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Do Deus Imutável Todo-poderoso ao Deus que se esvazia e se faz peregrino

CAPÍTULO 3: DA MISSÃO IBIAPINA À NAÇÃO ROMEIRA DO JUAZEIRO –

3.1 Imagens de Deus e Igreja dos pobres em Comblin

3.1.2 Do Deus Imutável Todo-poderoso ao Deus que se esvazia e se faz peregrino

meio ao individualismo reinante.

A grande maioria, privada do acesso aos bens culturais, não consegue competir de maneira igual. Na igualdade capitalista todos podem competir, embora de maneira bastante desigual do ponto de vista das oportunidades de preparação. Aos “incompetentes” resta o desemprego, o desprezo, a indiferença social e a exclusão do mercado. O que interessa ao mercado é consumidores. A pessoa humana, enquanto tal é descartada, os pobres, que não podem competir nem consumir, estão fora do mercado.

A Igreja dos pobres, através da releitura bíblica, une fé e vida e realiza a vontade do Deus bíblico, ao reencontrar Jesus nos crucificados de hoje pela exclusão social, violência, drogas, corrupção, analfabetismo, tráfico humano e indiferentismo: “O que Jesus faz é a vontade do Pai. A opção pelos pobres é a opção feita pelo Pai e praticada pelo Filho com toda a força do Espírito Santo”325. O desafio é testemunhar a fé no Deus Compaixão Solidária na história através de sinais visíveis.

A profecia e a solidariedade exercidas pelas CEBs, Pastorais Sociais, Cáritas, e demais organismos eclesiais de serviço à vida dos pobres, encarnam a compaixão solidária do Bom Pastor na sociedade atual e reafirmam a fé no Deus da vida.326 Manifesta-se a profecia nas denúncias feitas pelas Campanhas da Fraternidade, as propostas de gestos concretos de solidariedade, no Grito dos Excluídos, Centros de Defesa dos Direitos Humanos, Serviços de Justiça e Paz e no combate à corrupção na política.

maneira individualista e utilitarista.

Comblin afirma que o ateísmo existencialista, proposto por J. Paul Sartre, critica a existência de Deus a partir destes conceitos metafísicos de onipotência e infinitude e

“retomada pelos seus discípulos: ‘Se Deus existe eu não sou nada’. Se existe um Deus onipotente, o que ainda sobra para mim? Essa presença ao meu lado do poder absoluto torna irrisórias todas as minhas ações. Diante do infinito todo o finito torna-se irrelevante”327.

Argumentam os ateus sartreanos que a onipotência de Deus impõe-se e opõe-se à liberdade humana. Haveria um conflito entre as duas liberdades, Deus e a pessoa humana.

Compreendem que a pessoa humana para ser livre precisa negar a existência de Deus.328

O teólogo uruguaio Juan L. Segundo investiga o influxo das imagens de Deus sobre a percepção da liberdade humana. Como fica esta liberdade frente à onipotência e autossuficiência de Deus? Diante da autossuficiência e imutabilidade de Deus existe espaço para a liberdade humana? Um Deus imutável, impassível pode dar ou receber alguma coisa do ser humano, isto é, pode estabelecer uma aliança?

Segundo acompanha a resposta de Teilhard de Chardin ao problema, a única significação cristã da liberdade é a criatividade ou liberdade criadora. Toda pessoa humana tem que criar o seu caminho.329 Cada ser humano é um projeto aberto, sobre o qual ele próprio é chamado a dar sua palavra.

Assim, diante do existencialismo ateu, convém uma tranquila atitude de escuta. Sua oposição, sua refutação das imagens do Deus onipotente, perfeitissimo e inacessível, estão marcadas por preocupações genuinamente humanas, o que é assinalado pelo fato de se dizerem “existencialistas”. O Deus com as marcas assinaladas de poder e imobilidade deixa pouco ou nenhum espaço ao existencial humano. Comblin enfrenta essa problemática e apresenta como resposta a teologia paulina, expressa no hino da kenosis, como celebração da fraqueza de Deus:

Assim Deus suspende todo o seu poder, quando a criatura aparece. A pessoa suspende o poder de Deus. Nenhuma evidência, nenhuma ameaça, nenhum constrangimento força nem obriga... A liberdade de Deus consiste em permitir e ajudar a liberdade do menor dos seres humanos. A liberdade de Deus reprime o poder. Torna-se fraca para que possa manifestar-se a força humana.330

327 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 65.

328 Ibidem, p. 66.

329 SEGUNDO, Juan Luís. Teologia aberta para o leigo adulto. Tradução Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola, 1975. p. 111.

330 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 66.

Foi tema constante da tradição espiritual cristã a concepção do Deus que “se dá” e “se esconde”. O Deus da Bíblia manifesta-se no meio da nuvem, se faz perceptível, mas não impõe sua presença. Fundamentalmente, ele respeita a liberdade do outro, pára e aceita que o outro exista. Permite que outro se expresse, portanto recusa a dominação. Ele se detém diante do outro, ouve, acolhe: respeita a alteridade.

Deus escondeu o seu poder até ao ponto de as autoridades de Israel não o reconhecerem. É assim que Deus se dirige às pessoas: sem intimidação, sem poder. Optando por viver não apenas na companhia, mas na dependência dos seres humanos, entrega a própria vida nas mãos de criminosos. Quem dirá dessa maneira que Deus faz violência às pessoas?

Comblin cita Levinas, para quem o outro é o desafio da liberdade que me interpela, a provocação que a desperta. Diante do outro há duas atitudes: posso examiná-lo para ver em que ele me poderia ser útil ou que ameaça que representa para mim, ou, então, perguntar-me o que eu poderia fazer para ajudá-lo.

Diferente do individualismo extremo e utilitarismo do mundo atual, a liberdade de Deus se autolimita. Não busca levar vantagem, ao contrário, esvazia-se para servir. Diante da criatura, Deus limita sua presença. Preferiu antes deixar que crucificassem o Filho a intervir para impedir tal injustiça. Trata-se de “fraqueza voluntária”331.

Esvaziar-se e fazer-se servo, caminhar com os pobres, comer com pecadores excluídos do sistema religioso e anunciar que o Reinado de Deus chegou, teve consequências para Jesus. Deus não intervém na condenação e morte de seu Filho, porque não fazia parte de sua lógica a força física ou uso de privilégios, muito menos porque exigia de Jesus o sacrifício para expiar os pecados:

O Pai não queria reinar como faziam os reis e os governantes dos povos. Não queria impor a sua vontade, o seu projeto. Não queria contar com exércitos, com o dinheiro, com alianças com os poderosos. Aí estava se mostrando bem a pobreza do Pai, totalmente desarmado.332

A kénosis é a pedagogia utilizada por Deus na Encarnação para revelar a sua opção pelos pobres. A pobreza é o tema que emerge de maneira contundente nos Evangelhos. Jesus nasce pobre, viveu pobre na pobre cidade de Nazaré. Dirigiu-se aos pobres, anunciou-lhes o Reino e vivia da caridade dos pobres. Morreu como os pobres, despojado até de suas vestes

“Conhecereis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo que por causa de vós se fez pobre,

331 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 66-67.

332 COMBLIN, José. O pobre: critério para a profecia, op. cit., p. 197-199.

embora fosse rico, para vos enriquecer com sua pobreza” (cf. 2 Cor 8,9)333.

Compara-se o amor de Deus ao amor gratuito e à generosidade das mulheres, que

“Quase sempre amam mais, por isso sofrem mais. Porém, nessa fraqueza consentida não estará a maior liberdade? Nessa fraqueza a pessoa vence todo egoísmo, todo o desejo de prevalecer, toda a preguiça ao aceitar maiores desafios”334.

A salvação de Deus é gratuita, entrega-se por amor. Somente quem ama como Pai e Mãe é capaz de doar-se ao extremo: “Não há maior amor do que doar a vida pelos amigos”

(Jo 15,12-13). Esta é igualmente expressão maior da liberdade.

Outras duas manifestações da “fraqueza voluntária” de Deus é o aspecto itinerante e mendicante do movimento missionário que Jesus iniciou na Galiléia. Ao contrário da imagem metafísica do Deus imutável e imóvel, confinado num plano etéreo, o Deus encarnado vai ao encontro das pessoas, percorre com fervor missionário campos, vilas e cidades e comove-se com miséria humana (cf. Mt 9,34-35).

A experiência do movimento itinerante de Jesus assume a radicalidade da mendicância. Comblin fala da extrema fraqueza de Deus que se faz suplicante e relembra que o teólogo Juan Luís Segundo tinha predileção pela citação: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouve a minha voz e abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo”

(Ap 3,20).

A linguagem dos evangelhos revela a presença de Deus na pessoa de Jesus, a relacionar-se com as outras pessoas e em plena relação com o Pai. No evento Jesus, Deus se revela não como impassível, imutável, inacessível, mas ao contrário, o Deus apaixonado que vem em busca do ser humano, com entranhas de amor de mãe e de pai.

A imagem do Deus Onipotente, Autossuficiente, Imóvel, Impassível e Perfeito, é uma linguagem totalmente antagônica à dos evangelhos que diz: estive faminto, sedento, preso, nu, doente e forasteiro e você me acolheu e se solidarizou comigo (Mt 25,31-46), ou “Eis que estou à porta e bato” (Ap 3,20).

Deus peregrino, mendigo, apaixonado, difere do conceito de imutabilidade, perfeição, onipotência e autossuficiência. Qual a linguagem que mais se aproxima dos anseios e esperanças da humanidade hoje? Volta a questão da linguagem colocada pelo papa João XXIII, como apresentar de maneira atual a perene riqueza do Evangelho de Cristo à humanidade?

333 COMBLIN, José. O Espírito Santo e a tradição de Jesus, op. cit., p. 249.

334 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 67.

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