• Nenhum resultado encontrado

A grande espera dos pobres – “Que os ventos do Espírito adentrem na Igreja”

CAPÍTULO 1: O CAMINHAR DO POVO DE DEUS ENTRE LUZES E SOMBRAS

1.2 O espírito evangélico dos mendicantes ressuscita o povo de Deus!

1.2.3 A grande espera dos pobres – “Que os ventos do Espírito adentrem na Igreja”

Você é perseverante. Sofreu por causa do meu nome, e não desanimou. Mas há uma coisa que eu reprovo: você abandonou seu primeiro amor. Preste atenção: repare onde você caiu, converta-se e retome o caminho de antes [...] Quem tiver ouvidos ouça, o que o Espírito diz às Igrejas! (Ap 2,3-5.7a).

78 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 139.

79 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 81.

Segundo Comblin duas tendências surgirão no início do século XX. A primeira, de cunho intelectual, acolhe os métodos históricos e críticos modernos para pensar o cristianismo; a outra, de caráter social, que levou a reconhecer o povo, o mundo dos pobres, aceitando-o como desafio. Emergem os movimentos reformadores. Do lado intelectual, surge o movimento bíblico, que entra em choque com as interpretações tradicionais das escrituras; o movimento de restauração patrística, que mostrou nas origens uma figura de cristianismo bem diferente do modelo oficial.

Pretendeu o movimento litúrgico restaurar uma liturgia mais original, mais perto das origens cristãs. Surge também o movimento ecumênico que, pela primeira vez, levou alguns católicos a se relacionarem com os irmãos separados, não mais em forma de combate para assim descobrirem que os hereges não eram tão heréticos e que havia valores nas outras Igrejas.80

Na perspectiva social surgem associações cristãs e partidos políticos cristãos em vários países europeus. Entram na sociedade sem medos e preconceitos, mergulhando nos problemas locais, confrontando-se com eles. Foi inevitável o encontro com o socialismo. Estes cristãos queriam da hierarquia da Igreja um maior compromisso social e uma possibilidade de diálogo com os socialistas. Foram grandes as resistências, sobretudo dos Papas Pio X e Pio XII. A ação dos agentes de pastoral foi restrita e limitada.81

Resistir ao socialismo, e oferecer uma Doutrina Social que servisse para o mundo inteiro, foi o que pretendeu a hierarquia da Igreja, sem levar em conta a formação histórica e a diversidade de contextos sociais, econômicos e políticos. O medo era do ateísmo e materialismo das ideologias marxistas. Formulou-se um corpo doutrinal abstrato, defasado, sem sintonia com as realidades locais.

Para Comblin, o que se esperava era que os católicos aceitassem a doutrina, que não agissem socialmente, evitando, com isto, os conflitos. Por outro lado, militantes cristãos da ação social, pressionavam a Igreja para que tomasse posições claras frente aos problemas concretos. Os resultados foram condenações, dentre elas, dos padres operários franceses pelo Papa Pio XII.82

O temor da Igreja era de colaborar com a promoção da luta de classes e de ferir o principio evangélico da paz. Mas e o Evangelho da justiça e da liberdade onde ficava? Não seria o mesmo Evangelho? Comblin entende que esse era o motivo alegado, no entanto, “o

80 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 82

81 Ibidem, p. 83.

82 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 84.

motivo real podia ser mais político: aceitar o tema da luta de classes era romper com a burguesia”83.

Romper profeticamente com a exploração capitalista era o empenho dos católicos engajados na realidade social, e queriam uma Igreja encarnada na história, mais fiel às suas origens, no compromisso com os pobres, uma Igreja desprovida de bens e poder. Essa minoria profética, que desejava superar os traços da Igreja imperial encontrou motivação espiritual e teórica no conceito de povo de Deus, que ressurgia fortemente do movimento bíblico, patrístico e litúrgico.

Eclode com força a perspectiva teológica de uma eclesiologia do povo de Deus, resultado de todo o processo histórico, adubada e regada na ação destes movimentos que prepararam os campos para a primavera do Concílio Vaticano II. Para Comblin, apesar da rigidez da hierarquia em reprimir essa manifestação, o povo de Deus emerge no cenário eclesial e social, “na teoria e na prática”, sobretudo nos idos de 1937 e 1942. Preparam-se os terrenos para a nova semeadura que se dará com o papa João XXIII.

Abriram-se caminhos para realização da grande esperança do povo de Deus. A eclesiologia do Corpo Místico de Cristo, defendida por Pio XII, na encíclica Mystici Corporis de 1943, não correspondeu à demanda dos cristãos naquele momento histórico. Ela não conseguiu motivá-los para a práxis cristã na sociedade e não superava o entranhado clericalismo e a resignação de boa parte do laicato.

Fala-se de sentimentos contraditórios e até opostos, intra e extra eclesialmente naquele momento: o rígido controle da Cúria romana sobre as massas católicas e a tentativa de qualquer iniciativa em construir uma Igreja comunhão de comunidades locais estariam fadadas ao fracasso. Desejava-se que a Igreja superasse o caráter centralizador e se abrisse ao diálogo com as outras denominações cristãs e à sociedade moderna.84

O papa João XXIII, tido como de transição, devido à sua idade já avançada, e a simplicidade de sua origem, surpreende quando anuncia, em 25 de janeiro de 1959, ao concluir a semana de preces pela unidade dos cristãos, sua decisão de realizar um concílio. De um lado, o mundo que sofria a tensão da Guerra Fria, carente de um novo alento, de outro lado, uma Igreja isolada, encastelada em suas certezas cristalizadas, parecendo mais, na expressão de Comblin, “um corpo estranho” na sociedade moderna.

A convocação de um novo Concílio ressoa para a população mundial como uma boa

83 Ibidem, p. 85.

84 ALBERIGO, Giuseppe. A Igreja na história, op. cit., p. 33.

notícia, um novo advento. Significou verdadeira renovação das energias subterrâneas da fé cristã e dos povos sofridos pelas guerras, pobreza, exploração e abandono no mundo todo.

Após séculos de Cristandade, fundamentada na teologia da Sociedade Perfeita, retornou-se com o Concílio Vaticano II, 1962-1965, a teologia do povo de Deus. Sob a ação do Espírito, o papa João XXIII revela suas expectativas, e, exorta os cristãos com palavras proféticas, faltando um mês para abertura do Concílio em 11/09/1962: “Que a Igreja apresente-se ao mundo, assim como ela é, Igreja de todos, sobretudo Igreja dos pobres!”

O papa João XXIII fazia eco à espera ansiosa dos pobres de Jesus, que na base da Igreja há séculos, ansiavam por participação e atenção pastoral. Qual o impacto e recepção das palavras de João XXIII naquela hora? O que ainda restava da teologia do povo de Deus, em meio a tantos acentos na autoridade, na disciplina e na obediência? Quais as respostas o Concílio Vaticano II dará às expectativas levantadas por João XXIII?

A iniciativa do papa João XXIII teve ressonância positiva até mesmo nos corações das outras Igrejas cristãs. Reanimou as energias da fé, da esperança e da caridade de diferentes segmentos no mundo inteiro. Renovaram-se expectativas e possibilidades de mudanças nas relações intra e extraeclesiais. Veio à tona com mais força a questão da unidade dos cristãos e, numa humanidade dilacerada por guerras, ideologias e desigualdades, volve-se um olhar com mais otimismo para o mundo atual e a esperança de um futuro melhor.85

Documentos relacionados