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A RELAÇÃO ENTRE A ESCRITA DE PEDRO JUAN GUTIÉRREZ E A DE RUBEM FONSECA

3.1 – A ESCRITA “OUTRA”

A violência é tão fascinante E nossas vidas são tão normais

Baader-Meinhof Blues- Legião Urbana (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá)

Ao depararmos com a escrita dos autores Pedro Juan Gutiérrez e Rubem Fonseca nos damos conta de que algumas semelhanças podem ser encontradas quase que de imediato. Assim como a semelhança no que diz respeito ao lugar de enunciação, o tipo de escrita desses autores, como já mencionamos, coloca em evidência as relações dos grupos minoritários por meio da exposição das camadas marginalizadas da sociedade (bandidos, prostitutas, homossexuais, gigolôs etc.). Há ainda semelhança no caráter de opressão com relação à veiculação das obras desses dois autores, fazendo a ressalva de que a obra Rubem Fonseca só pode figurar nessa perspectiva se considerada a censura que existiu em relação ao livro Feliz ano novo na época da ditadura militar no Brasil.

Podemos começar abordando alguns dos aspectos temáticos relevantes que esses dois autores desenvolvem em suas obras, isto é, a tríade sexo, erotismo e violência. Esse último componente da tríade talvez seja um dos aspectos que permitam uma aproximação mais imediata e reconhecível, a nosso ver, das obras analisadas nesta dissertação.

A maneira direta como os narradores colocam o leitor em contato com determinados tipos de situações, ou seja, um mundo que não lhe é de todo alheio, mas que ainda o choca, seguramente, causa-lhe certo desconforto, pela crueldade e frieza com que os atos violentos aparecem nas narrativas. Como dito há pouco, o mundo

pelo fato de esse mesmo leitor acompanhar nos noticiários e jornais de grande circulação os desdobramentos em relação à violência que, muitas vezes, ganha ares de banalizada.

A violência retratada na obra desses dois autores latino-americanos, ainda que faça parte do cotidiano de muitos leitores, seja por meio dos noticiários ou da mídia em geral111, pode-se dizer que também exerce um determinado “fascínio”112 por ser uma

realidade brutal, comovente, que não é a sua, mas está muito próxima.

Ainda que ressaltada a importância que têm os meios de comunicação no processo de divulgação da violência, podemos dizer que o modo como esses autores trabalham essa temática permite que o leitor fique, muitas vezes, “pasmado” com a descrição e exposição do ato violento. Nas palavras de Lafetá, quando analisa a mudança do lirismo à violência em Rubem Fonseca, o que se pode observar em alguns contos desse escritor carioca é a transposição “do equilíbrio da ação e subjetividade à brutalidade do ato realizado sem hesitações, com crueldade fria e deliberada”113. O autor

ainda expõe que um livro essencial para começarmos a ver a mudança é Lúcia

MacCartney114, onde é salientado que, a partir daí, Rubem Fonseca vai deixar cada vez

mais evidente a violência em seus textos. A título de exemplo, vejamos uma passagem de O rei de Havana que, de modo similar, traz essa questão da violência que impacta o leitor pela maneira como é descrita pelo narrador:

111 Nesse contexto podemos destacar filmes como Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e

recentemente 174, baseado no documentário Ônibus 174 (2002) do diretor José Padilha, que têm como pano de fundo a violência e a guerra entre bandidos e policiais nos grandes centros urbanos do país.

112 Apesar de não ser objeto direto desta dissertação analisar os efeitos da leitura e a relação do texto com

o leitor, vale ressaltar a importância do ensaio de Seligmann-Silva (2005, p. 31-44), que, além de fazer menção às reações do leitor diante das obras que tematizam situações de terror e nas quais aparecem elementos relacionados ao abjeto, expõe de uma maneira histórica a teorização sobre o abjeto e o sublime e a mudança do enfoque atual na observação sobre os componentes desses dois conceitos.

113 Segundo Lafetá (2004, p. 372-393), pode-se perceber na obra de Rubem Fonseca uma transição de

seus primeiros contos que continham uma vertente lírica na qual se podia identificar um herói romântico sonhador a uma perspectiva demoníaca e cruel desse mesmo herói. Tudo isso na tentativa de mimetizar a crescente violência da sociedade brasileira e torná-la central em sua literatura.

114 Nesse livro publicado em 1967 pela Editora Olivé encontramos 19 narrativas do escritor carioca, que

tem entre seus protagonistas um boxeador em uma luta de vida ou morte, a prostituta ingênua que se apaixona por um cliente, entre outros.

No meio da briga, a gozação da putinha o machuca ainda mais. Dá um forte empurrão na mãe e a joga de costa contra o galinheiro. De um canto da gaiola, projeta-se uma ponta de cabo de aço que se crava em sua nuca até o cérebro. A mulher nem grita. Abre os olhos com horror, leva as mãos ao ponto onde entrou o aço. E morre apavorada. Em segundos, forma-se uma poça de sangue grosso e de líquidos viscosos. Nelson vê aquilo e de repente desaparece o ódio que sente pela mãe.115 Em termos de recorte teórico, pode-se inclusive contestar o porquê da seleção do livro O Rei de Havana e não Trilogia Suja de Havana116

, já que Feliz Ano Novo do escritor brasileiro Rubem Fonseca, assim como Trilogia suja de Havana é um livro de contos. Essa escolha justifica-se pelo fato de que para uma melhor abordagem sobre os personagens do conto Feliz ano novo, que é um dos textos centrais de nossa análise, podemos dizer que o personagem principal de O rei de Havana, levando-se em conta algumas semelhanças que podem ser encontradas entre eles, representa um tipo de marginal que pode ser considerado menos violento, sádico e perverso em relação aos de Rubem Fonseca. Nesse sentido, o personagem Reinaldo poderia representar um ponto inicial do desdobramento até chegar à equivalência de um personagem como Pereba ou

Zequinha. Partimos do pressuposto de que o conto de Rubem Fonseca funciona como

um estágio otimizado daquilo que virá a ser o personagem Reinaldo, depois de passar algumas experiências que contribuíram para torná-lo um assassino como os demais são.

Além dos aspectos que aproximam as obras desses dois autores latino- americanos, é interessante ressaltar também os pontos em que elas se distanciam. Um aspecto sobre a produção artística do escritor cubano será trazido mais adiante quando da abordagem sobre a manifestação cultural que tem lugar fora de seu local de origem, isto é, que é publicada fora do seu lugar de enunciação.

115 GUTIÉRREZ. 2001, p. 13. 116

Trilogia suja de Havana foi lançado, em 1998, pelo Editorial Anagrama de Barcelona, Espanha. Foi publicado no Brasil, em 2003, pela Companhia das Letras. Nesse livro, estão reunidos três conjuntos de contos que deveriam ser lançados separadamente, “Ancorado em Terra de Ninguém”, “Nada a Fazer” e “Sabor a Mí”. No entanto, por fim, dado o caráter de continuidade que demonstra o conjunto, o autor

Quando analisa a publicação do livro O ninho da serpente, memórias do filho do

sorveteiro117, de autoria de Pedro Juan Gutiérrez, Oswaldo Martins faz a seguinte

ressalva sobre o escritor cubano: “Ao mesmo tempo elege o estrangeiro como um não lugar e o lugar como estrangeiro, o sujeito nem aqui nem ali é mais sujeito da história, senão boneco de um teatro de líderes sem cara.”118

Nesse sentido, podemos entender que a resistência em sair da ilha, que o autor demonstra em muitas de suas narrativas, faz com que tenhamos a idéia de que o exterior, o estrangeiro, o estar fora é uma alternativa, mas o seu lugar de origem também é outra possibilidade, ainda que não corresponda totalmente às suas expectativas. Então, Pedro Juan Gutiérrez fica em um ponto de intercessão ou em um não-lugar que não é nem um nem outro, em um contexto de mudança de território com intuito de se fazer escutar ou mesmo divulgar a sua obra e expor a sua visão sobre o seu país. Podemos utilizar o conceito de “diáspora” empregado por Stuart Hall para entender esse movimento realizado por Pedro Juan Gutiérrez na maioria das vezes que tem que lançar um livro. Vejamos alguns trechos que dão conta de que a perspectiva do estar fora é uma realidade, muitas vezes, atraente àqueles que habitam Cuba, e o mesmo entendemos que pode funcionar também para a perspectiva do autor:

— E sua filha?

— Melhor não falar disso. — Por quê?

— Uhmm.... está na Itália. — É?

— Casou com um italiano.

— Bom, ela se virou bastante por aqui, lembra? Agora, pelo menos, está vivendo bem. 119

117

O ninho da serpente, memórias do filho do sorveteiro, lançado em 2005 no Brasil pela Companhia das Letras, é um romance autobiográfico em que o autor inclusive faz ao início uma ressalva dizendo que é uma obra ficcional. Nessa narrativa, podemos tomar contato com o alter-ego do autor, o narrador Pedro Juan que tem quinze anos e que no decorrer do romance nos mostra suas percepções acerca do momento político e social que se seguiu após a Revolução Cubana, juntamente com o descobrimento e desenvolvimento sexual obsessivo do narrador.

118 MARTINS. http://aguarras.com.br/2006/11/01/pedro-juan-gutierrez/. 119

Olhe, Rey, a gente tem que se projetar, eu agora estou colado numa norueguesa. Ela vem em fevereiro pra casar comigo e eu vou me mandar.

— Pra onde? — Pra Noruega. 120

Segundo Hall, “O conceito fechado de diáspora se apóia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um “Outro” e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora”121. Um dos livros de Pedro Juan Gutiérrez que mais ressalta esse caráter de

deslocamento é Animal Tropical122, publicado em 2000. Nele, podemos perceber o olhar

do autor em uma perspectiva meta literária e o seu afastamento do seu local de origem. Consideramos interessante para a nossa análise esse distanciamento do seu lugar de procedência e, ao mesmo tempo, a constatação de um movimento diaspórico em função da viabilidade da publicação dos livros, pois esse aspecto se relaciona muito ao que propõe Hall:

Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada no nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. É impermeável a algo tão “mundano”, secular e superficial quanto uma mudança temporária de nosso local de residência123.

Dessa maneira, a transposição de um lugar a outro funciona inclusive para reforçar esses traços próprios do povo cubano. Ainda que venha a ocorrer uma mudança para outro lugar que não é o seu país de origem e que tal fato signifique a possibilidade de se desfrutar de uma condição melhor, mesmo assim surgirá uma espécie de

120

GUTIÉRREZ. 2001, p. 113.

121

HALL, 2003, p. 33.

122 Animal tropical, 2002, Companhia das Letras, romance de ficção e de caráter autobiográfico, narrado

em primeira pessoa e que traz por meio das percepções do narrador a contraposição de se viver em Cuba diante de tantas limitações e a Suécia, isto é, da possibilidade de usufruir de um bem estar diferente daquele de seu país de origem. As contraposições e eleições ocorrem também entre o sexo pálido e normal com a amante sueca Agnes ou o sexo caloroso, despudorado e explosivo da prostituta cubana Gloria.

incompletude, pois como se pode perceber a partir do livro anteriormente mencionado, a volta ao lugar de origem cumpre a função de fazer com que haja um encontro consigo mesmo, com o povo cubano, com o jeito de ser desse povo. Há um trecho no final de

Animal Tropical em que transparece essa questão do retorno, que é enriquecedora e, ao

mesmo tempo, a importância que cumpriu o distanciamento que o narrador teve em relação às suas origens e que, por fim, o fez aproximar de seu eu verdadeiro.

En el monte, hacia Campo Florido, hay dos vallas de gallos, cladestinas pero sin problemas. Y venden ron barato y tabacos de un peso. ¿Qué más necesito? No quiero computadoras, ni e-mail, ni Internet, ni quiero que me jodan más. Que me dejen en paz y no me molesten.124