Cristo nas novas terras. A educação oferecida no período colonial não tinha o interesse específico de catequizar os índios, ensinando-lhes os princípios básicos da religião católica, combatendo elementos como: poligamia e/ou antropofagismo. A antropofagia, prática cultural de algumas tribos indígenas, constituía-se em um momento solene para as tribos; já para os conquistadores, o canibalismo era tido como abominável, localizando seus praticantes na selvageria e na animalidade.

Da mesma forma, julgavam que a manducação da carne dos guerreiros inimigos lhes haveria de proporcionar as virtudes de força e coragem de que estes estavam revestidos. Desta forma, estabelecia-se entre as forças da natureza uma circularidade, mediante o trânsito de um corpo para outro (AZZI, 2001, p. 6).

9 Segundo Marx e Engels (2005), o comunismo primitivo teria surgido nas sociedades pré-históricas, antes da formação do Estado, propriedade privada e das classes sociais. A sociedade era comunal e descentralizada mesmo que havia hierarquia. No entanto cada qual participava provendo as necessidades da tribo e gozava daquilo que era posto em comum.

10 Cf. Aranha (2006): [...] a escolástica foi um período de máxima expressão da filosofia cristã no período medieval entre os sécs. IX ao XIV. Foi um momento em que os teólogos procuravam se apoiar na razão para justificar, com maestria, suas crenças e garantir, com lógica, a conversão dos não-crentes. Parte-se do pressuposto que o ser humano é criatura divina em passagem na Terra e que precisa cuidar da salvação da alma para garantir a vida eterna, portanto não pode se confundir diante das contradições entre a fé e a razão e, por prudência, deve-se pautar pelos sábios e intérpretes autorizados pela Igreja.

Outros atos praticados pelos indígenas e repudiados pelos jesuítas eram o incesto, a bigamia e a nudez, práticas estas que ajuizavam a forma de ser daquela civilização, confirmando, para os jesuítas, o caráter selvagem e animalesco e a desordem, critérios estes que dificultariam a conversão dos não cristãos. Referindo-se à prática indígena do incesto e da poligamia, vista como pecado menor; a prática da antropofagia e da nudez, Neves (1978) assevera:

estes três comportamentos são vistos como demonstrativos da barbárie em que viveria o gentio, como demonstrativos da boçalidade em que viveriam, como índices significativos da sua animalidade. Portanto, os três bem demonstram a indigência da

cultura índia. Ou seja, esta cultura desconhece regras e interdições fundamentais para o funcionamento de uma vida social; ainda aqui parecem muito mais próximos da vida animal (p. 56).

Pode-se afirmar que, nos trinta primeiros anos da colonização do Brasil, Portugal dedicou-se exclusivamente à exploração das riquezas sem efetivo projeto de povoamento. Os índios que ocupavam o território brasileiro, nas palavras de Pero Magalhães Gandavo que representa o ideário europeu, não tinham as letras ‘F, nem L, nem R’, que representam ‘Fé, nem Lei, nem Rei’ e viviam ‘desordenadamente’. Essa suposição de uma ausência linguística e de

‘ordem’ revela, um tanto avant la lettre, o ideal de colonização trazido pelas autoridades portuguesas: superar a ‘desordem’, fazendo obedecer a um Rei, difundindo uma Fé e fixando uma Lei (VILLALTA, 2002, p. 332). “Língua, instrução e livros, nesse quadro, em termos das expectativas metropolitanas, deveriam desenvolver-se sob a égide de um Rei, uma Fé e uma Lei” (VILLALTA, 2002, p. 332).

Do mesmo modo que o colonizador chegou ao Brasil com a ideia de que o habitante local teria a necessidade de se adequar na moralidade, nas crenças e hábitos, os pressupostos do PNAIC também precisam ser assumidos pelas crianças e professores como algo já do cotidiano escolar. Esse trabalho pretende evidenciar e inquirir também sobre a ideologia expressa no documento.

Os jesuítas, ao ensinar aos índios a ler e a escrever em língua portuguesa, retiravam- lhes a cultura, a ideologia, a marca de vida e tudo substituíam por padrões morais estabelecidos fora da comunidade indígena, com interesses de imposição e manutenção da ordem e da moral, pactuando com a educação para a dominação.

O Projeto Educacional Jesuítico não era apenas um projeto de catequização, mas também um projeto de transformação social, haja vista sua função de propor e realizar

mudanças radicais na cultura indígena brasileira. Teixeira e Soares (apud NETO; MACIEL, 2008, p. 6) declaram que a Companhia de Jesus surgiu como “uma explosão de pensamento religioso transvertido ao campo das atividades práticas. Refazer o homem, infundir-lhe espírito novo, arquetipá-lo em finalidades sociais e religiosas, foi a ação da Ordem”.

O trabalho de catequização e conversão dos não cristãos ao cristianismo, motivo formal da vinda dos jesuítas para a colônia brasileira, dispunha-se a transformar o indígena em homem civilizado, segundo os padrões culturais e sociais dos países europeus do século XVI, e a imediata formação de uma nova sociedade. A preocupação em transformar o gentio em homem civilizado explica-se pela necessidade de incorporar o índio ao mundo burguês, à nova relação social e ao novo modo de produção.

A exemplo de outros conquistadores e colonizadores europeus, os padres jesuítas, em um primeiro momento, tinham uma imagem do índio que o caracterizou como o “bom selvagem”, bem como o seu modo de viver e seus costumes eram motivo de admiração, sendo considerados exóticos.

Entretanto, num segundo momento, os padres jesuítas passaram a encará-los de outra maneira, como empecilho para a efetivação de seus objetivos, já que não se adaptaram às exigências do trabalho árduo, rotineiro e contínuo, destinado à acumulação e não mais apenas à sobrevivência. Tornando-se insubordinados, abandonavam as missões e retornavam para suas aldeias.

Os catequizadores jesuítas iniciaram o processo de alfabetização, visando, a partir da catequização, estimular as crianças nativas (curumins) a aprender a língua portuguesa (o alfabeto, o latim, a gramática e a literatura). Esse processo se estendia aos filhos dos brancos gerados com as índias e aos brancos, com a finalidade de torná-los suscetíveis a exploração.

Para Azevedo (2004), o mais certo é que o ideal da alfabetização fosse converter à fé católica os povos das regiões colonizadas, tornando-os civilizados, por meio do uso da ideologia dominante, com vistas à exploração das terras conquistadas.

Nesta direção, há que se rejeitar o fato de que o conjunto de desigualdades históricas, na condição de determinantes econômicos, sociais, políticos, culturais, de gênero, raça e outros, atuem como condicionantes das desigualdades educacionais, em seus supostos determinantes intraescola. O praticismo político por resultados trata a escola como uma ilha, com pouco interesse para as transformações necessárias das fontes produtoras das desigualdades, como os

“padrões de poder, trabalho, acumulação, concentração-exclusão da terra e da renda”.

O conjunto de motivos elencados por Arroyo (2010) não é categórico, porém expressa razões mais que suficientes para um enfrentamento, com possibilidades de se corrigir a

abordagem distorcida que tem da escola brasileira. Ainda, conforme Arroyo, pode-se asseverar que:

reduzidas as desigualdades a uma marginalidade moral, pré-civilizatória, pré- moderna, pré-racional, as soluções são postas em projetos probatórios de ultrapassagem dessa margem com êxito e esforço. É significativo que a pluralidade de projetos socioeducativos e as políticas educativo-civilizatórias-moralizadoras estejam carregadas de exigências de provar, comprovar, avaliar e atestar passagens exitosas, mais nas condutas, valores, esforços, pontualidades do que no domínio de competências e habilidades cognitivas (2010, p. 1390).

Também se pode depreender, das palavras do autor referenciado, que o objetivo maior da educação neste período não era o mesmo da escola atual, pois os jesuítas tinham como foco o processo de “ganhar almas para a igreja” e utilizava da educação apenas como um meio para chegar aos seus objetivos, ou seja, não se podia ler a bíblia sem saber decodificar a língua escrita, e para ser um sujeito nos “moldes” da igreja em comportamento e obediência teria que saber ler e escrever. Agora a capacidade de interpretar e produzir um texto crítico não cabia àqueles sujeitos e sim aos jesuítas.

Dando sequência à trajetória histórica, pode-se notar que a Companhia de Jesus publicou um programa de estudo e lições (1599), o Ratio Studiorum11. Esse programa serviu de norma aos colégios até seu declínio, em 1773. Conforme Julia (2001), esse plano foi pensado a partir do currículo de aulas, partindo do curso de teologia até chegar a mais simples aula de gramática. O programa visava a formação do homem cristão, de acordo com a fé e a cultura cristã.

Segundo Ribeiro (2003, p. 21-22), no Brasil, o Ratio Studiorum foi elaborado de forma

“diversificada, com o objetivo de atender à diversidade de interesses e de capacidades.

Começando pelo aprendizado do português, incluía o ensino da doutrina cristã, a escola de ler e escrever”.

O método de estudos contido no Ratio Studiorum compreendia o trinômio estudar, repetir e disputar, prescrito nas regras do Reitor do Colégio, e como exercícios escolares havia

11 Cf. Aranha (2006): [...] o Ratio Studiorum foi um documento que compreendia os elementos principais da pedagogia jesuíta. O princípio educativo presente no Ratio Studiorum compreendia dois cursos: Studia inferiora que eram as letras humanas de grau médio que perdurava três anos para se estudar gramática, humanidades e retórica com bases na literatura clássica greco-latina e filosofia e ciências com duração também de três anos com disciplinas de lógica, introdução às ciências, cosmologia, psicologia, física aristotélica, metafísica e filosofia moral. O segundo curso é Studia superiora com teologia e ciências sagradas com duração de quatro anos e completava a formação do padre. O latim devia ser ensinado até o perfeito domínio da língua, pois os intelectuais comumente escreviam em latim e era a língua universal do momento. O legado jesuítico foi forjado no empenho de institucionalizar o colégio como locus de formação religiosa, intelectual e moral de crianças e jovens independentemente se o objetivos eram diversos da vocação sacerdotal.

a preleção, lição de cor, composição e desafio, tais práticas pedagógicas que remetem diretamente à escolástica medieval, conformando-se como Pedagogia Tradicional, que na sua vertente religiosa, tornava a educação como sinônimo de catequese e evangelização.

A educação pretendida pelo Ratio Studiorum tinha como meta a formação do homem perfeito, do bom cristão e era centrada em um currículo de educação literária e humanista voltada para a elite colonial.

A concepção pedagógica tradicional se caracteriza por uma visão essencialista de homem, isto é, o homem é concebido como constituído por uma essência humana e imutável. À educação cumpre moldar a existência particular e real de cada educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano. Para a vertente religiosa, tendo sido o homem feito por Deus à sua imagem e semelhança, a essência humana é considerada, pois, criação divina. Em consequência, o homem deve se empenhar para fazer por merecer a dádiva sobrenatural. A expressão mais acabada dessa vertente é dada pela corrente do tomismo, que consiste numa articulação entre a filosofia de Aristóteles e a tradição cristã; tal trabalho de sistematização foi levado a cabo pelo filósofo e teólogo medieval Tomás de Aquino [...] E é justamente tomismo que está na base do Ratio Sudiorum (SAVIANI, 2004, p. 127).

Mas o que representava a alfabetização para os jesuítas a “ponto de quererem, desde o início, alfabetizar os índios, quando nem em Portugal o povo era alfabetizado?” (PAIVA, 2001, p. 43). O que se verifica ao longo dos estudos de Azevedo (2004) é que a transformação do indígena em homem civilizado pretendia incorporá-lo ao novo modo de produção, ou seja, ao mundo do trabalho.

A cultura indígena, cuja produção era apenas a caça, a pesca e o artesanato, deveria sofrer uma transformação para adaptar-se à nova sociedade. O indígena deveria ser alfabetizado-domesticado para se adequar aos moldes de trabalho do homem branco.

Até aqui ficou evidente que o projeto de instrução e alfabetização jesuítico tinha finalidades específicas de acordo com o propósito da criação da Companhia de Jesus de cristianizar o mundo conhecido. Doravante apresenta-se o novo rumo do projeto educacional brasileiro com enfoque laicizante da tomada de um ensino público.