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O Espírito traz os pobres à luz: mendicantes desposam a Dama Pobreza!

CAPÍTULO 1: O CAMINHAR DO POVO DE DEUS ENTRE LUZES E SOMBRAS

1.1 O Reino de Deus e os pobres como centro da práxis de Jesus

1.1.3 O Espírito traz os pobres à luz: mendicantes desposam a Dama Pobreza!

em Jesus o Messias vindo de Deus.

Foi ao sistema religioso judaico que Jesus se opôs, especialmente à falta de compaixão dos chefes religiosos para com os sofrimentos dos pobres. Ele denunciou um sistema no qual os pastores usufruíam das ovelhas e as ovelhas serviam aos pastores. É este tipo de cristianismo da hierarquia, longe da práxis de Jesus, que muita gente vai questionar no decorrer da história. Não se trata de rejeição a Deus ou à religião, mas o tipo de religião que acoberta e apoia os privilégios e dominações.

Numa época que tinha como máxima “não há nada de novo de baixo do sol”, as beguinas trazem a novidade da vivência cristã a partir dos pequeninos, dos pobres, que não contavam na sociedade feudal. A austeridade de vida das beguinas e as suas atitudes humildes e caridosas conquistaram o povo de Deus. Elas não se contrapunham ao Cristianismo, mas à forma como ele estava sendo conduzido pela hierarquia católica.

Despojadas diante da riqueza e dos poderes, o testemunho das beguinas já representava uma denúncia profética do modo de viver do clero. É o Espírito da profecia que se manifesta no anúncio, renúncia e denúncia daquilo que não condiz com o projeto de Deus.

O Espírito continua a suscitar novidades e ressuscita a esperança dos pobres na história, como o fez há dois mil anos na palestina do século I.

mundo inspirado pelo Espírito, de pobreza absoluta, de surgimento do povo dos pobres independente do clero. O movimento franciscano apareceu como um milagre.

A sua expansão foi fulminante. Em poucos anos o movimento estendeu-se pela Europa inteira, juntando milhares, dezenas de milhares de membros e a simpatia de milhões de cristãos. Francisco era a realização concreta das aspirações dos movimentos populares [...]. Além disso, a vida de Francisco era virtualmente contestação radical de toda a Igreja – antes de mais nada, do modelo hierárquico da Igreja, apesar do imenso respeito que são Francisco sempre manifestou aos representantes da hierarquia.39

Comblin evidenciou pontos fundamentais da ação de Francisco. Enquanto leigo, não participou da hierarquia e pôde agir sob a liberdade do Espírito do Evangelho. Não confrontou o poder clerical e incorporou em sua existência os valores vividos por Jesus em sua época, questionando o modo de viver do clero.

Em meio ao ressurgimento e desenvolvimento das cidades, emergem conflitos que envolvem Francisco, levando-o a se posicionar contra o sistema de valores, cujos adeptos digladiavam-se pelo poder. Mesmo sendo rico, descobre a pobreza e dá visibilidade a ela.

Enxergou na economia monetária a fonte da acumulação e das desigualdades, por isso não aceitou o dinheiro.

Francisco foi ao encontro dos pobres e reconheceu neles o próprio Jesus e com eles se solidarizou. Experimentou a fraternidade com seus companheiros, rejeitando ostentar qualquer sinal de superioridade, numa época de contradições, conflitos e transformações.

Olhou com beatitude a natureza, as pessoas, inclusive a mulher, que era discriminada na época. Viveu a itinerância, enquanto a nobreza e o alto clero se alojavam em amplos castelos.

Procurou contato permanente com a natureza, com os pobres e doentes, mesmo tendo seus momentos de solidão.40

Os mendicantes, com liberdade recolocam no centro da vida cristã a temática da pobreza, o que naquele contexto estava completamente silenciada. De maneira humilde e profética, retornando na prática ao Evangelho e à vida das primeiras comunidades cristãs, eles questionam a abusiva riqueza e o poderio da Igreja.41

Após Francisco de Assis virá à tona a grande questão dos espirituais, que querem continuar a radicalidade dele numa vida austera, em contraposição aos frades conventuais que se adequaram às comodidades da alta hierarquia da Igreja, enriquecida de maneira escandalosa.

Os debates e querelas sobre a pobreza e os pobres, e, o acúmulo de bens na Igreja vão

39 COMBLIN, José. O povo de Deus, op. cit., p. 66-67.

40 COMBLIN, José. A profecia na Igreja, op. cit., p. 135-140.

41 Ibidem, p. 137-138.

durar décadas até a “solução” do Concílio de Viena (1313) que desvinculou o voto de pobreza do “uso pobre” dos bens, ou seja, da vida austera. Comblin relata a perseguição aos espirituais, sob o papado de João XXII (1316-1334):

Em 1317 uma Bula os condenou, começando a repressão e muitos deles foram queimados vivos em Marseille. A Bula Cum inter nonnullos condenou a pobreza defendida pelos espirituais e definiu que Jesus também tinha propriedade e que não praticava a pobreza defendida por eles. Depois disso, já não se pôde mais falar em pobreza. O tema da pobreza foi reassumido eventualmente por alguns grupos, mas ficou fora da doutrina oficial da Igreja e foi sempre suspeito até o século XIX e na América Latina até 1950. O chamado voto de pobreza já não tinha nada a ver com os pobres e com a verdadeira pobreza.42

Percebemos que a Igreja, enquanto seguidora e servidora do peregrino de Nazaré, estava completamente desfigurada, manchada pela idolatria do poder e do ter. Isto afastou pessoas e despertou a indignação evangélica em muitos. A instituição querida pelo Deus de Moisés, dos profetas e de Jesus, não se distinguia dos impérios na dominação e no acúmulo de riquezas. Perdeu a liberdade diante dos tronos e bens e cassou a liberdade do povo.

Enquanto instituição humana e divina, a Igreja agiu muito mais sob a influência dos poderes terrenos. No entanto, o Espírito manteve a sua integridade no povo de Deus e suscitou em pessoas e grupos uma volta à inspiração inicial, ressuscitando no povo de Deus o anseio por reformas na instituição, para que esta buscasse a fidelidade à sua missão.

As ordens mendicantes convidam a Igreja a volver seu olhar primeiro a Jesus e seu movimento itinerante. Lembrou-se o caráter mendicante, desapegado dos bens e honrarias, o que favoreceu a total liberdade frente aos poderes da época. Por isso, Jesus alerta “Não podeis servir a Deus e a Mamon (dinheiro)” (cf. Lc 16,13).

Para Comblin, a questão de fundo aqui é a liberdade. A aliança da Igreja com os impérios, reis e nobres medievais, e a quantidade de bens e privilégios da instituição eclesial, impediam sua autonomia para questionar qualquer exploração, abandono dos pobres e autoritarismo.

Interpretou-se como herético qualquer questionamento aos poderes que reivindicavam para si as bênçãos divinas. O clero aprisionado por esta situação luta para manter os seus privilégios e os leigos, ao reivindicarem participação nas decisões sociais e eclesiais, tornam- se os inimigos contra os quais a Igreja e reis precisam defender-se.43

Os mantenedores do status quo, tanto religioso quanto político, interpretam a

42 COMBLIN, José. A profecia na Igreja, op. cit., p. 142-143.

43 COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, op. cit., p. 130.

participação do povo como uma ameaça à estabilidade e à continuidade deles. A grande massa popular sustenta o trono de César e de Pedro, mas em escala quase total, fica excluída dos processos de participação e decisão. Sustentado pelo Espírito, o povo dos pobres sobrevive nos subterrâneos da sociedade e da Igreja e ressuscita como povo de Deus em vários momentos da história, segundo a ação do Espírito.

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