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Marginalidade Literária: um olhar sobre a escrita de dois autores latino-americanos

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Academic year: 2017

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LUCIANO DANILO SILVA

MARGINALIDADE LITERÁRIA: UM OLHAR

SOBRE A ESCRITA DE DOIS AUTORES

LATINO-AMERICANOS

Belo Horizonte

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LUCIANO DANILO SILVA

MARGINALIDADE LITERÁRIA:

UM OLHAR SOBRE A ESCRITA DE DOIS AUTORES

LATINO-AMERICANOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários.

Área de concentração: Teoria da Literatura

Linha de pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade

Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre

Belo Horizonte

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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários

Dissertação intitulada Marginalidade literária: um olhar sobre a escrita de dois autores

latino-americanas, de autoria do Mestrando Luciano Danilo Silva, aprovada pela banca

examinadora constituída pelos seguintes professores:

__________________________________________________________

Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre – FALE/UFMG – Orientador

__________________________________________________________

Profa. Dra. Sara del Carmen Rojo de la Rosa – FALE/UFMG

__________________________________________________________

Prof. Dr. Ary Pimentel – UFRJ

__________________________________________________________

Profa. Dra. Elisa Maria Amorim Vieira – FALE/UFMG

__________________________________________________________

Profa. Dra. ANA MARIA CLARK PERES

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos

Literários da UFMG

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família pelo apoio, respeito, carinho e compreensão.

Ao estimado orientador Marcos Alexandre pelos ensinamentos transmitidos, paciência, alegria e apoio constante.

Às professoras Sara Rojo e Graciela Ravetti por fortificarem o meu gosto pela literatura por meio de suas aulas.

Aos professores da Área de Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas da FALE - UFMG do período em que cursei a graduação em espanhol.

Ao colega José Maria Lopez Júnior.

Aos professores do Pós-Lit da FALE – UFMG.

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RESUMO

(7)

RESUMEN

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SUMÁRIO

RESUMO ... VI

RESUMEN ... VII

ILUSTRAÇÃO ... 1

INTRODUÇÃO ... 2

Origem da pesquisa ... 3

Estudos iniciais sobre Crítica Literária ... 5

Dos conceitos ... 16

CAPÍTULO 1 – A DOMESTICAÇÃO DO MARGINAL: O VALOR LITERÁRIO E O MERCADO COMO ELEMENTOS DE REDENÇÃO DA OBRA ... 22

1 – Considerações iniciais ... 23

2 – A literatura marginal e o escritor marginal ... 28

CAPÍTULO 2 – A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL EM O REI DE HAVANA ... 43

2.1 – Sobre a identidade ... 44

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CAPÍTULO 3 – A RELAÇÃO ENTRE A ESCRITA DE PEDRO JUAN

GUTIÉRREZ E A DE RUBEM FONSECA ... 62

3.1 – A escrita “outra” ... 63

3.2 – A questão política em o Rei de havana e Feliz ano novo ... 68

3.3 – Aproximações estéticas e temáticas entre Pedro Juan Gutiérrez

e Rubem Fonseca ... 80

3.4– O sexo “sujo” e despido de sentimento em Feliz Ano Novo e em O Rei

de Havana ... 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 100

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Ilustração

(Malecón – Havana)

Fonte de inspiração para o autor cubano Pedro Juan Gutiérrez, que estrutura seus personagens baseando-se nas histórias que ouve dos cubanos que vivem nos arredores de Habana Vieja e que de noite pululam o Malecón.1

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ORIGENS DA PESQUISA

Durante o período em que fui aluno do curso de Letras tive a oportunidade de entrar em contato com a obra de Rubem Fonseca logo no primeiro semestre, quando ainda fazia a disciplina “Teoria da Literatura I”. Já, naquele momento, chamou-me muito a atenção o modo peculiar de escrever desse autor e, também, os temas por ele abordados como a violência, o sexo, a morte, os ambientes decadentes dos grandes centros urbanos e os personagens com trejeitos animalescos, que, em suas relações, muitas vezes, agiam por instinto.

Enquanto fazia a leitura da obra de Rubem Fonseca me surgiram algumas perguntas sobre a aceitação daquele tipo de literatura no meio acadêmico e a sua recepção por parte da Crítica Literária, quando da época da publicação de seus livros e a repercussão dos mesmos no mercado editorial. Ainda, dentro desta perspectiva, indagava-me se havia existido algum órgão social coercitivo que tinha estabelecido qualquer impedimento de veiculação da obra do referido autor, já que pelo conhecimento que possuía da história brasileira, sabia que alguns expoentes da música brasileira, naquele contexto, tinham sido exilados por apresentarem idéias, canções e outras manifestações artísticas que iam contra os preceitos da ditadura militar no Brasil.2 Depois de uma pequena pesquisa, pude comprovar que o livro Feliz ano novo havia sido censurado por incentivar a violência. Logo, atentei-me ao fato de que também em Cuba existia um órgão censor que realizava um trabalho semelhante ao que era feito no Brasil. A partir dessa constatação, vi que existiam particularidades que tornariam possível trabalhar com textos que nasceram em meio a uma atmosfera opressora,

2 Podemos assinalar neste contexto histórico o período que correspondente ao decreto do Ato Institucional

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vigilante e punitiva que, de certo modo, tratavam de por à margem do sistema operante manifestações artísticas que expunham uma perspectiva da Nação que o Estado não aceitava.

No que diz respeito aos trabalhos dissertativo-acadêmicos realizados sobre a obra fonsequiana tais como: Agosto e o discurso marginal fonsequiano de Osmar Pereira Oliva, A lógica do mundo marginal na obra de Rubem Fonseca de Maria Lidia Lichtscheidl Maretti, Literatura e marginalidade: o escritor como falsário, de Maria das Graças Fernandes Nogueira e No fio do texto: a obra de Rubem Fonseca de Maria Antonieta Pereira, todos desenvolvidos pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários – POS-LIT da Faculdade de Letras da UFMG, pude observar que a maioria deles discorria sobre os aspectos construtivos de diferentes livros que constituem a obra do escritor carioca. De um modo determinante, esses trabalhos me ofereceram um universo teórico importante para que eu identificasse outros autores que se assemelham a Rubem Fonseca no que diz respeito ao tipo de escrita, às abordagens temáticas, à transposição do que se entende por real, à perspectiva ficcional literária e ao componente histórico como pano de fundo para o desenvolvimento das obras.

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de classes marginalizadas. A partir desse momento, constatei que, diferentemente de Rubem Fonseca, não podia encontrar nenhum texto crítico sobre o escritor cubano. Nesse momento, surgiu-me novamente o questionamento sobre o porquê de uma provável resistência por parte da crítica literária — e, em um âmbito mais específico, no meio acadêmico, em relação a textos que tratavam de temas não tão convencionais e como, de certo modo, essas produções, muitas vezes, são consideradas “menores” e marginais em relação a um cânone vigente.

ESTUDOS INICIAIS SOBRE CRÍTICA-LITERÁRIA

Segundo alguns estudiosos da nossa literatura, as produções artísticas ditas marginais e menos valorizadas em termos estéticos e temáticos, sobretudo por abordarem sexo, violência e a vida daqueles que fazem parte de uma minoria sem perspectiva nos grandes centros urbanos, não podem ser entendidas como algo totalmente novo e nem de menor importância. Isso porque tais aspectos são uma realidade da vida humana. Nas palavras de Afrânio Coutinho, “o erotismo e a pornografia presentes em determinadas obras não são invenção do autor, pertencem à vida que o cerca e a todos nós”.3 Essa visão é bastante coerente se se entende que nos livros de Rubem Fonseca e de Pedro Juan Gutiérrez o que há em relação a esses conceitos pré-existentes é uma abordagem a partir de uma perspectiva do Dirty Realism — Realismo Sujo — surgido na década de 70 nos EUA e que, de algum modo, causa certo constrangimento aos leitores “menos afeiçoados” a alguns níveis de análise que se pode fazer de uma determinada obra literária, e que sentem certo desconforto quando,

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no ato da leitura, entram em contato com os temas, em muitos casos abjetos, que compõem a estética do Realismo Sujo.4

Quando Bataille expõe que “o erotismo dos corpos tem de qualquer maneira algo de pesado, de sinistro”5

talvez esse fato já revelasse um pouco da dificuldade de abordar um tema que de um modo ou outro causa certo incômodo a muitos leitores.

Ainda em relação ao caráter erótico, muito recorrente nas obras de Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez, pode-se dizer que é uma contradição apostarmos na esperança de um controle da libido, pois Freud a definiu como “o demoníaco, isto é, aquilo que é animado por um impulso constante, não conhece dia ou noite, e é, por conseguinte, rebelde a qualquer operação de corte que sobre ela se queira exercer”.6 Se a libido, em termos psicanalíticos, faz presente em muitos segmentos e esferas da existência de um indivíduo e é inerente a ele, de onde vem o estranhamento quando determinados desdobramentos dessa libido aparecem, por exemplo, nas obras literárias?

Como o intuito de responder a esse questionamento, aproximamo-nos dos dizeres de Octavio Paz que argumenta que

“O erotismo em sua raiz é sexo [...] Uma das finalidades do erotismo é domar o sexo e inseri-lo na sociedade. Sem sexo não há sociedade, pois não há procriação; mas sexo também ameaça a sociedade. [...] É instinto: tremor, pânico, explosão vital, é um vulcão, e cada um de seus estalos pode cobrir a sociedade com uma erupção de sangue e sêmen. O sexo é subversivo: ignora classes e hierarquias, as artes e as ciências, o dia e a noite; dorme e só acorda para fornicar e voltar a dormir.”7

4

O termo ‘Dirty Realism’ (realismo sujo) foi usado pela primeira vez na revista literária britânica ‘Granta’, no número 8, em 1983, que publicou os americanos Raymond Carver, Richard Ford e Michael Herr, entre outros. Conforme o dicionário Larousse (2003, p. 859), “Tendência da narrativa norte-americana, surgida nos anos setenta e oitenta, que se caracteriza por uma descrição dos ambientes urbanos sem diminuir os aspectos humanos mais sórdidos”.

5 BATAILLE, 1987, p. 18.

6 FREUD apud COTTET, 1990, p. 125. 7

(16)

No conto “Intestino Grosso”, que faz parte do livro Feliz Ano Novo, objeto desta dissertação, o narrador faz um comentário relevante em relação ao caráter pornográfico que aparece em sua obra, quando dá algumas respostas a um entrevistador, “O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocadamente de sua natureza animal.”8 Daí, podemos captar que há um determinado constrangimento de também levar-se tal representação da condição humana — especificamente erótica — ao universo literário de um modo instintivo e animalesco.

Não raro, observam-se tendências no discurso da crítica literária que apontam para um desprestígio desse tipo de escrita, pelo fato de retratar e construir um mundo diferente daquilo que é convencionalizado, isto é, uma caracterização de ambientes decadentes, imorais e sujos que o tempo todo se procura ignorar. Conforme argumenta Silviano Santiago, como veremos mais adiante, algumas destas obras estão mais para textos jornalísticos que propriamente arte. Diz-se, ainda, do surgimento de uma mudança no panorama da Teoria da Literatura, ou especificamente de uma crise, pois, como enfatiza José María Pozuelos Yvancos9

, há uma incerteza quanto aos caminhos que serão traçados pela Teoria, justamente pelas novas tendências relacionadas aos estudos culturais, os estudos gay e a literatura produzida nos países subdesenvolvidos. Não obstante, a inclusão de novas perspectivas no campo da Teoria da Literatura não é aceita de tão bom grado, já que há uma tentativa, sobretudo da crítica literária norte-americana, de reafirmar os cânones como um meio de contenção das formas de representação cultural subversiva e, no mínimo, diferente do comumente aceito.

8

FONSECA, 2000, p. 167.

9 YVANCOS apud SEDLMAYER et. alli, 2005. É interessante trabalhar aqui com os aportes deste

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No intuito de discorrer sobre essa temática, as obras Feliz ano novo, do escritor brasileiro Rubem Fonseca, e O rei de Havana, do cubano Pedro Juan Gutiérrez, foram eleitas como corpus de análise para o desenvolvimento desta dissertação. Podemos dizer que essas obras partem de uma perspectiva marginal por apresentarem elementos que não respondem nem estruturalmente nem semanticamente ao discurso hegemônico e cada uma delas é considerada “literatura marginal por estar à margem da literatura dominante.”10

Seligmann-Silva quando analisa a questão do sublime e do abjeto em seu texto “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escrita do corpo” — que será retomado mais adiante quando for tratada a questão estética das obras aqui estudadas —, ressalta que um pouco antes do final do século XVII havia o domínio da tríade Verdade-Bom-Belo nas artes, porém, no final desse mesmo século essa crença — renascentista — começou a ser posta em questão11. Se levarmos em conta a máxima de que uma obra para alcançar determinado êxito literário, como já foi dito na perspectiva de Compagnon, tem que imitar de maneira fecunda as obras já canonizadas12, podemos dizer então, que há um movimento de busca pelos parâmetros renascentistas, e como o projeto literário de Rubem Fonseca e o de Pedro Juan Gutiérrez não correspondem efetivamente a um modelo pré-existente a partir de um ponto de vista da tríade renascentista, as obras desses autores são consideradas “menores” em relação à literatura dominante.

Segundo Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, “o espaço da marginalidade se origina da contravenção constante às normas estabelecidas e como uma reação aos valores do mundo “burguês” que buscando condenar, eliminar, só consegue ficar na

10 PONGE. In: FERREIRA, 1981, p. 138. 11 SELIGMANN-SILVA, 2005, pp. 33-34. 12

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tentativa de ignorar essa existência”.13

Esse fato corrobora o que comenta Yvancos sobre a existência de uma tentativa de se reafirmar as obras que fazem parte do cânone como uma estratégia de conter as dimensões dos estudos culturais:

La retórica de la crisis ha generado una idealizada imagen de los clásicos, de los grandes autores de la tradición literaria, como si la literatura clásica fuese una garantía de estabilidad y de unidad frente al caos o pueda ajustar cuentas contra ese caos oponiéndole un espacio de valores comunes que sustentan ideológicamente una posición conservadora en los estudios literarios.14

A ênfase em contrariar os padrões literários canônicos é uma característica marcante da escrita de Pedro Juan Gutiérrez, o que o torna um escritor duplamente marginalizado. Primeiramente por ir contra as convenções estabelecidas por uma determinada corrente da crítica literária que o classifica como “inadequado”15

. Há, então, um preconceito em relação ao que se produz fora de um círculo conceituado e reconhecido às vistas dessa vertente da crítica. Aquele que não seguir “as obras modelo, destinadas a serem imitadas de maneira fecunda”16

será considerado como marginal em relação a um cânone vigente. Entretanto, esse não deve funcionar como um instrumento regulador, uma vez que é mutável e que “até o próprio cânone dos grandes escritores é instável”17

. O segundo fator está intrinsecamente relacionado à origem, isto é, por ser latino-americano, supostamente, mero consumidor da cultura de massas que se origina

13 MARETTI, 1986, p. 133.

14 YVANCOS, 2000, p. 66. “A retórica da crise tem gerado uma imagem idealizada dos clássicos, dos

grandes autores da tradição literária, como se a literatura clássica fosse uma garantia de estabilidade e de unidade perante o caos ou possa ajustar contas contra esse caos opondo-lhe um espaço de valores comuns que sustentam ideologicamente uma posição conservadora nos estudos literários”. (tradução minha)

15 Podemos considerar que Pedro Juan Gutiérrez reage a determinados modelos literários como o de Laidi

Fernández de Juan, escritora cubana considerada uma das vozes mais talentosas dentro do discurso narrativo cubano, uma vez que essa autora defende a idéia de que o mercado fora de Cuba exerce uma tentação sobre os escritores e que esse mercado deprecia a imagem dos cubanos a custa de um efêmero êxito editorial (cf. www.cubanet.org/CNews/y07/ago07/20a9htm). Pedro Juan Guitérrez estilisticamente está mais próximo de um projeto literário representado por uma nova safra de narradores dos anos 90. Nesse contexto, podemos destacar Ena Lucía Portela e Leonardo Padura, que, de certo modo, demonstram por meio de suas narrativas a realidade em que vivem e na qual é difícil desvencilhar a paisagem cercada de escombros, os palavrões e a asfixia.

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no Norte, pois a “América Latina não seria capaz de desenvolver sua própria indústria da cultura.”18

Essa suposição pode ser descartada quando tomamos como referência, por exemplo, o movimento antropofágico inaugurado por Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp, que diz respeito a uma devoração simbólica da cultura estrangeira, aproveitando dela suas inovações artísticas, porém sem perder nossa própria identidade. Corroborando essa perspectiva antropofágica, os dizeres de Nelly Richard são imprescindíveis para um melhor entendimento sobre a recepção e comportamento do latino-americano diante do que vem de fora:

El esquema iluminista y culturizador de la modernidad histórica ha operado mediante cadenas de transmisión y relevos que suelen ordenar las manifestaciones culturales de los países dependientes según una lógica principalmente reproductora, pero lo que hay es un gesto consistente en la reconversión de lo ajeno a través de una manipulación de códigos que readecua los préstamos a la funcionalidad local de un nuevo diseño crítico.19

De certo modo, a análise comparativa das obras desses dois autores latino-americanos reforça a idéia de semelhança da cultura da América de língua portuguesa com a de língua espanhola, viabilizando, dessa maneira, o reconhecimento de raízes comuns que constituem uma “identidade”20 latino-americana. Quando mencionamos raízes comuns, pretendemos fazer referência aos aspectos que aproximam culturalmente Brasil e Cuba e aos que concernem à realidade difícil a qual estão submetidos. Ambos os países compartilham uma realidade de pobreza, desigualdade social, discriminação

18 http://www.periodismo.uchile.cl/talleres/teoriacomunicacion/archivos/globalizacion.htm. 19

RICHARD, 1989, p. 55. O esquema iluminista e culturalizador da modernidade histórica tem operado mediante cadeias de transmissão e relevos que costumam ordenar as manifestações culturais dos países dependentes segundo uma lógica principalmente reprodutora, porém o que existe é um gesto consistente na reconversão do estrangeiro por meio de uma manipulação de códigos que readequa os empréstimos à funcionalidade local de um novo desenho crítico. (grifo da autora; tradução minha).

20 Quando usamos o conceito de “identidade” comum queremos fazer referência ao caráter do hibridismo

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racial, dependência cultural e outros aspectos incluídos nos estudos da alteridade e/ou culturais.

Ainda que possamos destacar semelhanças entre os dois países é importante fazer menção ao fato de que em relação ao contexto histórico-político, Cuba apresenta um caudal de governos ditatoriais que não pode ser reconhecido de igual maneira ao Brasil, se levamos em consideração o período do regime militar brasileiro. Cuba, desde a sua independência em 1902, teve a frente de seu governo o ditador Gerardo Machado, que seguiu no posto até 1933 quando foi retirado por Fulgêncio Batista por meio de um levante popular em 1944. O governo do também ditador Fulgêncio Batista teve duração até o dia 1º de janeiro de 1959, quando Fidel Castro e um grupo rebelde tomaram Havana e a partir daí estabeleceu seu governo. Fidel seguiu no poder até 2006 quando teve que se afastar da vida pública devido a graves problemas de saúde. Mas, em igual proporção, podemos identificar órgãos sensores e cerceadores das liberdades democráticas e também de respostas violentas e coercitivas em relação a toda oposição ao regime militar no Brasil como também no contexto do regime comunista cubano.

Outros fatores que levam a reconhecer a possibilidade de se estabelecer um paralelo entre o tipo de escrita e o “lugar de enunciação”21 dos referidos autores

latino-americanos são apontados por Marcos Nunes, em Visões da América:

Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez nos colocam nesse território de aflitos, de poucos vencedores e inúmeros perdedores. Território muito vasto em seus países, um eternamente condenado à pecha de país em desenvolvimento, país do futuro, que nunca corresponde às idealizações. Outro, por um regime condenado por um embargo econômico insuperável até a submissão a um modelo-padrão de democracia, sem esquecer da própria hediondez característica de políticas que restringem, censuram e condenam, às vezes até a morte, seres humanos, seja por “delito de opinião”, seja às condições

21

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humanas de uma carência material que encontra paralelo nas grandes massas alijadas do processo produtivo na maior parte do continente, mas que só em Cuba tem sua expressão em uma resistência política cujo caráter Pedro Juan pretende revelar como mera vontade de manutenção de poder por uma classe dirigente privilegiada.22

No momento em que surgem as obras de Pedro Juan Gutiérrez e Rubem Fonseca, pode-se dizer que são rechaçadas por parte da crítica literária, pois as suas “escritas” são consideradas “outras” e não aquelas do discurso convencional, que prima por reconhecer como textos legítimos aqueles que podem ser facilmente reconhecidos como provenientes de um modelo estético já canonizado. No entanto, é importante ressaltar que não é somente a Crítica que identifica o caráter de transgressão dessas obras. Para corroborar esse ponto de vista, aludimos ao fato de que Feliz ano novo foi proibido pelo ministro da Justiça Armando Falcão, do então Presidente Ernesto Geisel, com a alegação de atentar contra a moral e os bons costumes. Um senador da Arena, o partido do Governo, chegou a dizer que se tratava de “pornografia pura” e defendeu a prisão do autor.

Com o objetivo de corroborar a leitura comparativa das obras dos dois autores pesquisados, vejamos, a título de exemplo, os seguintes trechos que retratam de modo comparativo a realidade social a qual estão submetidos os personagens, a sua linguagem áspera e repleta de palavrões e expressões vulgares e, desse modo, o meio social que serve como pano de fundo para o desenvolvimento das narrativas dos dois escritores:

Numa passagem, entre o bar e o outro prédio, saiu um dos atendentes e jogou restos de comida num balde. Eram restos para os porcos. Fedendo comida podre. Naquele caldo asqueroso, boiavam uns pedaços de pão, restos de croquete, cascas de manga. Pegou tudo e saiu para a rua, engolindo aquela porcaria.23

22

www.geocities.com/soHo/Den/9103/texto13c.html.

23

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As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto. Já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?24

Tal atitude de colocar as obras no terreno da marginalidade literária se deve, segundo Cornejo Polar, “pelo afastamento dos paradigmas consagrados ou que não coincidem com o modelo promovido de determinado momento.”25

Segundo Paulo Oliveira,

Rubem Fonseca representa aquilo que fica às margens da sociedade, aquilo que muitos discursos literários não consideram como relevante para ser representado. A estética de Fonseca, portanto, é a estética do feio, do grotesco e do violento, tudo aquilo que, segundo a estética do clássico, seria considerado indigno de representar.26

Ainda no que concerne ao conceito de grotesco, Marcos Alexandre afirma que ele geralmente “aparece associado à mistura do animalesco com o humano”27

. Tal consideração é aplicável às obras dos referidos autores: seus personagens, freqüentemente, são seres que agem por instinto, que buscam a satisfação das necessidades físicas, começando pelo alimento e pelo sexo, tendo como cenário uma atmosfera de desigualdade social, fome, miséria, discriminação racial, ou seja, um mundo de deserdados e desvalidos sem perspectivas.

Outro fator importante quando se pretende descobrir por que determinadas obras são consideradas literatura marginal é o caráter de transitoriedade dessa denominação. Em um dado momento, um escritor pode ser considerado marginal e maldito, em outro pode haver uma mudança na perspectiva da aceitação de sua obra e ela pode aparecer,

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então, não mais como subversiva aos padrões pré-estabelecidos. Nesse contexto de mudança de perspectiva de aceitação da obra do escritor, podemos afirmar que o caso de Rubem Fonseca no período pós-ditadura no Brasil é um exemplo constatável dessa realidade; pois durante a ditadura, o autor e o seu livro Feliz ano novo representavam um modelo de “criador e criatura” inadmissíveis aos padrões sociais e literários da época. Já em um segundo momento histórico, no final da década de 80, o ato antes proibitivo serve como mola propulsora para converter seu livro em um fenômeno de vendas no mercado editorial.

A partir do exposto é que argumentamos que estudar as obras de Pedro Juan Gutiérrez e Rubem Fonseca em seus aspectos temáticos, técnicos e estilísticos, articulados à Teoria da Literatura e à Crítica Literária, justificam-se na medida em que se faz necessário realizar um estudo sobre os desdobramentos que podem ser atribuídos ao conceito de “literatura marginal”, que ora é relacionado diretamente à “poesia marginal” e ora é pouco abordado pelos teóricos da literatura, dado à escassez de textos publicados sobre o assunto.

No que diz respeito à abordagem do tema “marginal”, buscamos a ampliação do entendimento desse conceito, partindo do pressuposto de que as obras analisadas recebem essa nomenclatura também devido à sua constituição estética, isto é, uma “estética do feio” que Alexandre trata “não apenas como oposto ao “belo”, mas tudo aquilo que foge aos padrões estéticos pré-estabelecidos socialmente e culturalmente”.28

É importante salientar que o escritor brasileiro Rubem Fonseca, na atualidade, não pode ser considerado marginal, uma vez que suas obras têm um alcance muito grande no mercado editorial e, além disso, alguns de seus livros já foram adaptados para o cinema. Entre eles podemos destacar Relatório de um homem casado, de 1973, filme

28

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no qual se fez uma adaptação do conto “Relatório de Carlos” presente no livro A coleira

do cão; A grande arte, de 1991 e Bufo & Spallanzani, de 2001. A partir dessa

perspectiva, não se poderia chamá-lo de escritor marginal como foram chamados aqueles poetas marginais da década de 70, que se valiam do mimeógrafo29

para que pudessem divulgar o trabalhoem portas de bares, teatros e cinemas de grandes cidades brasileiras, já que o mercado editorial pouco se interessava pelos seus textos.

Um dos desdobramentos sobre o conceito “marginal” proposto por Saer permite que se afaste Rubem Fonseca da leitura de um autor que produz a partir de uma perspectiva marginal: “É portanto marginal um escritor que não escreve livros que correspondam ao gosto dominante, que não alcança tiragens elevadas ou uma produção abundante e regular e cujos livros não servem para a adaptação teatral, televisiva ou cinematográfica.”30

Sob ótica do argumento exposto por Saer, o escritor carioca não poderia ser considerado marginal. Tal fato, no entanto, não exclui que boa parte de sua obra apresente elementos estéticos que podem ser reconhecidos como componentes de uma literatura marginal. Além dessa constatação, quando se faz um recorte sincrônico das décadas de 60 a 80, no Brasil, época da ditadura militar, podemos entendê-lo como marginal em muitos sentidos desse adjetivo. No desenvolver desta dissertação são tratados os níveis de marginalidade que podem ser identificados em uma obra e os desdobramentos desse adjetivo chegando até categorias como “marginal estético” e “contextual”, como veremos no capítulo 1.

O estudo do contexto histórico em que a obra Feliz ano novo de Rubem Fonseca e as obras de Pedro Juan Gutiérrez (proibidas em Cuba) foram produzidas evidencia que

29 Uma antiga máquina à base de álcool e papel carbono velha conhecida dos professores antes da

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as mesmas cumprem uma tendência subversiva, em termos estéticos, e vão contra ao discurso político ditatorial. A partir desses aspectos se justifica a adequação desta dissertação à área de concentração “Teoria da Literatura” e da linha “Expressão da Alteridade”. Entendemos que as obras dos dois autores aqui trabalhados fogem ao que se espera de um estereótipo literário em determinado contexto histórico e pensamos, por esse motivo, que é importante e necessário compreender melhor como o discurso do “outro”, do “diferente”, se manifesta nas obras literárias que constituem nosso corpus de análise, ressaltando como se dão os processos de coerção por parte dos poderes ditatoriais em relação às obras de Pedro Juan Gutiérrez e de Rubem Fonseca, autores que em seus livros deixam vir à tona, por meio dos seus personagens, as vozes dos grupos excluídos que vivem à margem da sociedade.

DOS CONCEITOS

Os conceitos que permeiam esta pesquisa são a literatura marginal, a constituição do cânone literário e os Estudos Culturais, na perspectiva da criação da identidade nacional. No desenvolvimento desta dissertação, são revisados os tópicos mencionados à luz da indagação de Antoine Compagnon: “O que é valor literário?”31 e

Literatura e Valor, texto proveniente de um debate entre os teóricos Beatriz Sarlo e

Roberto Schwarz. O texto de José María Pozuelo Yvancos e Rosa María Aradra Sánchez: “Teoría del canon y literatura española” se revela como de grande valia para que sejam analisadas questões relativas ao estudo do cânone e a importância dos Estudos Culturais no panorama atual da Teoria Literária.32 Ainda dão suporte ao estudo

31 COMPAGNON, 1999, p. 128.

32 Segundo a perspectiva de José María Pozuelos, autor do livro Teoría del canon y literatura española

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crítico desses conceitos, as concepções e as reflexões, principalmente aquelas discutidas por Stuart Hall, sobre a constituição da identidade, por Michael Focault, no que se refere aos mecanismos de poder ditatorial nas obras dos autores latino-americanos e também por Bataille e Lacan, quando da análise de elementos que dizem respeito ao desejo, ao erótico e à libido presentes na estética das obras analisadas. Ainda em relação ao contexto estético, é relevante salientar a abordagem sobre o termo Dirty Realism (Realismo Sujo) que propicia um reconhecimento dos elementos que compõem a estética das narrativas dos dois autores e sua relação com outros escritores tais como Charles Bukowski e Henry Miller.

Com base nos conceitos anteriormente apresentados, esta dissertação é dividida em três capítulos. No primeiro capítulo, analisamos e questionamos, em termos gerais, como acontece o processo de marginalidade literária a partir de uma perspectiva acadêmico-crítico-literária e, ao mesmo tempo, procuramos definir qual o sentido operativo do conceito “marginal” articulado ao de “cânone literário”. Com o exposto, procuramos enfatizar que ainda que uma determinada obra apresente uma veiculação mercadológica considerável — como é o caso dos livros do escritor Paulo Coelho —, não quer dizer que essa venha a ter uma repercussão a partir de uma perspectiva dos estudos acadêmicos e teóricos. Neste sentido, estaria implícito nessa constatação um tipo de marginalização? Poder-se-ia falar em uma “marginalidade acadêmica”? Para analisar essa questão, termos como o “valor literário” e “o mercado” são abordados na tentativa de esclarecer qual é função deles para que haja uma redenção de uma obra considerada em um primeiro momento como constituinte de um ponto de vista marginal.

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Silviano Santiago quando analisa o fenômeno de vendas Paulo Coelho que, em outubro de 2003, entrou para o Livro dos Recordes Guinness, como o escritor que, em um mesmo dia, assinou o maior número de traduções de obra sua, faz a seguinte ressalva: “A inscrição do nome próprio no livro dos recordes serve basicamente para legitimar a qualidade pelo viés da quantidade”.33 A partir daí, já temos uma idéia de como um autor e sua obra podem conseguir um alcance muito grande junto ao público não-acadêmico e por cair tanto nesse gosto popular pode até chegar algum dia a ser estudado, quem sabe no intuito de analisar quais são os fatores que fazem com que livros como os de Paulo Coelho sejam tão procurados. Alguns fatores — como o de ser classificado como autor de textos de auto-ajuda (gênero que representa uma parcela grande de vendas no mercado editorial do Brasil) e possuir por trás um esquema massivo de propaganda — permitem entender a razão pela qual as obras desse autor brasileiro se tornam best sellers ou mesmo fenômeno de vendas.

No segundo capítulo, buscamos com o auxílio dos Estudos Culturais, sobretudo a partir das abordagens de Stuart Hall, explicar como se dá o processo de constituição da identidade nacional em O rei de Havana, analisando questões relativas à memória, já que esse conceito se faz muito presente no decorrer da narrativa de Pedro Juan Gutiérrez. Podemos dizer ainda que a memória é um elemento estruturador nas relações entre os personagens e serve para entendermos, a partir das relações entre esses, um sentido particular de identidade do indivíduo que denota a Nação e a identidade de um modo geral. Desse modo, a “memória” apresenta-se como um conceito importante para analisarmos a representação dos grupos minoritários na literatura.

33

(28)

Aludimos sinteticamente também a outros textos de autores como Plínio Marcos34

e João Antônio35

(retomado no capítulo 1), no intuito de ressaltar o caráter de inserção de personagens marginais nas obras e o papel da censura, ou obras cinematográficas como Cidade de Deus e Tropa de Elite (no capítulo 3), para destacar a relação de proximidade entre leitor/espectador e a violência que o rodeia. Nesse contexto, também a obra literária Feliz ano novo, na qual as camadas marginalizadas da sociedade são retratadas e a violência é enfocada de modo mais aproximativo à realidade, adquire uma repercussão no mercado editorial brasileiro e nos abre a um questionamento: Por que obras que põem em evidência os estratos mais baixos da sociedade repercutem tanto? Para fundamentação de nossa argumentação, serão relevantes as abordagens de teóricos como Silviano Santiago e Michael Focault36

. Santiago nos diz que,

Por um lado, o leitor estrangeiro tende a buscar entre os livros de literatura que pretende ler aqueles que denunciam despudoradamente a condição miserável de grande parte da população brasileira. São em geral livros de literatura que pouco se preocupam em satisfazer os mínimos requisitos que transformariam em obra de arte o fato bruto socioeconômico37.

No que diz respeito aos Estudos Culturais, Ana Rosa Neves comenta que

Há uma impossibilidade de concordância com uma definição essencial ou uma única narrativa para os Estudos Culturais visto que, eles precisam permanecer abertos ao inesperado, ao imprevisto, assim sendo, é impossível controlar o seu desenvolvimento 38.

34

Deste autor podemos destacar o romance Uma reportagem maldita – Querô, publicado em 1976, adaptada para o teatro, em 1979, e para o cinema, em 2007, sob a direção de Carlos Cortez.

35 João Antônio, escritor paulista que foi considerado intérprete do submundo e da marginalidade. A

maioria de seus personagens, assim como os do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez e também muitos dos que aparecem na obra de Rubem Fonseca, são indivíduos que vivem na periferia dos grandes centros urbanos. Entre esses personagens figuram, prostitutas, operários, biscateiros, soldados, homossexuais, crianças abandonadas, pedintes, jogadores de sinuca e desempregados. Um livro desse escritor paulista que podemos fazer menção é Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963, obra que retrata bem as classes marginalizadas da sociedade.

36 Esse autor é retomado no capítulo 2 quando tratamos do caráter indissociável da

delinqüência/marginalidade em relação à sociedade, ali representada em trechos de O rei de Havana.

(29)

Diante de tamanha abertura em relação ao que podemos abordar nos Estudos Culturais, faz-se necessário ressaltar que a utilização desta corrente teórica nesta dissertação está direcionada especificamente à definição que Ana Rosa Neves dá aos Estudos Culturais, ou seja, “aquela na qual as formas de produção cultural devem ser estudadas em relação a outras práticas culturais e em relação às estruturas históricas e sociais”39

. Portanto, é, sobretudo, a partir dessas últimas estruturas — históricas e sociais — que fazemos um recorte conceitual e teórico para analisar a constituição da identidade nacional em O rei de Havana.

No terceiro capítulo, analisamos a relação entre a escrita dos dois autores latino-americanos e buscamos os elementos estruturais que nos permitem realizar uma leitura da obra de Pedro Juan Gutiérrez a partir da perspectiva dos Estudos Culturais e fazer um recorte diacrônico na história da literatura brasileira para demonstrar que se pode também fazer uma aproximação do livro Feliz ano novo de Rubem Fonseca desse contexto. Em um primeiro momento, analisamos Feliz ano novo, destacando o momento histórico, o espaço e os personagens. Sucessivamente, estabelecemos uma análise teórica do livro O rei de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez, demonstrando as aproximações temáticas em relação à obra de Rubem Fonseca, focalizando a constituição de seus personagens e a separação entre o real e o ficcional.

Se por um lado se pode fazer uma aproximação entre os dois autores que têm como lugar de enunciação países subdesenvolvidos e que entre outros aspectos coincidentes apresentam abordagens temáticas e estéticas semelhantes em suas obras, por outro, podem ser levantados pontos que os distanciam. Dentre eles, o fato de o autor cubano, por exemplo, ter que sair de seu país para poder publicar os seus textos,

39

(30)

enquanto que, na época da ditadura no Brasil, o livro Feliz ano novo foi publicado e só depois censurado.

(31)

CAPÍTULO 1

(32)

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há mais de um quarto de século, ou seja, em meados de 1981, já se levantavam dúvidas sobre os meios eficientes e especificamente científicos que fossem capazes de denominar uma literatura como constituinte de uma perspectiva marginal ou não. Um livro de ensaios relevante e abridor de águas em relação ao tema é Crítica Literária em

nossos Dias e Literatura Marginal que tem como organizador João Ferreira. Muitos

anos se passaram e foram realmente poucas obras de caráter crítico-literário que surgiram até os dias atuais que aprofundassem a questão sobre o conceito de literatura marginal ou mesmo dos desdobramentos do conceito “marginal” no contexto da literatura. Quando muito, podem-se encontrar algumas obras como a já citada anteriormente, ou outras que tocam superficialmente a questão da literatura marginal, como é o caso de Agosto e o discurso marginal fonsequiano, de Osmar Pereira Oliva, e

A lógica do mundo marginal na obra de Rubem Fonseca, de Maria Lidia Lichtscheidl,

que tratam da estética de criação de Rubem Fonseca, das classes marginalizadas na construção do cenário das narrativas e se fala pouco da escrita desse autor numa perspectiva marginal em relação a outros autores que já fazem parte de um cânone literário reconhecido. Logo, é possível fazermos o seguinte questionamento: se uma obra apresenta no seu enredo grupos marginalizados da sociedade, a partir do ponto de vista minuciosamente descritivo dos personagens, de sua maneira não convencional de se comunicar (uso de gírias, vocabulário de baixo calão etc.), ela pode ser, necessariamente, considerada marginal?

(33)

reflexão sobre o cânone, isto é, aqueles textos ou autores que servem como modelo para outros que têm a pretensão de também serem escritores. Vejamos o fragmento em que o escritor-personagem responde e discursa sobre o tema e que, de certo modo, já introduz inicialmente a questão sobre aqueles textos que são produzidos fora de um padrão convencional e que, nesse sentido, vão ser considerados à margem da literatura vigente: “Quando foi que você foi publicado pela primeira vez? Demorou muito?”

“Demorou. Eles queriam que eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu não queria, e não sabia.”

“Quem eram eles?”

“Os caras que editavam os livros, os suplementos literários, os jornais de letras. Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida.”40

Como dito anteriormente, os poetas marginais se valiam de meios alternativos para que pudessem viabilizar a difusão de seus trabalhos, uma vez que o mercado editorial não se interessava pelo tipo de literatura que eles se propunham a realizar. E no caso de Rubem Fonseca que já tinha o respaldo de uma editora e já havia vendido milhares de unidades de seu livro? De que maneira pode-se dizer que esse é um autor marginal? A resposta a esses questionamentos se esclarece justamente pelo descontentamento do órgão censor do Estado ditatorial vigente no Brasil. Entende-se que o caráter marginal da obra Feliz ano novo e o de seu autor não tiveram, necessariamente, uma má aceitação por parte do mercado editorial, mas sim uma ação de caráter proibitivo por parte do poder estatal por entender que o livro atentava contra a imagem do país, uma vez que Rubem Fonseca expunha de modo direto e sem rodeios, questões como a explosão da violência nos grandes centros urbanos, a miséria da população e as “obscenidades” desses marginalizados sociais. No campo cultural, muitas foram as manifestações artísticas que tiveram que purgar sob pena dos censores do Estado ditatorial que marcou a história do Brasil. No teatro, por exemplo, podemos

40

(34)

citar Plínio Marcos, autor que trazia em suas obras dramáticas personagens que permeavam os ambientes miseráveis e expunham seus conflitos de modo agressivo e envoltos por uma atmosfera pessimista e, muitas vezes, sem saída.41 No campo da música, podemos destacar Geraldo Vandré, com a canção que se tornou hino de resistência ao governo militar Pra não dizer que não falei de flores.42 Muitos são os exemplos que poderíamos dar em relação a esta passagem obscura que teve lugar nos anos que se seguiram de governo militar, 1964/1985, com destaque aos “Anos de Chumbo” momento mais repressivo que teve lugar no fim de 1968, com a criação do AI-5 até o ano de 1974, fim do governo Médice. Nesse contexto, ou seja, o período histórico em que o governo ditatorial praticou de modo severo o caráter coercitivo em relação às manifestações artísticas que se chocavam contra os preceitos estabelecidos pelos censores, encontramos Rubem Fonseca, em função de sua obra Feliz ano novo, no patamar de “marginal contextual.”43

Sobre a perspectiva do aparecimento do contexto dos marginalizados sociais que citamos anteriormente, o seguinte trecho do conto Feliz ano novo, que dá nome ao livro de Rubem Fonseca, exemplifica de forma bastante eficaz essa última assertiva:

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.

41 A título de exemplo podemos citar duas obras de Plínio Marcos que podem ser inseridas nesse

contexto. Elas são Dois perdidos numa noite suja, de 1978, e A mancha roxa, de 1988. A nosso ver, essas peças retratam de modo direto os conflitos vividos por personagens que estão à margem do sistema e que em situações desesperadoras, muitas vezes, chegam a perder a “sanidade”. De maneira aproximativa, os personagens de Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez também cometem atos violentos e brutais em relação a outros personagens.

42 Pra não dizer que não falei das flores ganhou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção de

1968. Esse festival durou de 1966 a 1972. Pouco depois de ser premiada, essa música de Geraldo Vandré foi censurada e acusada de “ofender” à Instituição, uma vez que trazia versos como “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão”. Outras músicas que foram censuradas na época da ditadura no Brasil foram: Apesar de você (1970), de Chico Buarque de Holanda e Cálice, interpretado por Chico Buarque e Gilberto Gil (1973).

43 Desse modo, entendemos que Rubem Fonseca pode ser considerado “marginal contextual” pelo fato de

(35)

Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.44

Mais adiante veremos que somente o aparecimento dos grupos marginalizados e suas relações com outras camadas da sociedade não são suficientes para perceber uma obra como constituinte de uma abordagem marginal. Esse caráter estaria associado, ao nosso entendimento, ao desenvolvimento de um projeto literário que não se vincula, por exemplo, à ideologia dominante45, porém, desde já, podemos inferir que esta realidade faz parte de um contexto geral que posteriormente justificará o caráter “marginal estético” da obra.

Atualmente, o termo marginal ainda está muito relacionado à poesia marginal, o que pode ser visto como positivo se observamos quais os mecanismos que propiciaram tal adjetivo ao segmento da poesia brasileira na década de 70, quando o regime militar atuava no Brasil.

A seguir, temos uma constatação de que além de estarem inseridos em uma perspectiva marginal de publicação no mercado editorial no Brasil, os poetas marginais expunham uma suspeita em relação ao sistema político vigente, posicionamento esse não presente na abordagem de Rubem Fonseca.

Segundo Clélia Simeão Pires,

a linguagem brutalista de Rubem Fonseca ─ que se apresenta, na maioria dos casos, em primeira pessoa ─, apesar de refletir um ceticismo em relação à condição humana, em termos políticos, não representaria um posicionamento de desconfiança com relação ao sistema ou às linguagens do poder como fizeram os poetas marginais.46

44 FONSECA, 2000, p.14.

45 Utilizamos o termo “ideologia dominante” para nos referirmos ao conjunto de idéias relativas ao Estado

militar e seu alcance sobre a produção cultural de um determinado espaço e momento histórico.

46

(36)

Tal assertiva pode ser, se não parcialmente desconsiderada, pelo menos, insuficiente para que entendamos o contexto histórico daquela época, uma vez que Rubem Fonseca, segundo João Luiz Lafetá, expõe que “a violência mostrada nos contos era a violência na qual o Brasil estava mergulhado pelo regime. Logo, as estórias contadas por Rubem Fonseca funcionavam como verdadeiras zombarias das afirmações oficiais.”47

Assim sendo, podemos dizer que tanto Rubem Fonseca quanto os poetas marginais dispunham de elementos dentro de suas composições artísticas que funcionavam como contestadores da realidade política do país e traziam à tona aspectos do momento histórico do qual faziam parte. Entre os poetas marginais que escreviam a partir dessa postura de contestação e insatisfação em relação ao momento histórico-político-social e repressivo da ditadura militar no Brasil, podemos destacar, entre outros, Antônio Carlos Brito — Cacaso, Jorge Mautner, Torquato Neto, Charles, Chacal, Waly Salomão Geraldo Carneiro, Antônio Risério, Tite de Lemos, Ronaldo Bastos, Ronaldo Santos e Bernardo Vilhena. A título de exemplo, vejamos um fragmento do poema intitulado Perpétuo socorro do poeta Charles, que de certo modo evidencia “o clima de desilusão e de crítica a esse discurso em certa medida populista”48

O operário não tem nada com a minha dor

Bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto ri do meu cabelo

minha cara estúpida de vagabundo dopado de manhã no meio do trânsito

torrando o dinheirinho miúdo a tomar cachaça pelo que aconteceu

pelo que não aconteceu

por uma agulha gelada furando o peito49

47

LAFETÁ, 2004, p. 389.

48 BARROS.

(37)

Podemos perceber um distanciamento entre o eu-lírico e o operário, que estando de lados opostos se aproximam em relação ao álcool, visto aqui como um signo que dá margem a “válvula de escape” se levamos em consideração o momento histórico no qual eles estão inseridos, ou seja, um período em que há censura, repressão e perseguição. A diferença entre os mundos dos dois é percebida na forma como eles se vêem, um cumprindo a rotina do trabalho, o outro parecendo só pensar em desfrutar a vida. Um bebendo o que restou do dinheiro, mas ambos pensando no que aconteceu e naquilo que não aconteceu. Naquele momento histórico, os acontecimentos, prisões, perseguições, manifestações chegavam a todas as classes. A “agulha gelada furando o peito” podemos associar à figura da repressão do Estado ditatorial, que acorda o intelectual ou o operário no meio da noite sob a mira do fuzil com sua baioneta na ponta.

Maria Antonieta Pereira ressalta que existem duas abordagens sobre a obra de Rubem Fonseca nas décadas de 80 e 90. Primeiro “enfatizava-se a relação entre literatura e as questões sociais, numa tentativa de ler a ficção via realidade”50, já na década de seguinte “a crítica propõe uma leitura mais centrada nos próprios artifícios fundadores da narrativa.”51 Neste capítulo, buscamos especificamente as abordagens que estejam mais direcionadas à perspectiva dos anos 90, na qual os elementos estéticos serão analisados e postos como características de uma obra marginal a partir de um ponto de vista estético.

2 – A LITERATURA MARGINAL E O ESCRITOR MARGINAL

50 PEREIRA, 2000, p.14. 51

(38)

Sobre o conceito de literatura marginal pode-se dizer que essa denominação desempenha uma designação funcional, dada a dificuldade de autores como Robert Ponge, Sérgius Gonzaga52, entre outros, de encontrar e estabelecer uma univocidade de características do porquê de uma obra ou autor serem considerados marginais. Segundo Ponge, “A literatura marginal seria a literatura à margem da literatura oficial, isto é, da literatura da classe dominante”53

. Esta classificação desempenha um papel importante para começarmos a entender o lugar dessa literatura marginal em uma perspectiva da literatura que é considerada nacional. Nesse sentido, tudo que foge aos parâmetros estará à margem. Veremos tal perspectiva na própria experiência da poesia marginal, que, entre outras renovações, transgredia a linguagem e contestava as posturas conservadoras. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Pereira,

A poesia marginal, literariamente falando, consiste no estilo coloquial encontrado na maioria dos autores da geração mimeógrafo, caracterizado pelo emprego de um vocabulário baseado na gíria e no chulo, e de uma sintaxe isenta de regras de gramática, tal como no linguajar falado.54

Porém, para distinguir objetivamente a literatura marginal da não-marginal teríamos que passar pelo crivo de perguntas como: Seria o número de livros que definiria? Seriam os temas tratados? Seria a classe social do autor? Mesmo depois de respondermos essas perguntas, ainda assim, seria grande a possibilidade de se incorrer em uma denominação não satisfatória, pois surgiriam outros questionamentos sobre o que constitui ou não o caráter marginal da literatura.

No ano de 2005, o escritor Reginaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como Ferréz, organizou uma coletânea de contos e poemas de dez autores, alguns provenientes da periferia de São Paulo e de outras partes do Brasil. Esse livro recebeu o

52 Autor de artigo que trata sobre literatura marginal e que aparece na coletânea já citada, Crítica literária em nossos dias e literatura marginal, organizada por João Francisco Ferreira.

(39)

nome de Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica.55

Nessa obra, são expostos de maneira explícita os problemas e a realidade difícil dos moradores da favela e, de um modo geral, viabiliza-se o caráter de poder dar voz aos grupos excluídos da sociedade. Se analisarmos quais eram as camadas sociais que os poetas marginais ocupavam nas décadas de 60 e 70 e as que ocupam os escritores que figuram no livro organizado por Ferréz, podemos constatar que, a partir de um ponto de vista econômico e de inserção social, há uma enorme disparidade entre eles. No entanto, o que está em questionamento é o que eles — escritores, poetas, contistas — têm a dizer a partir daquilo que produzem. Diante dessa constatação, poderíamos indagar sobre o possível surgimento de uma nova literatura marginal?

É importante salientar, como foi dito anteriormente, que o caráter marginal não pode ser entendido como diretamente relacionado à origem social do autor, mas fica evidente que tal ponto também é relevante para que se possa classificar uma obra ou um autor como marginal. Logo, entende-se que o conceito de literatura marginal não está fechado a uma ou duas características. Por exemplo, se levamos em conta o caráter de recepção das obras pelo mercado editorial e pela mídia tanto das manifestações artísticas dos poetas marginais quanto dos escritores que puderam veicular os seus contos no livro acima citado, observamos pontos convergentes, uma vez que os contos do livro Literatura Marginal assim como os poemas marginais fogem ao padrão formal, ou seja, apresentam uma linguagem própria do gueto. Especificamente podemos salientar o uso recorrente de gírias e uma ortografia bastante diferente, retratando o seu cotidiano, suas experiências, reconhecendo-se em sua comunidade, fazendo com que ela se reconheça na sua escrita, e fazendo com que essa chegue a seu mundo que, muitas vezes, nos surpreende pela sua riqueza de vivências.

55 Nessa coletânea encontramos talentos como Alessandro Buzo (Itaim Paulista), Dona Laura, moradora

(40)

O que dizer depois que livros como aqueles que são reconhecíveis dentro da perspectiva da literatura dita marginal, isto é, que têm como objetivo dar a conhecer a voz dos excluídos que vivem à margem da sociedade, caem no gosto das grandes editoras e viram fenômenos de venda? Estas escritas perdem o seu caráter de marginalidade? Elas passam de uma abordagem marginal para a de um novo tipo de cânone? Seria viável dizer da formação de um cânone marginal? Podemos afirmar de antemão que o fato de “cair no gosto das editoras” funciona como um veículo mediador que é capaz de promover uma transformação, ainda que pequena, de um tipo de literatura menos conhecido, obscuro e marginal, a uma categoria de reconhecível, constituinte de uma realidade, de relevante valor literário e, por isso, agora, mais aceita ou “domesticada”. Contudo, podemos inferir também que, em relação ao cânone ou às obras de escritores já consagrados e representantes da literatura nacional — como as de José de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa —, os textos que se constituem como objeto desta pesquisa, perante o olhar dos críticos literários, ainda seguirão representando um tipo de literatura “menor”.

Nas palavras de Saer, “La característica principal del marginal es la de no ser

negociable. Si es marginal cuando no se escribe sobre temas exigidos por la demanda,

cuando no se adoptan las formas y los géneros probados y aceptados por el

consumidor.”56

Diante dessa assertiva, podemos, desde já, reconhecer na escrita de Pedro Juan Gutiérrez alguns aspectos como o de não adotar as formas convencionais e o fato de não ser negociável, pois ele poderia, por exemplo, evitar nas suas narrativas os elementos que dão margem a uma leitura crítica sobre Cuba, porém não elege essa alternativa. Daí

56 SAER, 1997, p.109. “A característica principal do marginal é a de não ser negociável. Se é marginal

(41)

a possibilidade de que possamos também aproximá-lo da “função subversiva” que propõe Compagnon.

Mas se a literatura pode ser vista como contribuição à ideologia dominante, “aparelho ideológico do Estado”, ou mesmo propaganda, pode-se, ao contrário, acentuar sua função subversiva, sobretudo depois da metade do século XIX e da voga da figura do artista maldito.57

Nesse sentido, poderíamos dizer que o escritor cubano estaria em consonância com a proposição do escritor argentino e do teórico Antoine Compagnon, pois ainda que tivesse como referência em Cuba, escritores como Miguel Barnet, Pablo Armando Fernández, Antón Arrufat58

, entre outros, ele segue o seu propósito de desenvolver seu Novo Realismo Sujo, alternando poucas vezes, como é o caso de seu livro A melancolia

dos Leões lançado em 2000, que foi escrito sobre a perspectiva do Realismo Fantástico.

Levando ainda em consideração as proposições de Saer e Compagnon, talvez a única incoerência que poderíamos encontrar no projeto literário de Pedro Juan Gutiérrez, aqui analisado na perspectiva marginal, seria o fato de “ser aceito pelo consumidor” representar algo de grande relevância, já que podemos observar um certo padrão em sua produção literária, como podemos constatar ao realizarmos a leitura de textos como

Animal tropical (2000), Trilogia suja de Havana (2003), O insaciável Homem Aranha

(2004), entre outros.

Para Saer, “la verdadera literatura es la que manifiesta o modifica los aspectos

más oscuros y complejos de la condición humana, y que esa literatura es como el

57 COMPAGNON, 2001, p. 37.

58 Miguel Barnet (1994), Pablo Armando Fernández (1996) e Antón Arrufat (2000) são autores que

receberam o Prêmio Nacional de Literatura de Cuba, premiação criada pelo Ministério da Cultura em 1983. Esse prêmio é concedido anualmente ao conjunto da obra de um escritor cubano, residente na Ilha, que tenha realizado contribuições significativas ao auge das letras cubanas. Entre os livros desses escritores cubanos publicados no Brasil, podemos destacar Memórias de um Cimarron: testemunho, de Miguel Barnet. A única publicação brasileira em que podemos encontrar algo de Pablo Armando Fernández é Vinte poetas cubanos do século XX; seleção, prefácio e notas de Virgilio López Lemus. Trad. Alai Garcia Diniz, Luizete Guimarães Barros. Florianópolis: Editora de UFSC, 1995. Entre as obras mais conhecidas de Antón Arrufat, podemos citar La noche del Aguafiestas, prêmio Alejo Carpentier, 2000 e

(42)

contrario simétrico de la literatura oficial”59

, isto é, aquela em que a tradição oficial é a responsável pela criação dos marginais, assim como a Igreja cria os hereges.

Ainda que não haja uma classificação unívoca sobre o que é literatura marginal, é importante ressaltar quais são os elementos que a definem. Anteriormente, já foram levantadas algumas características tais como a não aceitação por parte do mercado editorial das obras, que de um modo ou de outro, fogem de um determinado padrão de literatura pré-estabelecido e também da censura que é capaz de inviabilizar a reprodução e venda de uma obra, pelo fato de a mesma atacar ideologicamente as idéias do Estado. Para que possamos entender um pouco mais sobre os constituintes de uma literatura marginal, passemos agora à análise de alguns aspectos da obra do escritor cubano.

A literatura de Pedro Juan Gutiérrez tem como imperativo o projeto de criação de um novo tipo de Realismo, que ele mesmo dá o nome de “sujo”. O entendimento desse adjetivo fica evidente já nas páginas que principiam a obra O Rei de Havana, de 1990. Para exemplificar vejamos um trecho que demonstra uma face descritiva do referido Realismo Sujo: “Rey ficou com vontade de cagar. Agüentou. Não se podia cagar. Ficou com mais vontade ainda. Ah. Apertou bem o cu e agüentou. Sentiu que ia cagar nas calças. Claro que não usava cueca. Nunca tinha usado cueca.” 60

Não seria essa nova perspectiva de abordagem sobre o mundo que o cerca e, por sua vez, a maneira como o descreve, uma nova vertente do Realismo? Essa proposição é condizente com a concepção que o autor cubano tem em relação à serventia da arte. Segundo suas palavras,

A arte só serve para alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos a nossa consciência.61

59 SAER, 1997, p. 102. “a verdadeira literatura é a que manifesta ou modifica os aspectos mais obscuros e

complexos da condição humana, e que essa literatura é o oposto da literatura oficial.” (tradução minha)

(43)

No entanto, quais seriam os elementos constatáveis que nos levam à percepção de que as formas de representação da realidade desenvolvidas por Pedro Juan Gutiérrez são diferentes daquelas já propostas por outros escritores? Esses elementos são suficientes para corroborar a existência de outra forma de Realismo?

Ainda que sejam partes de obras de diferentes autores, o seguinte exercício de aproximação de trechos servirá como um método comparativo para que possamos notar, pelo menos brevemente, se a escrita e/ou o método de um autor condiz com o do outro e se se pode dizer da existência de uma nova perspectiva de Realismo no trabalho dos dois autores. Vejamos os seguintes fragmentos:

— Não grite, porra, senão enterro a faca. Já estou com vontade de enfiar até o cabo... vou enterrar nessa barrigona gorda... diga onde está o dinheiro. — Ai, não, não tenho dinheiro! 62

Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você. O coice dela machucou meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula. Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. 63

A partir do citado, podemos ressaltar a temática da violência, a crueldade por parte dos personagens e o abjeto advindo de suas ações, ou seja, um indivíduo que dá um tiro em uma pessoa só para ver se ela fica pregada na parede.

Outros dois trechos que possibilitariam uma aproximação ainda maior em termos estéticos e temáticos em relação a atos de extrema violência são, respectivamente, extraídas dos livros O rei de Havana do escritor cubano e do já citado

Feliz ano novo de Rubem Fonseca,

O velho acertou uma boa pazada na cabeça do outro. E jogou-o no chão. Não perdeu tempo. Bateu mais, com o canto da pá. Sempre na

62 GUTIÉRREZ, 2003, p. 229. 63

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