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3. O processo civilizatório

tecnológica, a mercantil, que deu acesso ao ultramar.

Tecnologia gerada no mundo árabe e no mundo oriental, mas acolhida e concatenada primeiro pelos portugueses.

Os iberos, num primeiro movimento, se livraram da secular ocupação árabe e expulsaram seu contingente

judeu, assumindo inteiro comando de seu território através de um poder centralizado que não deixava espaço para qualquer autonomia feudal ou qualquer monopólio

comercial.

Num segundo movimento, se expandiram pelos mares, lançando-se em guerras de conquista, de saqueio e de evangelização sobre os povos da África, da Ásia e,

principalmente, das Américas. Estabeleceram, assim, os fundamentos do primeiro sistema econômico mundial, interrompendo o desenvolvimento autônomo das grandes civilizações americanas. Exterminaram, simultaneamente, milhares de povos que antes viviam em prosperidade e alegria, espalhados por toda a terra com suas línguas e com suas culturas originais.

Ao mesmo tempo, se plasmam a si mesmas como novas formações socioeconômicas e como novas configurações histórico-culturais, que cobrem áreas e subjugam

populações infinitamente maiores que a europeia (Ribeiro 1970). É no curso dessa autotransformação que as

populações indígenas das Américas, do Brasil inclusive, se veem conscritas, a seu pesar, para as tarefas da civilização nascente. Viabilizando-a na base dos saberes indígenas, que permitiram a adaptação do europeu em outras

latitudes, e provendo largamente a força de trabalho que as inseriu no mercado mundial em formação.

Nações germinais, como Roma no passado, foram os iberos, os ingleses e os russos no mundo moderno. Cada um deles deu origem a uma variante ponderável da

humanidade – a latino-americana, a neobritânica e a eslava –, criando gentes tão homogêneas entre si, como

diferenciadas de todas as demais. Estranhamente, a

Alemanha, a França e a Itália, tão realizadas e plenas como ramos da civilização ocidental, não foram germinais.

Fechadas em si, feudalizadas, ocupadas em dissensões com suas variantes internas, elas não se organizaram como

Estados nacionais nem exerceram papel seminal.

Os eslavos, simultaneamente, se expandiram pelas suas estepes e tundras e foram ter no Alasca. Mas, contidos pelo esclerosamento de sua sociedade arcaica, rigidamente

estratificada, refrearam seu elã de conquistar novos mundos.

Os ingleses se expandiram como operosos granjeiros puritanos ou como uma burguesia industrial e negocista, que calculava bem cada um dos seus lances. Empenhados em outro gênero de colonização, sua tarefa era a de

transplantar sua paisagem mundo afora, recriando

pequenas Inglaterras, desatentos ou indiferentes ao que havia aonde chegaram. Negando-se a ver e a entender as vetustas razões e justificações do Vaticano, propõem-se simplesmente conquistar seu naco do bolo americano.

Quando menos fosse para lá derramar excedentes da humanidade famélica de seus próprios reinos, dando-lhes novas pátrias por fazer. Alcançaram, também, primeiro pelas mãos de piratas, de corsários, de contrabandistas, quanto puderam tomar do ouro que os ilhéus carreavam

para o Velho Mundo. Depois, pelo mecanismo de

intercâmbio mercantil, se apossaram de parcelas ainda maiores dessas riquezas.

Mais tarde, se instalaram em áreas ao norte do continente como colônias de povoamento. Vizinhos das ilhas

caribenhas e de suas ricas plantações escravistas de cana, eles eram os pobres e atrasados. Só floresceram,

lentamente, aurindo substância do comércio de alimentos e artefatos com os senhores de escravos das ilhas,

produzindo as mercadorias dos pobres.

Os iberos, ao contrário, se lançaram à aventura no além- mar, abrindo novos mundos, atiçados pelo fervor mais fanático, pela violência mais desenfreada, em busca de riquezas a saquear ou de fazer produzir pela escravaria.

Certos de que eram novos cruzados cumprindo uma missão salvacionista de colocar o mundo inteiro sob a regência católico-romana. Desembarcavam sempre desabusados, acesos e atentos aos mundos novos, querendo fluí-los,

recriá-los, convertê-los e mesclar-se racialmente com eles.

Multiplicaram-se, em consequência, prodigiosamente, fecundando ventres nativos e criando novos gêneros humanos.

Como se viu, a causa primeira da expansão ultramarina, e, portanto, dos descobrimentos, fora a precoce unificação nacional de Portugal e da Espanha, movidos por toda uma revolução tecnológica que lhes deu acesso ao mundo

inteiro com suas naus armadas, gestando uma nova

civilização. Libertos da ocupação sarracena, descansados da exploração judaica, dirimidos dos poderios locais da

nobreza feudal, emergia em cada área um Estado nacional.

Foram os primeiros do mundo moderno.

Surgem, assim, entidades capazes de grandes empresas, como os descobrimentos e o enriquecimento aurido no além-mar, bem como sua implantação em império com hegemonia sobre a América, a Ásia e a África. Seu poderio cresce tanto que a certa altura a Espanha se propõe

exercer sua soberania também sobre a Europa. Portugal se vê compelido a aliar-se à Inglaterra, para manter sua

independência.

Nesses conflitos de amplitude mundial, a Ibéria se debilita tanto que acaba por sucumbir como cabeça do Império

mundial sonhado tantas vezes. Sucumbe, porém, é lá nos conflitos com seus pares. Cá, nos novos mundos, seus semens continuam fecundando prodigiosamente a mestiçagem americana; sua língua e sua cultura

prosseguem expandindo-se. Nesse passo, se enriquecem para constituir, afinal, uma das províncias mais amplas, mais ricas e a mais homogênea da terra, a América Latina.

A Inglaterra, que foi a terceira nação a estruturar-se,

assentada nos capitais e nos saberes judaicos que acolheu, acaba por apossar-se da outra metade das Américas, sobre a qual se expandira como uma segunda macroetnia,

imensamente homogênea e neobritânica.

As dimensões desses domínios eram as do orbe que

acabavam de ocupar. Sua heterogeneidade étnica original, ao contrário, era sem paralelo na história humana. Só foi rompida e refundida através do esforço continuado de séculos, anulando qualquer veleidade étnica ou qualquer direito de autodeterminação dos povos avassalados.

Assim é que a Ibéria e a Grã-Bretanha, tão recheadas de duras resistências dos povos que englobam em seus

territórios, que jamais conseguiram digerir, aqui deglutem e dissolvem quase tudo. Onde se deparam com altas

civilizações, seus povos são sangrados, contaminados,

decapitados de suas chefaturas, para serem convertidos em mera energia animal para o trabalho servil. Essa gente

desfeita só consegue guardar no peito o sentimento de si mesma, como um povo em si, a língua de seus

antepassados e reverberações da antiga grandeza.

No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as

mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo-nação, aqui plasmado

principalmente pela mestiçagem, que se multiplica

prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, de

simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si mesmos.

Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e

matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias

incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.

Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma,

exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superarmada e a tudo predisposta para manter o povo gemendo e

produzindo. Não o que querem e precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem, indiferentes a seu destino.

Não alcançam, aqui, nem mesmo a façanha menor de gerar uma prosperidade generalizável à massa trabalhadora, tal como se conseguiu, sob os mesmos regimes, em outras áreas. Menos êxito teve, ainda, em seus esforços por integrar-se na civilização industrial. Hoje, seu desígnio é forçar-nos à marginalidade na civilização que está emergindo.