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Beguinas: mulheres leigas a serviço do povo de Deus

CAPÍTULO 1: O CAMINHAR DO POVO DE DEUS ENTRE LUZES E SOMBRAS

1.1 O Reino de Deus e os pobres como centro da práxis de Jesus

1.1.2 Beguinas: mulheres leigas a serviço do povo de Deus

Participar da vida eclesial e sonhar com uma Igreja segundo o Evangelho de Cristo tem sido um ideal alimentado pelos cristãos leigos católicos no decorrer da história. O povo de Deus foi excluído e silenciado durante séculos. Qualquer manifestação deste desejo ou questionamento das estruturas de poder era tratada como desobediência e heresia. Contudo, em momentos e lugares diferentes, houve reações variadas e inspirações de movimentos, de pessoas cristãs, que movidas pelo Espírito, recolocaram a vivência dos valores do Evangelho como prioridade para vida eclesial. Questionaram, com o testemunho de suas vidas, a estrutura clerical dominadora e excludente dos pobres, dos fiéis que queriam vivenciar o tríplice múnus de Cristo recebido no Batismo.

Entre os séculos XII e XIII, várias cidades do Ocidente emanciparam-se de seus senhores civis e eclesiásticos, conquistaram liberdades e direitos, inclusive autonomia financeira. Nestas cidades emancipadas promoviam-se inúmeros serviços públicos e sociais, o que levou algumas delas a receberem o título de Comunas. Estes serviços eram prestados por cristãos leigos e, em alguns momentos, realizados em conflito com o bispo local.

Emergiram movimentos leigos que vivenciavam uma profunda espiritualidade na base da Cristandade. Cuidavam da formação da fé popular e serviam aos pobres, desenvolviam

uma mística própria, não entravam para a vida monacal e questionavam a estrutura eclesial quanto à fidelidade ao Evangelho. Grande parte destas pessoas eram mulheres excluídas do sistema patriarcal.31 Era permanente e latente, na base da Igreja e da sociedade, entre os cristãos leigos, o anseio de participação nos serviços e decisões. Comblin apresenta preciosas informações sobre a espiritualidade leiga surgida na Europa nos séculos XII e XIII32, com protagonismo de mulheres que cuidavam da porção do povo de Deus e serviço aos pobres.

Poderíamos pensar que o apostolado das beguinas, nas cidades medievais do Ocidente, foi verdadeira presença do Espírito Santo, alimentando a fé e esperança do povo humilde, dos pobres, dos preferidos de Deus? Acreditamos que sim! A vida de oração daquelas mulheres leigas, seu desprendimento, o cuidado com os pobres, doentes e anciãos, e os exercícios de piedade em conjunto, mesmo sem fazerem voto algum, são sinais de que o Crucificado- Ressuscitado não abandona o povo eleito por Deus (Mt 28, 20). Talvez o que incomodasse o alto clero fosse a liberdade daquelas leigas em atuarem de maneira autônoma com relação ao poder constituído. Para Comblin, essa independência “tornou-as suspeitas”33.

Favorecer o conhecimento das verdades da fé a partir da realidade popular, era o serviço da beguinas. Contribuíam para a formação do povo de Deus, em especial dos pobres, que não tinham acesso ao latim e grego. A hierarquia da Igreja considerava inadmissível uma vivência autônoma da fé, numa espiritualidade e teologia própria dos leigos, ainda mais de mulheres, já que estas atividades eram restritas aos homens, diga-se, clero. Simplesmente, criou-se na Igreja o temor do livre pensar.

Para o clero medieval permitir que os leigos fizessem teologia incorria-se no perigo das heresias, o que poderia quebrar a harmonia da Cristandade. Fazia-se necessário o controle

31 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 123-124.

32 Ibidem, p. 126. Nasceu uma espiritualidade leiga cujas protagonistas foram essencialmente as mulheres. Elas estiveram também excluídas da filosofia e da teologia, já que essas ciências eram reservadas aos homens, os clérigos. No entanto, desde aquele tempo as filhas da aristocracia recebiam uma formação semelhante à dos seus irmãos, e mesmo nas cidades mulheres aprendiam a ler e escrever em grande número. As mulheres estavam afastadas do clericato, porém deram a formação espiritual ao povo das cidades. Os leigos eram formados por mulheres e os clérigos formavam um mundo separado – o mundo dos poderes. Deram a essas mulheres o nome de “beguinas”, sem que se saiba exatamente a origem desse nome. Essas iniciativas desenvolveram-se, sobretudo no norte da Europa, Países Baixos e Renânia. Multiplicaram-se nos séculos XII e XIII. Depois foram vítimas de muitas reservas – até mesmo condenações de parte de papas ou bispos.

33 Ibidem, p. 127-128. “O mais notável foi a intensa vida espiritual e mística que essas mulheres viveram e a literatura espiritual que produziram [...] Ensinaram pelos seus escritos uma vida espiritual de contato direto com Deus. A sua mística inspira-se na poesia amorosa, assim como os antigos se inspiraram no Cântico dos Cânticos. A relação com Deus é puro amor cantado à maneira do amor humano [...] A piedade que elas praticam e ensinam pouco tem que ver com os ensinamentos da hierarquia. Praticam tudo o que ensinam os padres, mas a sua espiritualidade é própria. Não mencionam todo o sistema de crenças, dogmas, preceitos e rituais católicos. Por isso elas foram suspeitas de heresia. Margarida Porete foi condenada e queimada viva em Paris em 1302”.

destas expressões livres dos fiéis leigos. Criou-se um espírito de uniformidade que levou a hierarquia sempre a olhar e tratar as expressões populares da fé com desconfiança e preconceitos.

Mesmo sofrendo sanções por parte da hierarquia, as beguinas tinham a simpatia e apoio do povo, pela sua espiritualidade encarnada nas cidades.34 Elas difundem na Cristandade, juntamente com os mendicantes, sobretudo franciscanos, as devoções que os pobres se identificam, de um Jesus mais humanizado, pertinho dos pobres, que serão as bases do catolicismo popular até hoje.

Desenvolveram, por exemplo, a devoção ao presépio, difundida por Francisco de Assis, que permitiu o povo de Deus aproximar-se do Mistério da Encarnação.35 Foi ideia de Juliana de Cornillon as procissões na festa de Corpus Christi, que colocam a Eucaristia na rua mais próxima do povo simples, já que o latim das missas a tornava fora da compreensão das pessoas mais simples.36

As beguinas traduziram a doutrina oficial da Igreja em linguagem popular37. Sua inserção no meio do povo das cidades, numa vida austera e a independência em relação ao clero, geraram medo e insatisfação na hierarquia aliada dos reis, abastada e distante dos pobres. Comblin relata que:

Em 1310, um decreto de Clemente V, declara as beguinas como hereges. O Concílio de Viena, em 1312, renova as mesmas condenações [...] Um cronista da época escreveu: ‘Naqueles dias Deus manifestou sua potência por intermédio do sexo fraco, nessas servidoras que encheu do espírito profético’. Elas queriam uma renovação da Igreja e, sobretudo, uma renovação do clero deformado pelo sistema feudal. Os seus temas preferidos eram ‘novidade’, ‘liberdade’ e ‘pobres’. Não rejeitaram a instituição eclesiástica que queriam reformar. Mas a sua religião é a busca de Deus. A sua moral pode ser resumida pela célebre frase de S. Agostinho:

Ama et fac quod vis (Ama e faça o que quiser).38

Alinhar-se com os poderes feudais e tornar-se um deles, na riqueza e na força, fez o clero negar a igual dignidade do povo de Deus e a enxergar os pobres apenas como objeto de suas esmolas. Os pobres não foram tratados como povo de Deus, nem seus gritos por justiça, em meio às opressões, foram ouvidos. Foi assim que o sistema religioso judaico agiu quando deixou de lado a verdadeira tradição Mosaica e dos profetas, de um Deus libertador, presente na história, celebrando um culto desencarnado da realidade, o que lhes impediu de reconhecer

34 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 126.

35 Ibidem, p. 128.

36 COMBLIN, José. A profecia na Igreja. São Paulo: Paulus, 2008. p. 146.

37 Ibidem, p. 147.

38 Ibidem, p. 148-149.

em Jesus o Messias vindo de Deus.

Foi ao sistema religioso judaico que Jesus se opôs, especialmente à falta de compaixão dos chefes religiosos para com os sofrimentos dos pobres. Ele denunciou um sistema no qual os pastores usufruíam das ovelhas e as ovelhas serviam aos pastores. É este tipo de cristianismo da hierarquia, longe da práxis de Jesus, que muita gente vai questionar no decorrer da história. Não se trata de rejeição a Deus ou à religião, mas o tipo de religião que acoberta e apoia os privilégios e dominações.

Numa época que tinha como máxima “não há nada de novo de baixo do sol”, as beguinas trazem a novidade da vivência cristã a partir dos pequeninos, dos pobres, que não contavam na sociedade feudal. A austeridade de vida das beguinas e as suas atitudes humildes e caridosas conquistaram o povo de Deus. Elas não se contrapunham ao Cristianismo, mas à forma como ele estava sendo conduzido pela hierarquia católica.

Despojadas diante da riqueza e dos poderes, o testemunho das beguinas já representava uma denúncia profética do modo de viver do clero. É o Espírito da profecia que se manifesta no anúncio, renúncia e denúncia daquilo que não condiz com o projeto de Deus.

O Espírito continua a suscitar novidades e ressuscita a esperança dos pobres na história, como o fez há dois mil anos na palestina do século I.

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