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Reformas no século XVI: emergência dos preferidos de Deus?

CAPÍTULO 1: O CAMINHAR DO POVO DE DEUS ENTRE LUZES E SOMBRAS

1.2 O espírito evangélico dos mendicantes ressuscita o povo de Deus!

1.2.1 Reformas no século XVI: emergência dos preferidos de Deus?

A forma imperial que a Igreja assumiu nos decorrer dos séculos, cassou a liberdade dos fiéis de se organizar e alijou a igual dignidade dos cristãos pelo batismo na corresponsabilidade da missão evangelizadora. Comblin compreende que “a razão

56 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 68-70.

57 Ibidem, p. 70.

58 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 135.

fundamental da revolta protestante está na liberdade cristã”59. A perspectiva bíblica do povo eleito, querido por Deus, chamado e enviado por Ele, a ser nação santa, povo sacerdotal e dar o testemunho do amor do Senhor entre as nações da terra, assumida pelo Novo Israel, a Igreja de Cristo, foi retomada e reafirmada pela reforma protestante.60

O que fez estourar a reforma protestante foi o valor da construção da Basílica de São Pedro e a forma de angariar os recursos para realizar a obra, através da venda de indulgências.

Este será um dos pontos básicos que os reformadores irão combater: a simonia. A reforma apresentar-se-á como um retorno às origens do Cristianismo e, neste sentido, irá congregar um grande número de insatisfeitos com a estrutura clerical católica e a sua indiferença aos anseios do povo. Diz-nos Comblin:

No século XVI o protestantismo apresentou-se como a ‘outra’ Igreja, fundada por Jesus e era fiel à Bíblia. Pela primeira vez a ‘outra’ Igreja adquiriu existência histórica. A Igreja Católica não conseguiu, não quis, não pôde entender os sinais dos tempos – não reconheceu a voz do povo de Deus. Abafou essa voz como se fosse heresia, apostasia, negação do cristianismo.61

[...] Em lugar de realizar sua própria conversão, a Igreja condenou os reformadores como rebeldes, orgulhosos e temerários. Os movimentos de reforma foram atribuídos ao diabo. Numa palavra, fez o que os escribas, os sacerdotes e fariseus fizeram com Jesus.62

Lembramos que Jesus se opôs ao sistema do Templo, que usava o nome de Deus para excluir as pessoas, impedindo o povo de Deus viver a sua vocação com dignidade. O que enchia Jesus de uma ira santa, o que talvez possamos chamar de indignação ética, era a dureza do coração das lideranças religiosas que colocavam as leis e preceitos religiosos acima da dignidade humana dos filhos e filhas de Deus.

Comblin avaliaque os cristãosleigos e reformadores nãose opunham àreligião ou a Cristo,mas ao sistema hierárquicoimperial, verticalista,autoritário e excludente. O povo de Deusnãocontava,nãoparticipavadasdecisões,eporissoquestionavaerejeitavaomonopólio deumpodercujavocaçãoreconhecidaeproclamada,masnãopostaempráticae,dolorosamente atéimpedida, era a de serserviço comunitário. É doloroso perceberque era o povocheio de valorescristãos,comodesejodeseguirJesuseservi-loatravésdesuaIgreja,queestavasendo

59 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 135.

60 Ibidem, p. 136.

61 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 61.

62 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 135.

impedidoporaquelesquedeveriampromoverotríplicemúnusdopovodeDeus.63

Era a “outra Igreja”: o povo que trabalhava, pagava impostos e mantinha a estrutura social e eclesial com o seu suor, mas que não contava na hora das decisões, impedido de aproximar-se do altar, das “coisas sagradas” e até mesmo da Palavra de Deus. Estes fiéis despertaram a consciência de povo e de cristãos, de maneira processual até formularem uma concepção de povo de Deus. É a “Igreja de baixo” desejosa de seguir fielmente a Jesus Cristo, que busca sua força na força da Palavra, na comunhão com todos e na preferência pelos preferidos do Deus da Bíblia. Voltar à Bíblia, ao Deus da Bíblia, é a marca dos queriam uma reforma na Igreja.

Por expressarem o desejo de terem voz e vez, muitos cristãos do Ocidente foram considerados hereges, inimigos de Cristo e da Igreja, cismáticos e verdadeiros enviados de satanás. O seu pecado consistiu em rejeitar a Igreja piramidal, verticalista, autoritária e excludente. Os que não foram expulsos ou silenciados ficaram em situação desconfortável diante do sistema eclesial.64

A hierarquia, imperial, fechada aos questionamentos e anseios do povo cristão, não se apercebia de onde estava o perigo. O que de fato ameaçava a obra de Deus eram as alianças feitas com os impérios e reinos, a transposição das formas destes governos para a estrutura eclesial, o apego aos bens, cargos e privilégios. Não ouviu a voz do povo, não ouviu o que o Espírito falava, fechou-se ao diálogo.

A Igreja perdeu a hora da conversão e, ainda hoje, padece as consequências.

Compreender-secomosociedadeperfeitafezaIgrejaidentificar-seaopróprioReinode Deus e consequentementesentiu-seinquestionável,imutávelecristalizadaemseupoderioeprivilégios.

Para Comblin, todo o fechamento da Igreja resultou na grave explosão da Reforma, que foi um desastre imenso. A cristandade ficou dividida entre dois polos: um invocando o poder da hierarquia, e o outro invocando o povo cristão e o poder da Bíblia. A Igreja católica faz a sua reforma com o Concílio de Trento. Em vez de enfrentar os problemas surgidos no povo de Deus, consolidou o passado e as suas estruturas e fechou todas as portas para o povo cristão. Todo o cristianismo pós-Trento vai girar ao redor da obediência. Ser cristão e santo era ser obediente e submisso à vontade da hierarquia.65

Contentar-se com a condição de ovelhinhas obedientes e subservientes aos seus senhores, foi o que a Igreja dispôs aos seus fiéis, que não suportavam mais essa situação e

63 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 61-63.

64 Ibidem, p. 63.

65 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 71-72.

exigiram as reformas. Grande número de leigos cresceu e amadureceu na consciência de pertença ao Corpo de Cristo pelo batismo e reivindicou sua participação ativa no corpo eclesial. Com a rejeição e fechamento da hierarquia católica às demandas populares, a Reforma ganhou um caráter maior de protesto.

Era abismal, nos séculos V ao XV, o distanciamento e a descontinuidade das ações da Igreja católica em relação à práxis de Jesus e das primeiras comunidades cristãs. Os reformadores propuseram retomar a concepção bíblica de povo de Deus. Retornaram ao tema da aliança feita por Deus com os escravos, com os pobres e sua proposta de constituir um povo livre, uma nação santa e sacerdotal que levasse seu nome entre os povos. Criticaram a hierarquia da Igreja, que restringiu a teologia da eleição a um pequeno grupo de consagrados do clero. Foi recolocado o tema do sacerdócio comum dos fiéis pelo sacramento do batismo e os ministérios serem assumidos de fato como serviço gratuito e comunitário.

Os discursos anticlericais dos reformadores, a crítica à simonia e riquezas da Igreja e a proposta de valorização do povo de Deus na fidelidade à Bíblia, fizeram eco aos anseios por liberdade que há séculos germinavam. Porém, o protesto dos reformadores contra o autoritarismo e enriquecimento da hierarquia católica romana, fruto das alianças estabelecidas pela Igreja com a nobreza feudal, impérios e reis, vai esbarrar na questão da coerência das lideranças protestantes.

Os reformadores para escaparem das perseguições se aliam aos burgueses em ascensão e aos reis que queriam livrar-se da influência da Igreja católica e do resquício de domínio da nobreza feudal. Como ser fiéis aos ideais da Reforma e ao povo cristão aliando-se aos novos dominadores e exploradores dos pobres de Deus? Como ficou o povo de Deus nessa história?

Constatamos que, em todas as lutas populares por democracia e libertação no Ocidente, era imensa a participação dos cristãos e que não obtiveram apoio da Igreja católica, por a mesma estar aliada aos dominadores. Mas, e as Igrejas da Reforma como se posicionaram diante dos pobres e suas demandas? Os movimentos de libertação dos cristãos empobrecidos na Europa também não contaram com o apoio das Igrejas históricas da Reforma.

Comblin fala que emergiram duas tendências antagônicas dentro movimento protestante: os que evitaram ruptura com as tendências políticas e sociais; eram os luteranos, anglicanos e calvinistas que preferiram manter a aliança com os reis e príncipes.

A outra tendência era composta dos protestantes mais radicais: os anabatistas de Münster na Alemanha, os puritanos ingleses e os reformadores da Holanda. Estes optaram por manter a herança da liberdade do povo cristão na Idade Média, mesmo que marginalizados

socialmente, lutar pela libertação plena de seus povos66. Diz-nos Comblin:

A Reforma despertou no povo grande esperança de libertação. Lutero preferiu o apoio e a segurança oferecidos pelos príncipes. Calvino e Zwinglio buscaram apoio na nova burguesia que surgia. Para o povo sobrou a amargura das derrotas e das desilusões. O que se salvou no desastre da reforma popular foram os movimentos anabatistas que encontraram refúgio na Holanda, e, depois, na Inglaterra [...]. O que nos interessa é a maneira como o povo de Deus entra na história. Entra realmente por um caminho derivado. Rejeitado pela Igreja católica e pelas próprias Igrejas da Reforma, o povo de Deus manifesta-se numa seita paralela. Ora, este caminho influiu muito na orientação ulterior da vida do Ocidente. Rejeitado pelas grandes Igrejas o povo de Deus mais tarde secularizar-se-á e entrará em conflito com as Igrejas dominantes.67

A Igreja católica ameaçada pela Reforma protestante e respaldada nas decisões de Trento, gasta suas energias no combate ao protestantismo, fecha-se cada vez mais às críticas anticlericais iluministas. Em vez de abrir-se às aspirações populares de participação, a Igreja simplesmente convoca os seus fiéis ao enfrentamento com os protestantes.

Perdeu-se na Igreja a compreensão do movimento da história naquele momento.

Durante séculos o sistema hierarcológico católico contou com o apoio das grandes massas rurais, por sua vez, analfabetas, não conheciam a estrutura eclesial, que se expressava em latim, e da mesma forma ignorava também a Bíblia.68

Até o século XVII, a burguesia europeia não tinha poder político, era produtora de riqueza e acumuladora de capital, ainda tratada com desdém pela nobreza aristocrática e clero, ainda próxima dos pobres na escala política. Os movimentos humanistas, renascentistas, o racionalismo e empirismo modernos, vão culminar no século XVIII com o iluminismo e possibilitarão a milhares de pessoas o acesso ao conhecimento através da leitura.

A ciência moderna e a técnica avançavam junto com as ideias políticas liberais. A burguesia iluminista, já detentora de maior poder econômico e cultural, apropria-se dos ideais cristãos da liberdade, igualdade e fraternidade e, em nome destas bandeiras, utiliza a classe trabalhadora do campo e cidade, os pobres, para conquistar sua hegemonia política para depois descartá-los e mantê-los nos “porões da humanidade”69.

66 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 73-75.

67 Ibidem, p. 74.

68 Ibidem, p. 59.

69 A expressão “porões da humanidade” foi utilizada pelo Frei Carlos Mesters, biblista, cofundador do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), em seu livro Seis dias nos porões da humanidade. É uma metáfora sobre o povo empobrecido que é jogado nos porões da história e, somente de quatro em quatro anos, período das eleições é procurado pelos políticos para serem usados e depois jogados novamente nas sombras dos porões.

Mais uma vez o povo é deixado de lado.70 As ideias sociais e políticas até o século XVIII terão caráter anticlerical, contrárias ao sistema hierarcológico católico, mas, ainda não são antirreligiosas ou ateias. O anticlericalismo iluminista ganha uma dimensão maior na Revolução Francesa, que humilha o poder papal e espalha-se por todo o Ocidente71. O povo dos pobres, jogado mais uma vez nos porões da história, ressuscitará no século XIX, em plena Revolução Industrial, nas lutas operárias por justiça e liberdade.

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