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A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primeiro século. Só no século XVII a escravidão negra viria a sobrepujá-la, conforme assinala Brandão:

[...] em algumas capitanias há mais deles que dos naturais da terra, e todos os homens que nela vivem têm metida quase toda sua

fazenda em semelhante mercadoria (Brandão 1968:115).

Ainda assim, subsistiu nas áreas pioneiras como estoque de escravos baratos utilizáveis para funções auxiliares.

Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mão de

obra indígena, embora preferisse a escravatura negra para a produção mercantil de exportação. O índio era tido, ao contrário, como um trabalhador ideal para transportar cargas ou pessoas por terras e por águas, para o cultivo de gêneros e o preparo de alimento, para a caça e a pesca.

Seu papel foi também preponderante nas guerras aos outros índios e aos negros quilombolas.

A documentação colonial destaca, por igual, as aptidões dos índios para ofícios artesanais, como carpinteiros, marceneiros, serralheiros, oleiros. Nas missões jesuíticas tiveram oportunidade de se fazerem tipógrafos, artistas plásticos, músicos e escritores.

A função básica da indiada cativa foi, porém, a de mão de obra na produção de subsistência. Para isso eram caçados nos matos e engajados, na condição de escravos, índios legalmente livres, mas apropriados por seus senhores

através de toda sorte de vivências, licenças e subterfúgios.

A partir da carta régia de 1570, em que d. Sebastião autorizava o apresamento de índios em guerras justas, a uma lei de alforria se seguia outra, autorizando o cativeiro através de procedimentos paralegais como os leilões

oficiais para venda de índios, as taxas cobradas por índio vendido como escravo, as ordens reais para preia e venda de lotes de índios para custear obras públicas e até para construir igrejas, como ocorreu com a catedral de São Luís do Maranhão.

A rigor, apesar da copiosíssima legislação garantidora da liberdade dos índios, se pode afirmar que o único requisito indispensável para que o índio fosse escravizado era ser, ainda, um índio livre. Mesmo os já incorporados à vida

colonial – como ocorreu com os recolhidos às missões –

inúmeras vezes foram assaltados e acossados. Isso foi o que sucedeu, por exemplo, quando Mem de Sá autorizou uma guerra de vingança para escravizar os índios Caeté por haverem comido o bispo Fernandes Sardinha. Os colonos, com base nessa ordem de vingança, caíram sobre as

missões jesuíticas e dos 12 mil catecúmenos sobraram apenas mil, quando a ordem foi revogada.

Milhares de índios foram incorporados por essa via à sociedade colonial. Incorporados não para se integrarem nela na qualidade de membros, mas para serem

desgastados até a morte, servindo como bestas de carga a quem deles se apropriava. Assim foi ao longo dos séculos, uma vez que cada frente de expansão que se abria sobre uma área nova, deparando lá com tribos arredias, fazia delas imediatamente um manancial de trabalhadores

cativos e de mulheres capturadas para o trabalho agrícola, para a gestação de crianças e para o cativeiro doméstico.

Custando uma quinta parte do preço de um negro importado, o índio cativo se converteu no escravo dos pobres, numa sociedade em que os europeus deixaram de fazer qualquer trabalho manual. Toda tarefa cansativa, fora do eito privilegiado da economia de exportação, que cabia aos negros, recaía sobre o índio.

O apresamento sempre foi tido como prática louvável e até mesmo como técnica de conversão. O próprio Nóbrega, nos seus planos de colonização, desaconselha a vinda de colonos tão pobres que não pudessem comprar logo índios cativos para pôr a seu serviço, sugerindo que só fossem mandados para cá os abonados que tivessem condições de

adquiri-los. É certo que ele, como os outros jesuítas,

quiseram pôr termo à ganância dos colonos que degenerara em práticas que estavam esgotando a população indígena em prejuízo para a colonização. Ainda que fosse por sua posição de competidor, uma vez que tinha outra destinação a dar aos índios, o certo é que tinha a visão clara sobre a necessidade de grande concentração de índios nas vilas missionárias e a serviço dos fazendeiros, como o principal mecanismo consolidador da empresa colonial.

O apoio da Coroa aos jesuítas, aos seus esforços por

regulamentar o cativeiro dos índios, não se fundava sempre nas razões religiosas e morais que alegava. Tinha base, de fato, no interesse da administração. Com efeito, as aldeias missionárias eram concentrações de gente recrutável e disponível a qualquer tempo, a custo nulo para as guerras aos índios hostis, ao invasor estrangeiro e aos negros

alçados. Era também uma importante fonte de provimento de gêneros a uma população famélica, porque se ocupava fundamentalmente da produção de gêneros alimentícios.

Os engenhos só cuidavam das mercadorias de exportação.

A concentração de índios nas missões coincidiu também, muitas vezes, com os interesses dos escravizadores que, num só ataque, faziam farta colheita de cativos.

A contradição entre os propósitos políticos da Coroa e dos jesuítas, de um lado, e o imediatismo dos traficantes de índios, do outro, não se resolveu nunca por uma decisão real pela liberdade ou pelo cativeiro. A legislação que regula a matéria é a mais contraditória e hipócrita que se possa encontrar. Decreta dezenas de vezes guerra justa contra índios tidos como culpados de grandes agravos ou

simplesmente hostis para, a seguir, coibi-las e, depois, tornar a autorizá-las, num ciclo sem fim de iniquidade e falsidade.

Os atos administrativos que regiam a escravidão dos índios são igualmente um vai e vem de engodos e chicanas que, proibindo o cativeiro, de fato o instituíam. O índio podia ser legalmente escravizado porque aprisionado numa guerra justa; ou porque obtido num justo resgate; ou porque capturado num ataque autorizado; ou porque libertado do cativeiro de alguma tribo que ameaçava comê- lo; ou ainda porque compunha um lote de que se pagara o quinto ao governo local.

Chegaram finalmente os missionários e, não podendo contrastar o sentimento geral [em favor da escravização indígena], pactuaram com ele. Por uma dessas capitulações de consciência, em que os jesuítas são exímios, acharam meio de entender que “quanto mais larga fosse a porta dos cativeiros lícitos, tanto mais escravos entrariam na Igreja e se poriam a caminho da salvação” (Vieira, Resposta aos Capítulos, 25). Assim, concordando com a prática da escravidão, acompanhavam as tropas e, como árbitros, decidiam da justiça das presas. Nessa concessão estava a ruína da sua obra e, o que mais foi, também da sua fama. Ninguém jamais os livrará da pecha de haverem diretamente concorrido para a destruição da raça infeliz, que pretendiam salvar (Azevedo 1930:169).

Mas isso não é tudo. Instituiu-se também a escravidão voluntária de índios maiores de 21 anos que, em caso de necessidade extrema, estavam autorizados a se vender a si mesmos a quem tivesse a caridade de comprá-los, depois de bem esclarecê-los sobre que coisa era ser escravo (Leite 1965:119, 124). Era lícito, também, a compra de meninos índios a seus pais para criá-los e treiná-los para o trabalho, o que representa o cúmulo da desfaçatez, uma vez que não há gente mais extremosamente apegada aos filhos do que as sociedades fundadas no parentesco. Era também legal e

até meritório comprar meninos trazidos por bugreiros ou regatões, para instruí-los na fé cristã, o que sucede até hoje nos cafundós da Amazônia. Era igualmente lícito reter

como cativo o índio que se acasalava com uma escrava e ainda registrar como escravo o filho gerado desse

casamento.

É muito difícil avaliar o número de índios escravizados, desgarrados de suas tribos. Se contará, certamente, por milhões quando a avaliação for feita de forma criteriosa.

Isso é o que indicam as poucas aproximações com que contamos, como a de Simonsen, que avalia em 300 mil os índios capturados e escravizados pelos bandeirantes

paulistas, uma terça parte deles destinada ao tráfico, exportada para outras províncias. Ou nos dados de Justo Mancilla e Simon Masseta (1951:i, 337), que supuseram que sobre as missões jesuíticas do Paraguai, no século XVII, os paulistas tinham arrancado 200 mil cativos. Os

descimentos que anualmente se faziam de índios dos altos rios da Amazônia, ao longo dos séculos, para as missões e, principalmente, para o cativeiro, não terão recrutado

quantidade menor.

O Brasil central, a zona da mata de Minas, do Espírito Santo e da Bahia, bem como as regiões de araucária do Sul do Brasil deram, também, larga provisão de braços cativos, à medida que foram sendo devassadas. Em todas essas áreas, o cativeiro a povos índios que resistiam à expansão foi decretado pelo rei de Portugal como legal, porque

obtido em guerras justas. Como o índio capturado é uma fração da tribo avassalada, porque muitíssimos deles morrem na luta pela própria liberdade, outros fogem nos

caminhos ou morrem de maus-tratos, de revolta e de raiva no cativeiro, o processo de apresamento como forma de recrutar a mão de obra nativa para a colonização constituiu um genocídio de proporções gigantescas.

A amplitude das diversas formas de legitimação do cativeiro se expressa bem no caso dos paulistas que juntavam em casa tantos índios escravizados de tantos tipos que tiveram de desenvolver toda uma nomenclatura para escriturá-los como peça dos seus inventários. Assim é que falam de peças de serviços, gente roja, serviços

obrigatórios, gente do Brasil, servidores (Machado

1943:31-6, 165-76). Tudo isso para que as mencionadas peças sucedessem de pai a filho como propriedade privada, sem falar em escravidão.

A própria redução jesuítica só pode ser tida como uma forma de cativeiro. As missões eram aldeamentos

permanentes de índios apresados em guerras ou atraídos pelos missionários para lá viverem permanentemente, sob a direção dos padres. O índio, aqui, não tem o estatuto de escravo nem de servo. É um catecúmeno, quer dizer, um herege que está sendo cristianizado e assim recuperado para si mesmo, em benefício de sua salvação eterna. No plano jurídico, seria um homem livre, posto sob tutela em condições semelhantes às de um órfão entregue aos

cuidados de um tutor.

Para os padres, eles seriam almas racionais mas transviadas, postas em corpos livres, mas carentes de resguardo e vigilância. Estando ali, porém, deviam trabalhar para seu sustento e para fazer próspera a comunidade de que passavam a fazer parte. Também

podiam ser recrutados a qualquer hora para a guerra contra qualquer força que ameaçasse os interesses

coloniais, porque esses passavam a ser os seus próprios.

Podiam também ser mandados às vilas para trabalho

compulsório de interesse público na edificação de igrejas, fortalezas, na urbanização de cidades, na abertura de estradas ou como remeiros e cozinheiros, ou serviçais nas grandes expedições ou no que mais lhe fosse indicado, sempre em benefício da coletividade que passara a

integrar. Podiam, finalmente, ser arrendados aos colonos mediante salários de duas varas de pano de algodão, formando assim um pecúlio que, se chegasse a ser recebido, eles aprenderiam com o padre a gastar

criteriosamente, quem sabe em alguma obra de caridade.

Pior, ainda, que os jesuítas foram os outros missionários, uma vez que nenhum deles jamais entrou em qualquer conflito com quem quer que fosse por manifestar

indignação contra o extermínio ou cativeiro dos índios.

Mais ainda que os jesuítas, os curas regulares foram

acusados reiteradamente de cobiça vil, chegando alguns a serem disciplinados e punidos pelo governo colonial pelo abuso com que exploravam os índios que caíam em suas mãos.

Expulsos os jesuítas, a situação piorou muito, porque as suas missões foram entregues, ao Norte, às famílias de contemplados que passaram a explorá-las como fazendas privadas. Nas outras regiões, algumas missões foram entregues a ordens religiosas consentidas nessa função, porque eram ainda mais propensas a servir ao governo e aos colonos do que seus escravos pela Companhia. Alguns

foram postos sob a direção de administradores civis que, podendo cobrar porcentagem sobre os índios que

arrendavam ou colocar os índios a trabalhar em suas

próprias fazendas, fizeram disso um alto negócio. Tão bom que alguns deles se esforçaram e lograram o supremo favor de se tornarem hereditários das antigas missões. A

quantidade de índios explorados dessa forma terá sido muito grande, uma vez que documentos do fim do século XVII falam de quatrocentas aldeias com administradores civis em São Paulo e de 4 mil nas outras capitanias

(Gorender 1978).

A expulsão pombalina que visava, nominalmente, liberar os índios das missões jesuíticas, integrando-os como iguais e até com certos privilégios na comunidade colonial,

representou enorme logro. O regulamento que então se baixou aboliu o trabalho compulsório bem como os turnos semestrais alternados de trabalho na missão de fora ou de arrendamento para as diferentes colônias.

Na realidade, essa prática somente se aprofunda daí em diante, lançando os índios nominalmente livres numa

condição generalizada de cativeiro mais grave que o

anterior. A situação desses índios arrendados era pior que a dos escravos tidos pelo senhor a título próprio, uma vez que estes, sendo um capital humano que se comprara com bom dinheiro, devia ser zelado, pelo menos para preservar seu valor venal; enquanto o índio arrendado, não custando senão o preço de seu arrendamento, daria tanto mais lucro quanto menos comesse e quanto mais rapidamente

realizasse as tarefas para que era alugado. Esse desgaste

humano do trabalhador cativo constitui uma outra forma terrível de genocídio imposta a mais de 1 milhão de índios.

2. Moinhos de gastar gente

No documento O Povo Brasileiro by Darcy Ribeiro (z-lib.org) (páginas 111-122)