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O ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL E AMÉRICA LATINA

No documento CUSTEIO POR ABSORÇÃO Franciele Duarte (páginas 106-109)

No Brasil, há estudos e pesquisas indicando que somente 30% da população brasileira têm acesso aos órgãos e instrumentos da justiça pública estatal2. Esta realidade não é muito diferente nos demais países latino-americanos. O dado, portanto, evidencia o baixo nível de conhecimento dos direitos de os cidadãos e as cidadãs são portadores, como também a falta de efetividade do Estado, por seus órgãos institucionais, quanto à democratização dos mecanismos de acesso à justiça.

Em outras palavras, podemos dizer que tal conjuntura demonstra o quanto o respeito ao princípio da justicialidade, ao lado dos princípios da igualdade formal e da legalidade informam o Estado de Direito, está comprometido no Estado brasileiro.

Na América latina, conforme a análise de Massula (2005: 141), alguns pontos devem ser considerados chaves no processo de obstaculização do acesso à justiça:

(i) Desconhecimento: existe um desconhecimento real por parte da população acerca dos seus direitos. Muito embora o ordenamento jurídico brasileiro impeça a alegação de desconhecimento de obrigação decorrente da lei, para eximir-se do seu cumprimento, esse desconhecimento existe e acaba por obstaculizar o acesso à justiça, uma vez que não é possível pleitear algo que se desconhece.

2 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Diagnóstico da estrutura e funcionamento dos Juizados Especiais Federais. Brasília: CJF, 2003.

(ii) Descrença: o complicado aparato judicial, seus prazos e formalidades aliados ao número cada vez maior de processos – incompatível com os recursos disponíveis para solução – e a demora cada vez maior para a obtenção de uma determinação judicial, produzem a sensação de que a justiça não é eficiente e que a prestação jurisdicional não é adequada às expectativas dos sujeitos.

(iii) Direito ou serviço? O número insuficiente de defensores públicos à disposição daqueles que não podem arcar com honorários aliado à desproporção entre a demanda e a oferta de juízes e servidores são problemas estruturais que fazem parte da atualidade do sistema jurídico-legal. Somam-se a esses o problema o transporte público deficitário e a insuficiência de programas sociais voltados para a erradicação da pobreza, entre outros fatores. Desta forma, uma vez que o Estado não consegue garantir o direito ao pleno acesso à justiça a quem não pode pagar por ela, restringe-se cada dia mais a justiça para aqueles que dispõem de insumos para pagar, voltando-se apenas aos sujeitos qualificados como consumidores.

(iv) Distanciamento: Em um país com as dimensões do Brasil é evidente a dificuldade em abranger a totalidade do território e da população garantindo-se seu acesso físico à justiça. Por outro lado, há que se considerar também o distanciamento institucional do Judiciário. A arquitetura dos fóruns e tribunais, a linguagem e vestimentas adotadas, promovem este distanciamento, mantendo os agentes jurídicos cada vez mais afastados dos “usuários” do Judiciário.

(v) Pobreza – trata-se de um fator que permeia todos os demais. Qualquer obstáculo ao acesso à justiça é majorado pela pobreza.

Desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, os brasileiros conquistaram uma avançada lei fundamental no que diz respeito à garantia dos direitos individuais e sociais. Entretanto, ainda é preciso vencer inúmeros obstáculos para que estes direitos sejam exercidos por todos/todas os/as cidadãos/cidadãs, independentemente de sexo, gênero, cor e etnia, classe social, nível de escolaridade ou orientação sexual. A falta de conhecimento das leis e dos direitos; a falta de recursos para o pagamento de honorários advocatícios; a sofisticação e hostilidade do ambiente judiciário às camadas pobres da população e o descompasso entre o direito positivado e a realidade em que se estabelecem as relações jurídicas, são alguns destes obstáculos.

O campo do direito, entendido como um conjunto de instrumentos normativos – atos legislativos e decisões judiciais – produzido nas tensões entre diferentes argumentos e forças políticas, tem refletido sobre a necessidade de ampliação do conceito de Justiça para além dos limites de atuação do Poder Judiciário.

Um dos principais problemas de nossas sociedades é o déficit de cidadania decorrente da impossiblidade de apropriação do sentimento de pertencimento social, garantia de acesso ao conjunto de bens e valores socialmente definidos como finalidade do Estado, pela Constituição. Esta apropriação se dá com a informação e consciência de direitos, constitutiva do reconhecimento do direito a ter direitos, que é o melhor significado de cidadania.

Considera-se que a superação do Estado liberal e a conseqüente passagem para um Estado ético depende de uma nova concepção de sua relação com a sociedade. Esta relação tem na idéia da democracia deliberativa e na participação da sociedade civil, na construção e aplicação do Direito, suas principais aliadas, já que a idéia de crise de legitimidade do Estado liberal e sua incapacidade de reconhecer a diversidade social e cultural foi fortemente influenciada pela limitação da democracia representativa.

Dessa forma, alguns autores têm apontado para os pilares de uma proposta de acesso à justiça, estruturada da seguinte forma:

(i) promoção da especificação dos sujeitos de direitos;

(ii) participação social na formulação e aplicação do Direito;

(iii) concepção sistemática do Direito para a superação da dicotomia entre o Direito Público e o Privado.

A promoção da especificação dos sujeitos de direitos diz respeito a inserção da pluralidade dos interesses sociais na ação estatal, através da mediação entre sociedade civil e Estado. Essa inserção funcionaria como representações das diversas noções de bem existentes na sociedade, condição necessária para a deliberação coletiva sobre o sentido de bem comum. A promoção da especificação do sujeito de direitos atua na superação da limitação do princípio da igualdade formal, bem como na desconstrução do mito de que todos são iguais perante a lei, quando novos direitos são nominados, novos mecanismos de implementação e garantia são estabelecidos e novos sujeitos de direitos são formalmente reconhecidos na cena política.

O segundo pilar de uma proposta de acesso à justiça trata da promoção da participação social na formulação e aplicação do Direito. A mediação entre a sociedade civil e o Estado pretende corrigir as limitações da democracia representativa e a promover maior participação da sociedade na formulação e implementação das leis e políticas públicas destinadas a garantir direitos, combatendo o déficit de cidadania e promovendo a justiça social.

Essa superação ocorre quando a atuação desses agentes sociais desafia a lógica da vontade da maioria, voluntarista, expressa a cada quatro anos, sobrepondo a lógica da deliberação, racionalista, construída e reformulada no cotidiano das relações entre o Estado e a sociedade. Relações estas que ocorrem nos diversos espaços públicos e mecanismos de participação que acabam por afirmar uma visão institucionalista do Direito, em detrimento da concepção normativista. Esta situação se dá pela ações de advocacy no plano da estrutura do Direito, quando a sociedade civil participa dos conselhos, fóruns, comissões parlamentares, ou conferências que formulam políticas publicas; ou quando propõe Ações Judiciais individuais ou coletivas no plano nacional e internacional, buscando na própria aplicação do Direito os meios para avançar no reconhecimento de direitos e seus titulares.

O terceiro pilar está relacionado a promoção de uma concepção sistemática do Direito que supere a dicotomia entre o Direito Público e o Privado. Nesta nova cultura, não existe o reino da política representado pelo Estado de um lado, e o reino da economia representado pelo mercado de outro. A sociedade civil organizada ao disputar diferentes concepções de bem existentes na sociedade, utiliza politicamente o Direito concebendo-o como um sistema dinâmico e aberto, composto por princípios, regras e valores axiologicamente hierarquizados, com vistas a promover os objetivos justificadores do Estado Democrático de Direito (Freitas, 2002).

Esta situação é promovida no plano da cultura do Direito, quando são utilizados processos educacionais para sensibilização de diferentes públicos através de seminários, cursos, oficinas, feiras, publicações especializadas e, principalmente, da mídia como instrumento de divulgação e promoção de valores e diferentes concepções de Direito.

No documento CUSTEIO POR ABSORÇÃO Franciele Duarte (páginas 106-109)