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lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação, nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

moravam, pelo que comiam, por sua visão do mundo e pelo idioma que falavam. Tal indianidade era, sem dúvida, mais aparente que real, porque o apelo às formas indígenas de adaptação à natureza, a sobrevivência das antigas

tradições, o próprio uso da língua indígena, estavam

postos, agora, a serviço de uma entidade nova, muito mais capaz de crescer e expandir-se. Conforme assinalamos, enquanto o aumento da população indígena só conduzia à partição das tribos em microetnias tendentes a diferenciar- se, independentizar-se e dispersar-se, as novas

comunidades constituíam unidades operativas capazes de crescer conjugadamente na forma de uma macroetnia.

O idioma tupi foi a língua materna de uso corrente desses neobrasileiros até meados do século XVII. De fato, o tupi, inicialmente, se expandiu mais que o português como a língua da civilização (sobre a formação e a difusão da língua geral ver Cortesão 1958 e Holanda 1945). Com

efeito, a língua geral, o nheengatu, que surge no século XVI do esforço de falar o tupi com boca de português, se

difunde rapidamente como a fala principal tanto dos núcleos neobrasileiros como dos núcleos missionários.

Cumpre, primeiro, a função de língua de comunicação dos europeus com os Tupinambá de toda a costa brasileira,

logo após o descobrimento. Depois, a de língua materna dos mamelucos da Bahia, Pernambuco, Maranhão e São Paulo. Mais tarde, se expande juntamente com a população, como língua corrente tanto das reduções e vilas que os

missionários e os colonos fundaram no vale amazônico, como dos núcleos gaúchos que se fixaram no extremo sul, frente aos povoadores espanhóis. É de notar que, sendo a

língua geral uma variante muito pouco diferenciada do guarani falado naqueles séculos, tanto em território paraguaio onde se converte em língua materna como no que viria a ser a Argentina e o Uruguai de hoje, estamos, como se vê, frente a uma enorme área linguística tupi- guarani. Seguramente, a mais ampla das áreas linguísticas americanas.

Assim era já antes da chegada do europeu, uma vez que tribos do tronco tupi ocupavam quase todo o litoral

atlântico do Brasil atual e subiam, terra adentro, pelo sistema fluvial do Prata, ocupando vastas regiões do vale do Amazonas. Esta área linguística corresponde, grosso modo, aos territórios atuais do Brasil, do Paraguai e do Uruguai. Essa é a que os neobrasileiros fizeram sua,

falando tupi para se comunicar com as tribos que ali viviam e a que eles sucederiam ecologicamente no mesmo espaço.

A substituição da língua geral pela portuguesa como língua materna dos brasileiros só se completaria no curso do século XVIII. Mas desde antes vinha se efetuando, de maneira mais rápida e radical onde a economia era mais dinâmica e, em consequência, era maior a concentração de escravos negros e de povoadores portugueses; e, mais

lentamente, nas áreas economicamente marginais, como a Amazônia e o extremo sul. No rio Negro, até o século XX, se falava a língua geral, apesar de que os Tupi jamais

tivessem chegado ao norte do Amazonas. Introduzido como língua civilizadora pelos jesuítas, o nheengatu permaneceu, depois da expulsão deles, como a fala comum da população brasileira local e subsistiu como língua predominante até 1940 (Censo Nacional 1940).

No Sul, a presença de uma vasta área guaranítica na bacia do Prata se comprova, de um lado, pela toponímia predominantemente guarani das zonas de antiga ocupação do Uruguai e da Argentina, e, de outro lado, pela presença atual do guarani como a língua vernácula do Paraguai.

O mesmo processo de sucessão ocorre com a tecnologia produtiva. Inicialmente quase só indígena, ela vai sendo substituída, com o passar dos séculos, por técnicas

europeias, tanto mais rapidamente quanto mais completamente se integra cada zona na economia mercantil e se moderniza. Ainda assim, ao longo dos

séculos, a tecnologia do Brasil rústico foi e continua sendo basicamente indígena, no que diz respeito à subsistência – baseada no cultivo e no preparo da mandioca, do milho, da abóbora e das batatas, e de muitas outras plantas – bem como às técnicas indígenas de caça e de pesca.

Essa base tecnológica indígena, desde o primeiro momento, vem sendo enriquecida por contribuições europeias que, pouco a pouco, aumentaram a sua

produtividade. Tal era o caso dos instrumentos de ferro – machados, facas, facões, foices, enxadas, anzóis –; das armas de fogo para a caça e para a guerra; de aparelhos mecânicos, como a prensa, que às vezes substituiu o tipiti indígena trançado de palha; do monjolo, grande morteiro de água com que se pila o milho; das moendas de espremer cana; da roda hidráulica, do carro de boi, da roda do oleiro, do tear composto, do descaroçador de algodão e, ainda, dos tachos e panelas de metal, que substituíam o torrador de cerâmica para o tratamento da farinha de mandioca; e, por fim, dos animais domésticos – galinhas, porcos, bois,

cavalos –, utilizados para a alimentação, caça, transporte e tração.

As casas dos novos núcleos se reduzem enormemente de dimensão em relação às malocas indígenas porque, em lugar de acolherem famílias extensas, abrigando centenas de pessoas, agora acolhem famílias menores ou a

escravaria. Melhora, porém, a técnica de edificação com o emprego da taipa e do adobe cru na construção das casas mais humildes, e de tijolos, pedras, cal e telhas para as senhoriais. Simultaneamente, as residências da gente mais rica se engalanam com um mobiliário mais elaborado,

deslocando as redes de dormir para dar lugar a catres; as cestas trançadas, substituídas por canastras de couro ou arcas de madeira; a que, mais tarde, se somariam mesas, bancos, armários e oratórios. A tudo isso se acrescentam, logo, as técnicas de preparo e de uso do sal e do sabão, da aguardente, das lâmpadas de azeite, dos couros curtidos, de novos remédios, de sandálias e de chapéus.

Os principais elementos aglutinadores dos novos núcleos são um comando administrativo e político, representado localmente pelas autoridades seculares e eclesiásticas, e uma gerência socioeconômica a cargo do empresário de produtores e comerciantes. A unidade de comando dessa estrutura do poder permitiu às comunidades nascentes crescerem e se diferenciarem, cada vez mais, num

componente rural e outro urbano. O primeiro assentado principalmente nas fazendas, sob o mando de seus

proprietários, mas trabalhadas por escravos negros ocupados na produção mercantil e por gente nascida na terra; estes últimos devotados a funções administrativas e

de defesa e à produção de alimentos. O segundo era

constituído pela parcela urbanizada da população, regida por capitães e prelados, e ativado por trabalhadores

braçais, artesãos, comerciantes, funcionários e sacerdotes.

Sua função era administrar o empreendimento colonial, conformá-lo como possessão portuguesa, plasmá-lo dentro dos cânones da cultura lusitana e totalmente fiel à Igreja católica apostólica e romana.

No conjunto dessa população colonial, destaca-se prontamente uma camada superior, desligada das tarefas produtivas, formada por três setores letrados, participantes de certos conteúdos eruditos da cultura lusitana. Tais eram:

uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia as funções de governo civil e militar; outra religiosa, que cumpria o papel de aparato de indoutrinação e catequese dos índios e de controle ideológico da população, sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava a economia de exportação, representada por agentes de casas financeiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portos europeus importadores de artigos tropicais. Esses três setores, mais seus corpos de pessoal auxiliar, instalados nos portos, constituíram o comando da estrutura global.

Compunha um componente urbano de montante tão ponderável quanto o das sociedades europeias da época;

formadas, elas também, por populações majoritariamente rurais. Era, de fato, uma subestrutura da rede metropolitana europeia, menos independente que seus demais componentes, porque estava intermediada por Lisboa.

No documento O Povo Brasileiro by Darcy Ribeiro (z-lib.org) (páginas 140-146)