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teólogos, que começaram a se chocar com algumas novas, impensáveis até então.

Aqueles índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também tão semelhantes, seriam eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus, à sua imagem e semelhança?

Caíram na impiedade. Teriam salvação? Ficou logo evidente que eles careciam, mesmo, é de um rigoroso banho de

lixívia em suas almas sujas de tanta abominação, como a antropofagia de comer seus inimigos em banquetes

selvagens; a ruindade com que eram manipulados pelo demônio através de seus feiticeiros; a luxúria com que se amavam com a naturalidade de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada de qualquer produção

mercantil.

Essa curiosidade floresceu, logo, numa teologia bárbara, em que os tratados de frei Francisco de Vitória, Nóbrega e, depois, os de Vieira e tantos outros, compunham eruditos discursos em que os índios contracenavam com razões teológicas, evangélicas, apostólicas, providenciais,

cataclísmicas e escatológicas. Assim é que se foi compondo um discurso cada vez mais racional e cada vez mais insano, frente à realidade do que sucedeu aos índios: esmagados e escravizados pelo colonizador, cego e surdo a razões que não fossem as do haver e do dever pecuniários.

Apesar dessas cruas evidências, uns santos homens, em sua alienação iluminada, continuaram crendo que

cumpriam uma destinação cristã de construtores do reino de Deus no Novo Mundo, de soldados apostólicos da

cristandade universal. Logo compuseram uma teologia

alucinada e messiânica que via na expansão ibérica, com a sucessiva descoberta de dilatadas terras ignotas e de

incontáveis povos pagãos, uma missão divina que se

cumpria passo a passo. Tordesilhas, nesse contexto, teria sido uma visão profética sobre a destinação ibérica de

evangelização para criar uma Igreja, por fim, efetivamente universal.

Esses discursos respondiam a uma necessidade

igualmente imperativa. A de atribuir alguma dignidade formal à guerra de extermínio que se levava adiante, à brutalidade da conquista, à perversidade da eliminação de tantos povos. O império ibérico, sagrando-se sobre o Novo Mundo, se tingia com as tintas de Roma. Prometia que, à torpeza índia, faria suceder a prudência e a piedade cristãs, até converter os infiéis servos do demônio em cristãos,

tementes do pecado e da perdição, adoradores do verdadeiro Deus.

O europeu que, forçando a tradição bíblica, fizera do deus dos hebreus o rei dos homens, agora tinha de incluir aquela indianidade pagã na humanidade do passado, entre os

filhos de Eva expulsos do Paraíso, e do futuro, entre os destinados à redenção eterna. A polêmica sobre esse tema se acendeu por toda a parte, discutindo vivamente o que se podia debitar e creditar a eles da tradição vetusta. O

dilúvio ocorreu também para o Novo Mundo, com Noé e seus bichos? Que pastores evangélicos tiveram a seu cargo levar para lá a palavra de Deus? Por que fracassaram em sua missão evangélica os companheiros de Cristo? Ou também os índios eram culpados do pecado original? O próximo Messias irá salvar a eles também? Os cataclismos

apocalípticos e o Juízo Final valerão para os índios, como para os brancos? Poderia, acaso, o anunciado Filho de Deus, nascer índio entre eles?

De todo o debate, só reluzia, clara como o sol, para a cúpula real e para a Igreja, a missão salvacionista que cumpria à cristandade exercer, a ferro e fogo, se preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e da Igreja. Esse era um mandato imperativo no plano

espiritual. Uma destinação expressa, uma missão a cargo da Coroa, cujo direito de avassalar os índios, colonizar e fluir as riquezas da terra nova decorria do sagrado dever de salvá-los pela evangelização.

Na ordem secular, a legitimidade da hegemonia europeia se estabeleceu soberana. Na ordem divina, os jesuítas e os franciscanos pretenderam, porém, afiançar que estavam destinados a criar repúblicas pias e seráficas de santos homens com os índios recém-descobertos, a fim de que, como prescrevia o Livro dos Atos, todos os que creem vivessem unidos, tendo todos os bens em comum.

Configuram-se, assim, duas destinações cruamente opostas, desfrutando, cada qual, o predomínio na

dominação do Novo Mundo. De um lado, a dos colonos, à frente dos seus negócios. Do outro lado, a dos religiosos, à frente de suas missões. Em princípio, em terra tão vasta, trabalhando cada qual em sua província, puderam crescer paralelamente, mas logo o contraste se converteu em

conflito aberto. Os colonos, trabalhando para reproduzir aqui um sadio mundo mercantil, movidos por suas cobiças e usuras. Os frades, fazendo ressoar no Novo Mundo

antigas heresias joaquimitas. Como a do infante d.

Henrique, com sua pregação de que, uma vez que era

passado o tempo do Pai – de que rege o Velho Testamento – e também o do Filho – de que trata o Novo Testamento –, era chegada a Era do Espírito Santo, que instalará o

milênio do amor e da alegria neste mundo, com os índios conversos e convertidos em louvadores da glória de Deus.

A história faria prevalecer o plano oposto, obrigando os próprios evangelizadores a cumprir o projeto colonial através da guerra genocida contra todos os índios e da ação missionária, a seu pesar, etnocida.

Nas tarefas da conversão do gentio e sua integração na cristandade, foram soldados principais o jesuíta, o

franciscano e o carmelita. Os inacianos, inspirando, apoiando, incentivando o braço secular para que,

guerreando e avassalando, pusessem os índios, humilhados, a seus pés dentro das missões. Ali, aparentemente, eles iam viver vidas de índios humildes, contritamente. Na verdade, eles estavam inventando para os índios uma vida nova, triste vida de catecúmenos, suportável apenas diante da alternativa que era caírem cativos nas mãos do colono.

Assim, foram edificando, dia a dia, ano a ano, a Cidade Cristã, virtuosa e operativa, impensável no Velho Mundo, mas factível aqui com o barro dócil que eram os índios.

Inocentes, simples e puros, sobretudo as crianças, ainda com dentes de leite, como dizia Gilberto Freyre. Acabou ficando claro, para eles, que nada se podia esperar da Europa, corrompida e corrupta. A esperança única de salvação possível para ela seria o Apocalipse. No Novo Mundo, ao contrário, eles viam confirmar, a cada dia, suas esperanças de concretizar as profecias bíblicas.

A tarefa a que os missionários se propunham não era transplantar os modos europeus de ser e de viver para o Novo Mundo. Era, ao contrário, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária, orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas. Essa utopia socialista e seráfica floresce nas Américas,

recorrendo às tradições do cristianismo primitivo e às mais generosas profecias messiânicas. Ela se funda, por igual, no pasmo dos missionários diante da inocência adâmica e do solidarismo edênico que se capacitaram a ver nos índios, à medida que com eles conviviam.

Os místicos franciscanos que se viam à frente do sistema de castas de índios remanescentes das civilizações pré- colombianas avançam, recrutando-os para converter

pirâmides pagãs em templos cristãos suntuosos, para maior glória de Deus. Sonham ordenar a vida indígena segundo as regras da Utopia, de Morus, inspirados anacronicamente na indianidade original. Acreditaram, mesmo, que era

possível abrir essa alternativa para a conquista, fazendo da expansão europeia a universalização da cristandade.

Encarnada nos corpos indígenas, a cristandade ingressaria no Milênio Joaquimita, em que a felicidade se alcançaria neste mundo. No Brasil, os jesuítas foram adiante no mesmo caminho, reinventando a história.

Essas utopias se opunham tão cruamente ao projeto colonial que a guerra se instalou prontamente entre

colonos e sacerdotes. De um lado, o colono, querendo pôr os braços índios a produzir o que os enricasse, ajudados por mundanos curas regulares dispostos a sacramentar a

cidade terrena, dando a Deus o que é de Deus e ao rei o que ele reclamava. Foi um desastre, mesmo onde as

missões se implantaram produtivas e até rentáveis para a própria Coroa – como ocorreu com as dos Sete Povos, no sul, e ao norte, na missão tardia da Amazônia – prevaleceu a vontade do colono, que via nos índios a força de trabalho de que necessitava para prosperar.

O espantoso para quem medita hoje esse drama é o vigor da fé missionária daqueles santos homens, que chegaram até à subversão na luta por seu ideal. Depois de transigir sem limites, interpretando em tom transcendental a

conquista como mal necessário, a porta da estrada que se abriria ao caminho da fé pelo flagelo, caíram em si e

começaram a ver seu próprio papel conivente.

Durante décadas não disseram nenhuma palavra de piedade pelos milhares de índios mortos, pelas aldeias incendiadas, pelas crianças, pelas mulheres e homens

escravizados, aos milhões. Tudo isso eles viram silentes. Ou até mesmo, como Anchieta, cantando essas façanhas em milhares de versos servis. Para eles, toda aquela dor era dor necessária para colorir as faces da aurora, que eles viam amanhecendo. Só tardiamente caíram em si, vendo-se vencidos primeiro na evangelização, depois na reclusão dos índios nas missões. Entretanto, nenhum desastre histórico, nenhum projeto utópico anterior teve tal altitude, porque nenhuma esperança até então fora tão alentadora e pudera ser levada tão adiante, a demonstrar a factibilidade de

reconstruir intencionalmente a sociedade segundo um projeto.

A utopia jesuítica esboroou e os inacianos foram expulsos das Américas, entregando, inermes, desvirilizados, os seus catecúmenos ao sacrifício e à escravidão na mão possessa dos colonos. O mesmo aconteceu com o sonho mirífico dos franciscanos, reduzido à visão do que era a boçalidade do mundo colonial, ínvio, ímpio e bruto.

É de perguntar, aqui, se não foi o próprio êxito que levou os projetos utópicos de jesuítas e de franciscanos ao

fracasso. Vendo a incompatibilidade insanável entre eles e os colonos e, por extensão, entre o projeto missionário e o real, se afastaram para criar sua própria província

europeia. Queriam dar à expansão ibérica a alternativa freiral de restauração de uma indianidade cristianizada, que falaria as línguas indígenas e só teria fidelidade a si mesma. Entre as duas proposições, não havia dúvida

possível. As Coroas optaram, ambas, pelo projeto colonial.

Os místicos haviam cumprido já a sua função de dignificar a ação conquistadora. Agora, deviam dar lugar aos homens práticos, que assentariam e consolidariam as bases do

império maior que jamais se viu. Em lugar de sacros reinos pios, sob reis missionários a serviço da Igreja e de Deus, os reis de Espanha e de Portugal queriam é o reino deste

mundo.

3. O processo civilizatório