• Nenhum resultado encontrado

Quisesse ou não, o Brasil era um componente marginal e dependente da civilização agrário-mercantil em vias de se industrializar. Dentro de quaisquer desses tipos de civilização, o fracasso de uma linha de produção exportadora só incitava a descobrir outra linha que, substituindo-a, revitalizasse a economia colonial, fortalecendo, em consequência, a dependência externa e a ordenação oligárquica interna.

entretanto, com o desenvolvimento da economia

açucareira, passam a chegar em grandes levas. A caçada de negros na África, sua travessia e a venda aqui passam a constituir o grande negócio dos europeus, em que imensos capitais foram investidos e que absorveria, no futuro, pelo menos metade do valor do açúcar e, depois, do ouro.

A Coroa permitia a cada senhor de engenho importar até 120 “peças”, mas nunca foi limitado seu direito de comprar negros trazidos aos mercados de escravos. Com base nessa legalidade, os concessionários reais do tráfico negreiro tiveram um dos negócios mais sólidos da colônia, que

duraria três séculos, permitindo-lhes transladar milhões de africanos ao Brasil e, deste modo, absorver a maior parcela de rendimento das empresas açucareiras, auríferas, de

algodão, de tabaco, de cacau e de café, que era o custo da mão de obra escrava. Calcula-se em 160 milhões de libras- ouro o custo pago pela economia brasileira para a

aquisição de escravos africanos nos trezentos anos de tráfico.

O imenso negócio escravista raramente foi objeto de

reservas. Ao contrário, se considerava meritório realizar as caçadas humanas, matando os que resistissem, como um modo de livrar o negro do seu atraso e até como um ato pio de aproximá-los do deus dos brancos.

As primeiras estimativas relativas à quantidade de negros introduzidos no Brasil durante os três séculos de tráfico variam muito. Vão desde números exageradamente altos, como 13,5 milhões para Calógeras (1927) ou 15 milhões para Rocha Pombo (1905), até cálculos muito exíguos,

como 4,6 milhões para Taunay (1941) e 3,3 milhões para Simonsen (1937).

Lamentavelmente, não há estudos demográficos criteriosamente elaborados que permitam substituir avaliações tão desencontradas por um cálculo bem

fundado. Em um estudo de P. Curtin (1969), feito com base nos registros oficiais arquivados na Bahia, foram

consignados 959 600 escravos introduzidos de 1701 a

1760, 931 800 de 1761 a 1810 e, finalmente, 1 145 400 de 1811 a 1860. Quer dizer, um total de 3 036 800, que,

somado aos 180 mil prováveis ingressos anteriores, nos daria um total de 3 216 800. A utilização de dados fiscais, como base dos cômputos, leva a supor que estes se situam muito abaixo da cifra verdadeira. Com efeito, não se levam em conta, na devida proporção, o contrabando e a

ocultação de contingentes escravos para evitar o

pagamento de impostos, o que faz supor que o número real bem possa se aproximar, até, do dobro do assinalado.

Uma estimativa próxima deste número, devida a M.

Buescu (1968), parece mais próxima do número real de escravos introduzidos no Brasil. Partindo do total de escravos geralmente admitido nas fontes primárias para cada século, Buescu aplica a taxa de reposição que supõe ser necessária para manter o volume de população –

sabendo-se que seu crescimento vegetativo era negativo – e agrega taxas adicionais para os períodos em que aumentou a massa escrava. Como resultado de seus cálculos,

considerando uma taxa anual decrescente de reposição, que vai de 5% no século XVI a 2% no século XIX, admite um ingresso global de 75 mil negros para o século XVI, 452 mil

para o xvii, 3 621 000 para o XVIII e 2 204 000 para o século XIX, o que soma um total de 6 352 000 escravos importados de 1540 a 1860. Esses números, de demografia hipotética, não contam com a quantidade geralmente

admitida nas fontes primárias.

A composição da população escrava por sexo e por idade é ainda mais difícil de ser avaliada. Só se conta, por isso, com estimativas vagas e com algumas séries dispersas do número de negros locais que se registraram sobretudo em Minas Gerais. Para o total e para grandes períodos temos de extrapolar, nos contentando com vaguidades.

A proporção geralmente admitida de homens por mulheres na importação é de quatro para um. Alguns

autores, analisando plantéis de escravos africanos, aceitam avaliações como 162% ou 138% de homens em áreas como Pernambuco, para meados do século passado. Dados

colhidos em Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, para o mesmo período, admitem uma população equilibrada de homens e mulheres.

Como teriam chegado aqui tantas mulheres, que as estatísticas dos portos não registram? Tratava-se de

negrinhas roubadas que alcançavam altos preços, às vezes o de dois mulatões, se fossem graciosas. Eram luxos que se davam os senhores e capatazes. Produziram quantidades de mulatas, que viveram melhores destinos nas casas- grandes. Algumas se converteram em mucamas e até se incorporaram às famílias, como amas de leite, tal como Gilberto Freyre descreve gostosamente.

A negra-massa, depois de servir aos senhores, provocando às vezes ciúmes em que as senhoras lhes mandavam

arrancar todos os dentes, caía na vida de trabalho braçal dos engenhos e das minas em igualdade com os homens. Só a essa negra, largada e envelhecida, o negro tinha acesso para produzir crioulos. Foi tentador demais o desejo de montar fazendas de criação de negros para livrar os

empresários das importações. O negócio nunca deu certo.

Os negrinhos, espertíssimos, que ali se criavam,

encontravam modos de ganhar o mundo fazendo-se passar por negros forros, o que tornava o negócio muito oneroso.

Acresce que, o moleque que não entrasse no duro trabalho do canavial muito novinho, doze anos presumivelmente, jamais se adaptaria à dureza desse trabalho.

Um parente meu guardou a carta de um capataz que calcula bem as vantagens relativas de usar negros cativos ou importados, optando francamente por estes últimos como os mais rentáveis:

Dispende-se mais com estes inúteis escravos para seu vestuário, uns pelos outros, dois covados de baeta, e seis varas de pano de algodão que não importa menos de 2$200 cada um, e todos, 290$400,

perfazendo o sustento, e vestuário anual, 3:181$200 réis, além dos curativos das suas doenças, que sempre se gasta mais do que quando gozam saúde.

Esta despesa faz anualmente o engenho com a criação dos

meninos, e com os inválidos, e decrépitos por obrigação da caridade para com uns, e outros, esperando que os meninos de quinze anos para diante sejam trabalhadores, e supram a falta dos africanos.

É sem controvérsia que a metade dos que nascem, morrem até a idade de dez anos, e calculando a despesa de um escravo crioulo até dar serviço, monta 24$600 por ano, que nos quinze anos de criação vem a ficar pela quantia de 369$000 réis, quando um africano desta mesma idade compra-se por 150$000 réis, e eis aqui o crioulo em mais carestia, excedendo ao africano em 219$000 réis.

Outra observação provada pela experiência, que ao duro trabalho dos engenhos resiste mais o escravo africano, do que o crioulo, por ser de constituição menos robusta, e de cinquenta anos para diante não se pode contar em linha de serviços, contando-se aliás o

africano até sessenta e cinco, uns mais, e outros menos, o que não sucede geralmente com os crioulos, mulatos e mestiços (Tópico de

cartas do administrador na Bahia aos senhores da Casa da Ponte em Lisboa – “Engenho da Matta, janeiro de 1818. Desconto dos

escravos incapazes do agreste trabalho do engenho” in Ribeiro Pires 1979:298).

III – PROCESSO

No documento O Povo Brasileiro by Darcy Ribeiro (z-lib.org) (páginas 186-193)