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O Bom Pastor faz Aliança com os pobres para o bem viver: “Nada faltará”

CAPÍTULO 2: AMÉRICA LATINA: POVO DE DEUS SE ENCARNA NA IGREJA

2.3 No semiárido nordestino Comblin descobre a Igreja dos pobres

2.3.3 O Bom Pastor faz Aliança com os pobres para o bem viver: “Nada faltará”

Padre Ibiapina concretizou, no semiárido, o jeito messiânico de ser humano, de sentir a dor do outro e se comprometer com ações concretas em favor da vida digna. É Deus quem chama, capacita e envia ao mundo, com o olhar compassivo, a palavra criadora e os gestos de solidariedade. A missão Ibiapina suscitou muitas vocações para o serviço ao povo, libertou pessoas do egoísmo, restaurou a dignidade dos pobres e sua pertença ao povo de Deus.

Revelou-se em suas ações o Espírito da liberdade que moveu Moisés, os profetas, Jesus e os apóstolos e continua presente na história:

Os pobres reapareceram oficialmente com João XXIII. Antes dele, tiveram vida clandestina na Igreja: a clandestinidade de Canudos, de Padre Cícero Romão Batista de Juazeiro do Norte, de Pe. Ibiapina. O evangelho foi anunciado, porém clandestinamente. Os que o anunciaram publicamente foram expulsos.277

classe dirigente. O interior é a insegurança, a indefinição social”280. Um relato das Crônicas revela-nos o fervor missionário do padre Ibiapina nos idos de 1864:

No fim do mesmo ano o nosso solícito Apóstolo saiu pressuroso, subindo montes e descendo vales, atravessando bosques escuros, na figura do Bom Pastor, para arrebanhar as ovelhas desgarradas. Ultrapassa a diocese de Pernambuco e entra na do Ceará, sua província. Quem poderá descrever com vivas cores os sentimentos de amor a Deus e ao próximo com que ele apareceu? [...] não leva em conta os aplausos e elogios que de todos recebe. O reino de Deus lhe basta.281

É-nos dado a conhecer a mística que moveu o grande missionário no cuidar das ovelhas abandonadas: “[...] quanto não fez o amor de Deus, vivo, sólido e constante em sua alma já enamorada das belezas, das bondades de seu Deus, e possuída de sua Caridade Santa”282. Possuído pela Caridade Santa, Ibiapina opta pelos pobres. O padre Ibiapina identificou-se com o povo sofredor dos sertões e fez com que o povo se identificasse com ele.

Entrou em sintonia com os pobres dos campos e pés de serra e criou uma pastoral a partir deles.283

Contemplou com os olhos do Bom Pastor a face hedionda da fome e da miséria.

Experimentara a dor da perda e das privações na orfandade, nelas acumulou energias para converter desespero em esperança, apatia e resignação em indignação ética e criatividade para superá-las. A vivência na área do direito e da política fortaleceu a consciência do descaso e abandono com que os pobres eram tratados e moldaram o caráter austero, justo e solidário do missionário e do pastor.

A reclusão voluntária de três anos dedicados à oração, meditação e leitura da Palavra e da Patrística clareou-lhe a tomada de decisões. Ibiapina fez opção pelos pobres sem ingenuidades, com lucidez e vontade de fazer algo de útil em favor dos abandonados daquela época. Diz-nos Comblin: “a maior preocupação de Ibiapina foi a de formar um povo, uma comunidade onde não existissem indivíduos isolados sem proteção e sem leis”284.

280 COMBLIN, José. Ibiapina, o Missionário, op.cit., p. 121-122.

281 CARVALHO, Ernando Luís T. de. A missão Ibiapina, op. cit., p. 51, 53. Quem desejar conferir as viagens do Padre Ibiapina os detalhes das pregações e a mobilização do povo para as obras da Caridade, veja as Crônicas das Casas de Caridade, 1981, de Eduardo Hoornaert. Mais recente o Pe. Ernando Luiz Teixeira de Carvalho organizou as informações inclusas nas Crônicas das Casas de Caridade (CCC) de Hoornaert, os escritos de Paulino Nogueira, primeiro biógrafo do Pe. Ibiapina. O trabalho do Pe. Ernando L. Teixeira foi considerado por Comblin o que de mais completo existe até hoje escrito da época, por pessoas que acompanharam o Padre Ibiapina e, alguns escritos do próprio missionário.

282 Ibidem, p. 51.

283 COMBLIN, José. Instruções espirituais do Padre Ibiapina, op. cit., p. 16.

284 COMBLIN, José. Ibiapina, o Missionário, op.cit., p. 122.

Encarnou-se na vida dos pobres que viviam isolados nos sertões, penetrou no tecido social dos pobres: “[...] entrou no povo do seu tempo, tornou-se um elemento integrante desse povo [...]. Foi adotado, entrosado, assimilado pelo povo do interior”285. Exortou as pessoas à busca da eternidade, na reconciliação e no trabalho a serviço do próximo: “Tratava-se de convocar o povo para as obras de Jesus, as obras da ‘Caridade’. [...] O centro da missão era o trabalho feito para o bem de todos. Ibiapina repetia incansavelmente que a verdadeira oração é aquela que se faz com as mãos”286.

Padre Ibiapina contou com os valores e as forças locais: pessoas solidárias e materiais não faltavam. Convidou-as para o mutirão, prática esporádica encontrada no meio rural entre os camponeses e remanescentes indígenas. Venceu o individualismo do isolamento a partir do que já existia, moveu milhares de pessoas nas obras da Caridade, que eram concluídas em poucos dias. Fortaleceu o espírito comunitário dos pobres através dos valores evangélicos já existentes entre os pobres a hospitalidade e a solidariedade.

Reunia e organizava os pobres para a solidariedade. Por exemplo, em Barbalha-CE, o missionário mobilizou cerca de doze mil pessoas que ouviram a palavra e se puseram ao serviço das obras da Matriz, do cemitério dos coléricos e da cacimba do povo. Foram muitos os sinais de conversão no abandono dos vícios e reconciliação de inimigos. Grande foi o entusiasmo com que o povo na missão de Goianinha, distrito de Missão Velha-CE, formou várias equipes de trabalho e, em poucos dias, estavam construídos um açude e a capela do lugar.287

Padre Ibiapina uniu as forças dos pobres e fez aliança com eles. Mostrou que o semiárido é autossustentável. Demonstrou de maneira sensível e inteligente que os pobres reunidos realizam o milagre da partilha e a vida se transforma. O padre Mestre reanimou a fé e a esperança de dias melhores, através da caridade exercida pela espiritualidade do trabalho.

Ninguém era excluído, os ricos do lugar eram acolhidos na missão, entravam nos mutirões populares e punham seus bens a serviço das obras da Caridade. Diz-nos o Cronista:

Seguiu para a povoação de Gravatá e seu piedoso coração sentia a repetição de tantas misérias humanas e se partia de dor... Já conhecia o poder misterioso de sua palavra; já tinha falado ao povo em crises difíceis de resolver, e o efeito seguia-se à palavra. Chegando em Gravatá tomou por protetores os Sacratíssimos Corações de Jesus e Maria e começou o primeiro edifício da Caridade. Se a sua fé era grande, a sua expectativa não foi menor, quando viu a facilidade com que se levanta uma

285 COMBLIN, José. Ibiapina, o Missionário, op.cit., p. 125.

286 COMBLIN, José. Instruções espirituais do Padre Ibiapina, op. cit., p. 14, cf. nas Instruções e máximas morais do padre Ibiapina às irmãs das Casas da Caridade, n. 33-34, p. 34.

287 ARAÚJO, Sadoc de. Padre Ibiapina: peregrino da caridade, op. cit., p. 390-393.

Casa. E em que lugares? Onde os recursos da vida eram mais difíceis; onde havia menos probabilidade e mais obstáculos a vencer. À sua voz parecia que se levantavam as pedras.288

Construiu uma pastoral restauradora da dimensão comunitária do povo de Deus e dedicou-se à vida concreta dos pobres: falta d’água, doenças, abandono, fome, desemprego e analfabetismo. Cuidou ao mesmo tempo da oração, da reconciliação e da disciplina moral contra os vícios. Assumiu a atitude do Bom Pastor que quer vida plena das suas ovelhas (Jo 10,10). Nas dificuldades, afirmava confiante na Providência: “Nada faltará”:

É maravilhoso vê-lo lançando os fundamentos de uma casa que deve acomodar talvez cem pessoas, sem ter de seu um real, e se alguém lhe objeta com a deficiência de meios a sua resposta é sempre esta: ‘Não falta nada’, assim tem acontecido [...] O povo que já o conhece, concorre para o pé da obra; são alimentados todos os pobres que aparecem; a obra marcha rapidamente.289

Comblin analisa que, as obras da Caridade em geral, através da espiritualidade do trabalho, congregavam as pessoas dispersas e as despertavam à cooperação voluntária, solidária em favor do próximo. Isso tem grande alcance simbólico. As casas da Caridade foram os principais pontos de unidade do povo que andava disperso. Acolhem os órfãos, meninas e mulheres em perigo de prostituição e abandonados em geral. Elas constituirão os núcleos nos quais o povo de Deus, a Igreja dos pobres vai se reunir.290

Na aliança solidária com os pobres, Padre Ibiapina valoriza-os como sujeitos históricos. Respeita as devoções tradicionais e organizações próprias do povo e as une com as práticas de serviços comunitários. Reconstrói o povo de Deus com a força dos pequenos e faz emergir uma Igreja com rosto sertanejo, Igreja dos pobres291, movido por uma espiritualidade profunda e realista:

Ibiapina contemplou a face da miséria e ela o converteu, pois lhe revelou a Face sofrida do próprio Deus. [...] O sofrimento assumido por Ibiapina não provém de um sentimento religioso doentio, mas é consequência de uma percepção que as pessoas raramente alcançam: a percepção religiosa da miséria, a relação entre Deus e os miseráveis, a ideia de missão como compromisso com este povo por todos abandonado e esquecido.292

288 CARVALHO, Ernando Luís T. de. A missão Ibiapina, op. cit., p. 38-39.

289 Ibidem, p. 39-40.

290 COMBLIN, José. Ibiapina, o Missionário, op.cit., p. 123.

291 COMBLIN, José. Instruções espirituais do Padre Ibiapina, op. cit., p. 16-17.

292 HOORNAERT, Eduardo. Crônica das casas de caridade fundadas pelo padre Ibiapina, op. cit., p. 14; cf.

Crônica 77.

Experimentou Jesus nos pobres do sertão e, movido por esta experiência, reanimou a fé, a esperança e a Caridade. Ibiapina externa a experiência pessoal de Deus no poema “O engeitado”:

Nada tinha a esperar um infeliz abandonado, mas o vagido innocente, acha Deos sempre acordado. Foi elle quem ensinou a ter dó e compaixão, por todo que geme e sofre dura sorte e afflição. Eu vos amo meu Jesus nem posso deixar de amar! Sois Pai de quem não tem Mãe, sois Mãe do filho a chorar.293

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