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As crônicas coloniais registram copiosamente essa guerra sem quartel de europeus armados de canhões e arcabuzes contra indígenas que contavam unicamente com tacapes, zarabatanas, arcos e flechas. Ainda assim, os cronistas destacam com gosto e orgulho o heroísmo lusitano. Esse é o caso das loas do padre Anchieta a Mem de Sá, subjugador das populações aborígenes para escravizá-las ou colocá-las em mãos dos missionários.

Anchieta, descuidado da cordura que corresponderia à sua futura santidade, louva assim o bravo governador:

Quem poderá contar os gestos heroicos do Chefe à frente dos soldados, na imensa mata:

Cento e sessenta as aldeias incendiadas, Mil casas arruinadas pela chama devoradora, Assolados os campos, com suas riquezas, Passado tudo ao fio da espada.

Esses são alguns dos 2 mil versos de louvação escritos em latim por José de Anchieta (1958:129) no poema “De Gestis Mendi de Saa” (circa 1560).

O elogio é tanto mais compreensível quando se recorda que Mem de Sá, com suas guerras de subjugação e extermínio, estava executando rigorosamente o plano de colonização proposto pelo padre Nóbrega em 1558. Esse plano inclemente é o documento mais expressivo da política indigenista jesuítico-lusitana. Em sua eloquência espantosa, um dos argumentos de que lança mão é a alegação da necessidade de pôr termo à antropofagia, que só cessará, diz ele, pondo fim “à boca infernal de comer a tantos cristãos”. Outro argumento não menos expressivo é a conveniência de escravizar logo aos índios todos para que não sejam escravizados ilegalmente. Senão vejamos:

[...] se S. A. os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve fazer estender os cristãos pela terra adentro e repartir-lhes os serviços dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhorear, como se faz em outras partes de terras novas [...].

Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver

escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa e terão serviço e avassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor

ganhará muitas almas e S. A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata. [...]

Este parece também o melhor meio para a terra se povoar de cristãos e seria melhor que mandar povoadores pobres, como vieram alguns e por não trazerem com que mercassem um escravo com que começassem sua vida não se puderam manter e assim foram forçados a se tornar ou morrerem de bichos e parece melhor mandar gente que senhoreie a terra e folgue de aceitar nela

qualquer boa maneira de vida, como fizeram alguns dos que vieram com Tomé de Souza [...].

Devia de haver um protetor dos índios para os fazer castigar

quando o houvesse mister e defender dos agravos que lhes fizessem.

Este deveria ser bem salariado, escolhido pelos padres e aprovado pelo governador. Se o governador fosse zeloso bastaria ao presente.

A lei, que lhes hão de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes padres da Companhia para os doutrinarem

(Apontamentos de coisas do Brasil, 8 de maio de 1558 in Leite 1940:75-87).

Tal foi o alto plano jesuítico que regeu e ordenou a colonização. Um somatório de violência mortal, de

intolerância, prepotência e ganância. Todas as qualidades mais vis se conjugaram para compor o programa civilizador de Nóbrega. Aplicado a ferro e fogo por Mem de Sá, esse programa levou o desespero e a destruição a cerca de trezentas aldeias indígenas na costa brasileira do século XVI.

O balanço dessa hecatombe nos é dado pelo próprio Anchieta nestas palavras:

A gente que de vinte anos a esta parte é gastada nesta bahia, parece cousa que não se pode crer, porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca.

Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros da Guiné e muito poucos da terra e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu (Informação dos primeiros

aldeamentos da Baía, circa 1587 in Anchieta 1933:377-8).

Sem embargo, mais ainda que as espadas e os arcabuzes, as grandes armas da conquista, responsáveis principais pela depopulação do Brasil, foram as enfermidades

desconhecidas dos índios com que os invasores os contaminaram. A magnitude desse fator letal pode ser

avaliada pelo registro dos efeitos da primeira epidemia que atingiu a Bahia. Cerca de 40 mil índios reunidos

insensatamente pelos jesuítas nas aldeias do Recôncavo, em meados do século XVI, atacados de varíola, morreram quase todos, deixando os 3 mil sobreviventes tão

enfraquecidos que foi impossível reconstituir a missão. Os próprios sacerdotes operavam muitas vezes como

contaminadores involuntários, como testemunham suas próprias cartas. Em algumas delas comentam o alívio que lhes trazia ao “mal do peito” os bons ares da terra nova; em outras, relatam como os índios morriam feito moscas,

escarrando sangue, podendo ser salvas apenas suas almas.

Mais bárbaro ainda era o projeto oposto, igualmente defendido no plano ideológico e muito mais eficaz no campo prático. A melhor expressão dele se deveu a

Domingos Jorge Velho em carta a el-rei, datada de 1694, em que o grande capitão dos mamelucos paulistas declara, soberbo, de seus combatentes, que “não é gente

matriculada nos livros de Vossa Majestade, não recebem soldo, nem ajuda de pano, ou munição. São umas

agregações que fazemos, alguns de nós, entrando cada um com seus servos de armas que têm”. Acrescenta que não vão ao mato cativar índios, como alguns “pretendem fazer crer a Vossa Majestade”, para civilizar selvagens. Vão, com suas próprias palavras, “adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne humana, para o reduzir para o

conhecimento da urbana humanidade e humana

sociedade”. Alega, ainda, que “em vão trabalha quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens” (Carta a el-rei do outeiro do Barriga, de 15 de julho de 1694 in Ennes 1938:204-7).

Em poucas décadas desapareceram as povoações

indígenas que as caravelas do descobrimento encontraram por toda a costa brasileira e os primeiros cronistas

contemplaram maravilhados. Em seu lugar haviam se instalado três tipos novos de povoações. O primeiro e principal, formado pelas concentrações de escravos africanos dos engenhos e portos. Outro, disperso pelos vilarejos e sítios da costa ou pelos campos de criação de gado, formado principalmente por mamelucos e brancos pobres. O terceiro esteve constituído pelos índios

incorporados à empresa colonial como escravos de outros núcleos ou concentrados nas aldeias, algumas das quais conservavam sua autonomia, enquanto outras eram regidas por missionários.

Apesar de o projeto jesuítico de colonização do Brasil nascente ter sido formulado sem qualquer escrúpulo

humanitário, tal foi a ferocidade da colonização leiga que

estalou, algumas décadas depois, um sério conflito entre os padres da Companhia e os povoadores dos núcleos agrário- mercantis. Para os primeiros, os índios, então em declínio e ameaçados de extinção, passaram a ser criaturas de Deus e donos originais da terra, com direito a sobreviver se

abandonassem suas heresias para se incorporarem ao rebanho da Igreja, na qualidade de operários da empresa colonial recolhidos às missões. Para os colonos, os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de bicho que de gente, só os recomendava à escravidão.

A Coroa portuguesa apoiou nominalmente os

missionários, embora jamais negasse autorização para as

“guerras justas”, reclamadas pelo colono para aprisionar e escravizar tanto os índios bravos e hostis como os

simplesmente arredios. Quase sempre fez vista grossa à escravidão indígena, que desse modo se tornou inevitável, dado o caráter da própria empresa colonial, especialmente nas áreas pobres. Impedidos de comprar escravos negros, porque eram caros demais, os colonos de São Paulo e

outras regiões se viram na contingência de se servir dos silvícolas, ou de ter como seu principal negócio a preia e venda de índios para quem requeresse seu trabalho nas tarefas de subsistência, que por longo tempo estiveram a cargo deles.

Em diversas regiões – mas sobretudo em São Paulo, no Maranhão e no Amazonas – foram grandes os conflitos entre jesuítas e colonos, defendendo, cada qual, sua

solução relativa aos aborígenes: a redução missionária ou a escravidão. A curto ou longo prazo, triunfaram os colonos, que usaram os índios como guias, remadores, lenhadores,

caçadores e pescadores, criados domésticos, artesãos; e sobretudo as índias, como os ventres nos quais

engendraram uma vasta prole mestiça, que viria a ser, depois, o grosso da gente da terra: os brasileiros.

Quase todas as ordens religiosas aceitaram, sem

resistência, o papel de amansadoras de índios para a sua incorporação na força de trabalho ou nas expedições armadas da colônia. Os jesuítas, porém, arrependidos de seu papel inicial de aliciadores de índios para os colonos, inspirados na experiência dos seus companheiros

paraguaios, quiseram pôr em prática, também no Brasil, um projeto utópico de reconstrução intencional da vida social dos índios destribalizados. Tais foram suas missões, nas quais os índios eram concentrados – depois de atraídos pelos padres ou subjugados pelo braço secular – em

comunidades ferreamente organizadas como economias autossuficientes, ainda que também tivessem alguma produção mercantil. Isso se daria na segunda onda de evangelização, realizada na Amazônia.

O projeto jesuítico era tão claramente oposto ao colonial que resulta espantoso haver sido tentado simultaneamente e nas mesmas áreas e sob a dominação do mesmo reino. Os conflitos resultantes das disputas pelo domínio dos índios não permitiram que as missões jesuíticas alcançassem, em terras brasileiras, a dimensão, quanto ao número de

indígenas reunidos, nem o nível de organização e

prosperidade que a Companhia de Jesus conquistou no Paraguai.

Contribuem para esse fracasso duas ordens de fatores.

Primeiro, a referida oposição frontal dos povoadores

portugueses a um projeto que lhes disputava a mão de obra indígena, e que era realizado nas mesmas áreas que eles ocupavam. Segundo, as enfermidades trazidas pelo branco que, ao propagarem-se nas grandes concentrações

humanas das missões, provocavam enorme mortandade.

Depois de algumas décadas, os jesuítas reconheceram que, além de não conseguirem salvar as almas dos índios pelo evidente fracasso da conversão – o que, de resto, não era grave, porque “o despertar da fé é tarefa de Deus”, não do missionário (Nóbrega, apud Dourado 1958:44) –, também não salvavam suas vidas. Ao contrário. Era evidente o

despovoamento de toda a costa e, vistos os fatos agora, não se pode deixar de reconhecer, também, que os próprios jesuítas foram um dos principais fatores de extermínio.

Esse foi, de fato, o papel que eles representaram,

enquanto diplomatas-pacificadores, postos em ação sempre que os índios pudessem ganhar uma batalha. Tal ocorreu em Peruíbe, quando Anchieta, fazendo-se passar por um milagroso paí, corria de um lado a outro tentando dissuadir os índios de atacar os portugueses, que, atacados naquele momento, poderiam ter sido vencidos. De fato, se atribui a ele, com toda razão – a ele e a Nóbrega –, haverem salvo, naquela ocasião, a São Paulo e a própria colonização

portuguesa.

Também foi evidentemente nefasto o papel dos jesuítas, retirando os índios de suas aldeias dispersas para

concentrá-los nas reduções, onde, além de servirem aos padres e não a si mesmos e de morrerem nas guerras dos portugueses contra os índios hostis, eram facilmente

vitimados pelas pragas de que eles próprios, sem querer, os

contaminavam. É evidente que nos dois casos o propósito explícito dos jesuítas não era destruir os índios, mas o

resultado de sua política não podia ser mais letal se tivesse sido programada para isso.

A atuação mais negativa dos jesuítas, porém, se funda na própria ambiguidade de sua dupla lealdade frente aos

índios e à Coroa, mais predispostos, porém, a servir a esta Coroa contra índios aguerridos que a defendê-los

eficazmente diante dela. Isso sobretudo no primeiro século, quando sua função principal foi minar as lealdades étnicas dos índios, apelando fortemente para o seu espírito

religioso, a fim de fazer com que se desgarrassem das

tribos e se atrelassem às missões. A eficácia que alcançam nesse papel alienador é tão extraordinária quanto grande a sua responsabilidade na dizimação que dela resultou.

No segundo século, já enriquecidos de seu triste papel e também representados por figuras mais capazes de indignação moral, como Antônio Vieira, os jesuítas assumiram grandes riscos no resguardo e na defesa dos índios. Foram, por isso, expulsos, primeiro, de São Paulo e, depois, do estado do Maranhão e Grão-Pará pelos colonos.

Afinal, a própria Coroa, na pessoa do marquês de Pombal, decide acabar com aquela experiência socialista precoce, expulsando-os do Brasil. Então, ocorre o mais triste. Os padres entregam obedientemente as missões aos colonos ricos, contemplados com a propriedade das terras e dos índios pela gente de Pombal, e são presos e recolhidos à Europa, para amargar por décadas o triste papel de subjugadores que tinham representado.