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A DOMESTICAÇÃO DO MARGINAL: O VALOR LITERÁRIO E O MERCADO COMO ELEMENTOS DE REDENÇÃO DA OBRA

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há mais de um quarto de século, ou seja, em meados de 1981, já se levantavam dúvidas sobre os meios eficientes e especificamente científicos que fossem capazes de denominar uma literatura como constituinte de uma perspectiva marginal ou não. Um livro de ensaios relevante e abridor de águas em relação ao tema é Crítica Literária em

nossos Dias e Literatura Marginal que tem como organizador João Ferreira. Muitos

anos se passaram e foram realmente poucas obras de caráter crítico-literário que surgiram até os dias atuais que aprofundassem a questão sobre o conceito de literatura marginal ou mesmo dos desdobramentos do conceito “marginal” no contexto da literatura. Quando muito, podem-se encontrar algumas obras como a já citada anteriormente, ou outras que tocam superficialmente a questão da literatura marginal, como é o caso de Agosto e o discurso marginal fonsequiano, de Osmar Pereira Oliva, e

A lógica do mundo marginal na obra de Rubem Fonseca, de Maria Lidia Lichtscheidl,

que tratam da estética de criação de Rubem Fonseca, das classes marginalizadas na construção do cenário das narrativas e se fala pouco da escrita desse autor numa perspectiva marginal em relação a outros autores que já fazem parte de um cânone literário reconhecido. Logo, é possível fazermos o seguinte questionamento: se uma obra apresenta no seu enredo grupos marginalizados da sociedade, a partir do ponto de vista minuciosamente descritivo dos personagens, de sua maneira não convencional de se comunicar (uso de gírias, vocabulário de baixo calão etc.), ela pode ser, necessariamente, considerada marginal?

Do conto “Intestino Grosso” do livro Feliz ano novo de Rubem Fonseca, destacamos um trecho para que se possa ter uma idéia do que seja o ofício de ser escritor. Apesar do caráter de ficcionalidade, podemos trazê-lo para uma perspectiva de

reflexão sobre o cânone, isto é, aqueles textos ou autores que servem como modelo para outros que têm a pretensão de também serem escritores. Vejamos o fragmento em que o escritor-personagem responde e discursa sobre o tema e que, de certo modo, já introduz inicialmente a questão sobre aqueles textos que são produzidos fora de um padrão convencional e que, nesse sentido, vão ser considerados à margem da literatura vigente: “Quando foi que você foi publicado pela primeira vez? Demorou muito?”

“Demorou. Eles queriam que eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu não queria, e não sabia.”

“Quem eram eles?”

“Os caras que editavam os livros, os suplementos literários, os jornais de letras. Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida.”40

Como dito anteriormente, os poetas marginais se valiam de meios alternativos para que pudessem viabilizar a difusão de seus trabalhos, uma vez que o mercado editorial não se interessava pelo tipo de literatura que eles se propunham a realizar. E no caso de Rubem Fonseca que já tinha o respaldo de uma editora e já havia vendido milhares de unidades de seu livro? De que maneira pode-se dizer que esse é um autor marginal? A resposta a esses questionamentos se esclarece justamente pelo descontentamento do órgão censor do Estado ditatorial vigente no Brasil. Entende-se que o caráter marginal da obra Feliz ano novo e o de seu autor não tiveram, necessariamente, uma má aceitação por parte do mercado editorial, mas sim uma ação de caráter proibitivo por parte do poder estatal por entender que o livro atentava contra a imagem do país, uma vez que Rubem Fonseca expunha de modo direto e sem rodeios, questões como a explosão da violência nos grandes centros urbanos, a miséria da população e as “obscenidades” desses marginalizados sociais. No campo cultural, muitas foram as manifestações artísticas que tiveram que purgar sob pena dos censores do Estado ditatorial que marcou a história do Brasil. No teatro, por exemplo, podemos

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citar Plínio Marcos, autor que trazia em suas obras dramáticas personagens que permeavam os ambientes miseráveis e expunham seus conflitos de modo agressivo e envoltos por uma atmosfera pessimista e, muitas vezes, sem saída.41 No campo da música, podemos destacar Geraldo Vandré, com a canção que se tornou hino de resistência ao governo militar Pra não dizer que não falei de flores.42 Muitos são os exemplos que poderíamos dar em relação a esta passagem obscura que teve lugar nos anos que se seguiram de governo militar, 1964/1985, com destaque aos “Anos de Chumbo” momento mais repressivo que teve lugar no fim de 1968, com a criação do AI-5 até o ano de 1974, fim do governo Médice. Nesse contexto, ou seja, o período histórico em que o governo ditatorial praticou de modo severo o caráter coercitivo em relação às manifestações artísticas que se chocavam contra os preceitos estabelecidos pelos censores, encontramos Rubem Fonseca, em função de sua obra Feliz ano novo, no patamar de “marginal contextual.”43

Sobre a perspectiva do aparecimento do contexto dos marginalizados sociais que citamos anteriormente, o seguinte trecho do conto Feliz ano novo, que dá nome ao livro de Rubem Fonseca, exemplifica de forma bastante eficaz essa última assertiva:

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.

41 A título de exemplo podemos citar duas obras de Plínio Marcos que podem ser inseridas nesse

contexto. Elas são Dois perdidos numa noite suja, de 1978, e A mancha roxa, de 1988. A nosso ver, essas peças retratam de modo direto os conflitos vividos por personagens que estão à margem do sistema e que em situações desesperadoras, muitas vezes, chegam a perder a “sanidade”. De maneira aproximativa, os personagens de Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez também cometem atos violentos e brutais em relação a outros personagens.

42 Pra não dizer que não falei das flores ganhou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção de

1968. Esse festival durou de 1966 a 1972. Pouco depois de ser premiada, essa música de Geraldo Vandré foi censurada e acusada de “ofender” à Instituição, uma vez que trazia versos como “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão”. Outras músicas que foram censuradas na época da ditadura no Brasil foram: Apesar de você (1970), de Chico Buarque de Holanda e Cálice, interpretado por Chico Buarque e Gilberto Gil (1973).

43 Desse modo, entendemos que Rubem Fonseca pode ser considerado “marginal contextual” pelo fato de

Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.44

Mais adiante veremos que somente o aparecimento dos grupos marginalizados e suas relações com outras camadas da sociedade não são suficientes para perceber uma obra como constituinte de uma abordagem marginal. Esse caráter estaria associado, ao nosso entendimento, ao desenvolvimento de um projeto literário que não se vincula, por exemplo, à ideologia dominante45, porém, desde já, podemos inferir que esta realidade faz parte de um contexto geral que posteriormente justificará o caráter “marginal estético” da obra.

Atualmente, o termo marginal ainda está muito relacionado à poesia marginal, o que pode ser visto como positivo se observamos quais os mecanismos que propiciaram tal adjetivo ao segmento da poesia brasileira na década de 70, quando o regime militar atuava no Brasil.

A seguir, temos uma constatação de que além de estarem inseridos em uma perspectiva marginal de publicação no mercado editorial no Brasil, os poetas marginais expunham uma suspeita em relação ao sistema político vigente, posicionamento esse não presente na abordagem de Rubem Fonseca.

Segundo Clélia Simeão Pires,

a linguagem brutalista de Rubem Fonseca ─ que se apresenta, na maioria dos casos, em primeira pessoa ─, apesar de refletir um ceticismo em relação à condição humana, em termos políticos, não representaria um posicionamento de desconfiança com relação ao sistema ou às linguagens do poder como fizeram os poetas marginais.46

44 FONSECA, 2000, p.14.

45 Utilizamos o termo “ideologia dominante” para nos referirmos ao conjunto de idéias relativas ao Estado

militar e seu alcance sobre a produção cultural de um determinado espaço e momento histórico.

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Tal assertiva pode ser, se não parcialmente desconsiderada, pelo menos, insuficiente para que entendamos o contexto histórico daquela época, uma vez que Rubem Fonseca, segundo João Luiz Lafetá, expõe que “a violência mostrada nos contos era a violência na qual o Brasil estava mergulhado pelo regime. Logo, as estórias contadas por Rubem Fonseca funcionavam como verdadeiras zombarias das afirmações oficiais.”47

Assim sendo, podemos dizer que tanto Rubem Fonseca quanto os poetas marginais dispunham de elementos dentro de suas composições artísticas que funcionavam como contestadores da realidade política do país e traziam à tona aspectos do momento histórico do qual faziam parte. Entre os poetas marginais que escreviam a partir dessa postura de contestação e insatisfação em relação ao momento histórico- político-social e repressivo da ditadura militar no Brasil, podemos destacar, entre outros, Antônio Carlos Brito — Cacaso, Jorge Mautner, Torquato Neto, Charles, Chacal, Waly Salomão Geraldo Carneiro, Antônio Risério, Tite de Lemos, Ronaldo Bastos, Ronaldo Santos e Bernardo Vilhena. A título de exemplo, vejamos um fragmento do poema intitulado Perpétuo socorro do poeta Charles, que de certo modo evidencia “o clima de desilusão e de crítica a esse discurso em certa medida populista”48

O operário não tem nada com a minha dor

Bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto ri do meu cabelo

minha cara estúpida de vagabundo dopado de manhã no meio do trânsito

torrando o dinheirinho miúdo a tomar cachaça pelo que aconteceu

pelo que não aconteceu

por uma agulha gelada furando o peito49

47 LAFETÁ, 2004, p. 389. 48 BARROS. http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=234&breadcrumb=1&Artigo_ID=3 672&IDCategoria=4018&reftype=1.

Podemos perceber um distanciamento entre o eu-lírico e o operário, que estando de lados opostos se aproximam em relação ao álcool, visto aqui como um signo que dá margem a “válvula de escape” se levamos em consideração o momento histórico no qual eles estão inseridos, ou seja, um período em que há censura, repressão e perseguição. A diferença entre os mundos dos dois é percebida na forma como eles se vêem, um cumprindo a rotina do trabalho, o outro parecendo só pensar em desfrutar a vida. Um bebendo o que restou do dinheiro, mas ambos pensando no que aconteceu e naquilo que não aconteceu. Naquele momento histórico, os acontecimentos, prisões, perseguições, manifestações chegavam a todas as classes. A “agulha gelada furando o peito” podemos associar à figura da repressão do Estado ditatorial, que acorda o intelectual ou o operário no meio da noite sob a mira do fuzil com sua baioneta na ponta.

Maria Antonieta Pereira ressalta que existem duas abordagens sobre a obra de Rubem Fonseca nas décadas de 80 e 90. Primeiro “enfatizava-se a relação entre literatura e as questões sociais, numa tentativa de ler a ficção via realidade”50, já na década de seguinte “a crítica propõe uma leitura mais centrada nos próprios artifícios fundadores da narrativa.”51 Neste capítulo, buscamos especificamente as abordagens que estejam mais direcionadas à perspectiva dos anos 90, na qual os elementos estéticos serão analisados e postos como características de uma obra marginal a partir de um ponto de vista estético.