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A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL EM O REI DE HAVANA

2.1 – SOBRE A IDENTIDADE

Más recuerdos tengo yo solo que los que habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo. (Borges).

Antes de dar início ao desenvolvimento do caráter da constituição da identidade nacional, faz-se relevante que ressaltemos mais uma vez que, para realizar essa abordagem, os Estudos Culturais servirão como guia na denominação e desdobramentos sobre o que se entende por “identidade(s)”, a partir de um enfoque dos grupos minoritários e de sua representatividade dentro da nação.

Os Estudos Culturais se constituem como os representantes de primeira ordem no que diz respeito ao estranhamento de objetos literários entre os estudos da Crítica Literária. Essa questão talvez possa ser explicada pelo caráter da interdisciplinaridade. No entanto, com os devidos direcionamentos e enfoques a serem desenvolvidos se constatará, por conseguinte, que na essência do tema sobre o estranhamento estarão as diferentes leituras (política, cultural e social) que, em um primeiro momento, causam um determinado “desnorteamento” quanto à delimitação do que é especificamente literário.

Segundo Yúdice, “Os fundadores dos Estudos Culturais já não viam mais a cultura com uma realização de civilizações, mas como estratégias e meios pelos quais a língua e valores de diferentes classes sociais refletem um senso particular de comunidade”.77 Esse fato reflete bem o caráter político ou micro-político que é delegado aos Estudos Culturais, sobretudo no que se refere à representatividade das minorias.

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Quando se ressalta, por exemplo, que tudo é margem e se perdeu o fio condutor que tratava particularmente da obra, “que é o texto literário”, nota-se algo em evidência, ou seja, as produções culturais passam a ser estudadas, como já foi dito anteriormente, em relação a outras estruturas, sejam elas históricas, políticas ou sociais.

Nas palavras de Stuart Hall, “a formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais.”78 E diante dessa assertiva surge a seguinte pergunta: É a nação realmente representada por essa “homogeneidade cultural”? Se fosse sim a resposta a essa pergunta, não teríamos com tanto vigor e efervescência o surgimento dos Estudos Culturais, pois desse modo não se tornariam aparentes os problemas de identificação e representatividade dos sujeitos e grupos que constituem os países pós-coloniais subdesenvolvidos.

Sobre a unificação da cultura, completa Hall: “As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades.”79

Porém, podemos construir dois ou mais tipos de identidade nacional. Uma pelo Estado e outra pelos grupos minoritários que se sentem à margem do processo de representação político-cultural.

A título de exemplo, analisemos a representação nacional exposta pelo Estado cubano e a exposta nas obras de Pedro Juan Gutiérrez. Na verdade, podemos afirmar que essas representações são muito divergentes entre si.

É interessante buscar a perspectiva de polifonia de vozes de Bakhtin80

para colocar em evidência a possibilidade de virem à tona os discursos das minorias e, ao

78 HALL, 1999, p. 49. (grifo do autor) 79 HALL, 1999, p. 51.

mesmo tempo, refutar o pensamento da construção de imagem da nação representada de modo homogêneo, ou seja, um coletivo com um passado e representação cultural comuns.

No momento em que adotamos o conceito de polifonia de Bakhtin, podemos perceber uma perspectiva monológica de representação discursiva da nação por parte do Estado e outra heterogênea que surge a partir dos discursos dos grupos minoritários. Nesse sentido, não é difícil explorar a máxima de que existe uma Cuba cujo Estado socialista se auto-intitula operário, popular, veiculador da igualdade entre seus cidadãos e defensor dos direitos desses e outra que aparece na obra de Pedro Juan Gutiérrez como uma nação conduzida por um regime socialista “caduco”, cujo Estado é incapaz de estar atento à realidade do povo que luta pela sobrevivência em uma ilha “caindo aos pedaços”, na qual a maioria dos cidadãos só consegue ver uma possibilidade de viver dignamente em outros países e não na ilha de Fidel Castro. No trecho a seguir, podemos contemplar o tratamento que o Estado tem em relação a alguns contraventores da lei imposta pelo regime castrista:

Outros três policiais faziam a mesma coisa ao acaso, com qualquer transeunte. Revistavam bolsas e pacotes e indagavam a origem disto e daquilo. Se encontravam qualquer anormalidade, detinham o cidadão e levavam preso. Por “anormalidade” se entendia carne de vaca, ovos, leite em pó, queijos, atum, lagosta, café, cacau, manteiga, sabão, enfim, uma quantidade de produtos que circulava no mercado negro a preço menor que nas lojas de dólar e que não existia nas de pesos cubanos81.

No livro Microfísica do Poder, especificamente no capítulo “Sobre a Prisão”, Michel Focault, respondendo questões relativas à necessidade da delinqüência em uma sociedade industrial do século XIX, expõe um ponto interessante que serve como pano

autonomia ideológica. Usamos o conceito de polifonia nesta dissertação no sentido de demonstrar uma heterogeneidade de vozes, isto é, a presença de outras vozes dentro de uma voz.

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de fundo para analisarmos também a situação do povo cubano a partir de uma leitura política de Rei de Havana.

“A sociedade sem delinqüência foi um sonho do século XVIII que depois acabou. [...] Sem delinqüência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente? [...] Esta instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica senão por isto. Aceitamos entre nós esta gente de uniforme, armada enquanto nós não temos o direito de o estar, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso seria aceitável se não houvesse os delinqüentes?” 82

Como ressaltado anteriormente, quando abordada a questão sobre a possibilidade de constatar a existência de duas Cubas, uma pela perspectiva do socialismo cubano e outra que aparece nos livros de Pedro Juan Gutiérrez, poderia ser possível e aceitável pelos cidadãos constituintes da Cuba ditatorial socialista, e, portanto, aquela dos partidários e militantes dos ideais da Revolução Cubana, que tal intervenção policial poderia ser aceitável e compreensível. Esse fato se justifica, sobretudo por se ter a convicção de que quando a polícia, ou mesmo o Estado que é quem regulamenta tal instituição coercitiva e punitiva, intervém para que não haja um comércio de gêneros alimentícios que estão previamente proibidos, o cidadão militante possivelmente entenderá que quem foge à regra (tendo acesso ilícito a determinados produtos que estão na cartilha de racionamento), certamente está contrariando um regulamento que zela pela igualdade entre o povo cubano, ou seja, uma igualdade entre os cidadãos que o Estado quer resguardar. Porém, quando analisamos o trecho mencionado anteriormente, percebe-se, com a existência do mercado negro de gêneros alimentícios, que o povo quer ter acesso à comida e desfrutar daqueles benefícios somente destinados aos turistas.

Portanto, quando fazemos uma aproximação do trecho extraído de O rei de

Havana em relação ao que propõe Focault, observamos que a instituição policial nesse

contexto, seguindo os propósitos de conter os atos que afrontam o regime ditatorial

cubano, cria uma nova classe de delinqüentes. Com isso, aqueles cidadãos que venderem ou comprarem alimentos que somente o Estado detém o monopólio e faz um rígido controle por meio de uma cartilha de racionamento estarão passíveis de sofrer sanções punitivas.

Quando se analisa uma obra, é importante fazer uma separação do “real” e do “ficcional”. Pelo menos essa é uma premissa da qual se valem alguns escritores como é o caso do próprio Pedro Juan Gutiérrez, que ora assume um caráter autobiográfico, ora tenta se desvencilhar da tentativa de busca do “real” que expõem os seus livros. Contudo, tal prerrogativa de separação entre o real e o ficcional tem funcionado muito bem a partir dos preceitos platônicos de que a escrita não consegue levar à verdade e que no cerne da questão o que opera realmente são as interpretações. No entanto, tentar desvencilhar uma obra do contexto social e histórico no qual ela foi concebida é algo difícil, inclusive quando se analisa o livro O rei de Havana.

Permeia essa obra de Pedro Juan Gutiérrez, além do sincretismo religioso83

que aparece em diversas partes do livro, uma característica do “ser forte e persistente” do povo cubano, o que faz com que tenhamos uma determinada afinidade com sua obra e os personagens nela descritos, pois em geral o latino-americano é um povo sofrido e está inserido em uma atmosfera de muitos contratempos, tais como desigualdade social, fome e outros aspectos que o lança à categoria de povo subdesenvolvido ou em desenvolvimento. Essa visão é destoante daquela veiculada pela mídia cubana que põe em evidência somente a questão do embargo econômico dos EUA e que tudo vai muito bem, inclusive a educação que é uma das melhores da América Latina e dos índices de analfabetismo que são insignificantes.

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Apesar de não ser o foco de nossa pesquisa, podemos observar em diversas passagens do livro a questão religiosa na formação coletiva do povo cubano. As igrejas com suas imagens (que na visão do protagonista são bonecos grandes), a senhora negra que coloca uma oferenda em uma encruzilhada, a cigana que quer ver o futuro do protagonista e a cena em que a/o amante de Rey recebe uma entidade. Esses trechos demonstram o sincretismo existente e o bom convívio entre os diferentes segmentos.

Corroborando ainda a idéia de uma visão das duas Cubas, é interessante ressaltar que além do caráter restritivo que o povo cubano tem em relação a determinados benefícios que são destinados respectivamente aos turistas, como foi ressaltado anteriormente, outro aspecto importante é o próprio território da Ilha que está também divido e restrito a determinados cidadãos cubanos. No trecho a seguir, esse aspecto é abordado de um modo visível quando o personagem Rey sai de Varadero (um complexo turístico com praias exclusivas para turistas) em direção a Havana.

Rey saiu andando para a ponte levadiça. Atravessou para o outro lado. Os policiais estavam ocupados com alguém que queria entrar. Nem olharam para ele. O problema era entrar. Continuou andando pela beira do canal e deixou para trás o Red Coach, o Oásis, anoiteceu. 84 Quando o personagem chega à Havana, o aspecto da divisão territorial (ou mesmo das duas Cubas) torna-se ainda mais perceptível: “Que bom. Varadero era limpo e bonito demais, tranqüilo e silencioso demais. Não parecia Cuba. “O gostoso é aqui, isto aqui é que é meu”, disse a si mesmo. O Rei de Havana, outra vez em seu ambiente.”85

O que podemos perceber no sistema socialista cubano é algo semelhante ao que propõe Stuart Hall, quando trata da questão do impulso da unificação nas culturas nacionais, ou seja,

“[...] não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá- los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma grande família nacional.”86

Se o conceito de identidade para Hall passa por uma crise nos tempos modernos, para Bhabha, o caráter de ambivalência da nação (a negociação entre o pedagógico e o performático87), sobretudo a partir do performático, já introduz o contexto de

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GUTIÉRREZ, 2001, p. 156.

85 GUTIÉRREZ, 2001, p. 157. 86 HALL, 1999, p. 59.

fragmentação de uma identidade nacional unívoca dita em um primeiro momento como una e vertical.

Sobre a problemática em torno da formação da identidade cultural Hall expõe que

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente.88

Nesse sentido, a partir das considerações feitas por Hall e levando em conta a proposição de Bhabha sobre a ambivalência da identidade, ressaltando o caráter mesmo de completude e negociação que há entre o caráter pedagógico e performático, podemos ir ao encontro de uma perspectiva sobre o conceito de identidade que acreditamos que deve ser reformulado, ou seja, devemos nos referir a identidades. O plural em relação a esse conceito define bem o caráter heterogêneo do que se pode chamar de “identidade”.

A pergunta que faz Benedict Anderson diante da linguagem do pertencimento nacional é de grande valia para entender um pouco mais sobre a questão. “Mas por que as nações celebram sua antiguidade, não sua surpreendente juventude?”89 O questionamento de Anderson se adequa bem à questão de como é o processo de formação de identidade fora dos moldes europeus e pós-coloniais e a referida juventude seria a representatividade que os grupos minoritários adquiriram com a emergência dos Estudos Culturais.

homogênea e institucional, já o caráter performático não está diretamente relacionado a uma homogeneidade, ou mesmo a uma perspectiva rígida e estática, mas está em constante movimento.

88 HALL, 1999, p. 13. 89