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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MONIQUE ALESSANDRA SEIDEL O COMPADRIO ESCRAVO NA FREGUESIA DE PALMEIRA: PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS ( ).

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MONIQUE ALESSANDRA SEIDEL

O COMPADRIO ESCRAVO NA FREGUESIA DE PALMEIRA:

PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS (1831-1850).

CURITIBA

2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MONIQUE ALESSANDRA SEIDEL

O COMPADRIO ESCRAVO NA FREGUESIA DE PALMEIRA:

PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS (1831-1850).

Monografia apresentada à disciplina de

Estágio Supervisionado em Pesquisa

Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Martha Daisson Hameister

CURITIBA

2010

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SUMÁRIO

RESUMO 4

INTRODUÇÃO 5

1.PALMEIRA, ESCRAVOS E FAZENDAS DE GADO 9

1.1 BRASIL IMPÉRIO E ESTUDOS DA ESCRAVIDÃO 10

1.2 A FREGUESIA NOVA DE PALMEIRA 16

1.3 A FREGUESIA NOVA DE PALMEIRA 22

2. ASPECTOS GERAIS DO COMPADRIO NA FREGUESIA

DE PALMEIRA 28

2.1 SOBRE OS REGISTROS DE BATISMO DE PALMEIRA (1831-1850) 33

2.1.1 As fontes 33

2.2 TRABALHANDO OS DADOS 35

2.2.1 Os batizados de crianças escravas 39

2.2.2 Filhos de livres e escravos 41

2.2.3 Africanos, expostos e índios 46

2.2.4 Segundo padrinho 50

3. PADRINHOS E MADRINHAS: HIERARQUIAS DEFININDO

TRAJETÓRIAS 54

3.1 COMPADRES E COMADRES PREFERIDOS DE PALMEIRA 56

3.2 MANOEL E ESMERIA, COMPADRES E ESCRAVOS 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS 72

FONTES 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 76

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RESUMO

Palavras-chave: compadrio escravo – campos gerais – século XIX.

Na freguesia nova de Palmeira, entre 1831 e 1850, dois escravos se destacavam na função de padrinhos. Manoel e Esmeria, casados, tiveram mais afilhados que qualquer habitante da localidade. Sua trajetória despertou questionamentos não só quanto aos motivos de tal sucesso, mas também quanto aos padrões de compadrio que se estabeleciam em Palmeira durante o período e como essa relação poderia ser parte de estratégias de ascensão social ou de fortalecimento de laços já estabelecidos. Era um ambiente que ainda procurava estabilidade e o compadrio teve seu papel nesse processo. A trajetória do casal de escravos é um exemplo da importância social do batismo, mas está inscrita num conjunto maior de relações de compadrio envolvendo escravos. Por isso, foi necessário o estudo tanto de casos individuais quanto do conjunto. Por meio dessa abordagem, foi possível perceber que a família teve um papel essencial nesses laços. O compadrio foi além do parentesco espiritual entre indivíduos, ele gerou redes envolvendo famílias e seus dependentes, numa relação de troca, solidariedade e poder.

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INTRODUÇÃO

Numa pesquisa preliminar dos assentos de batismo da freguesia nova de Palmeira, um nome passou a chamar muita atenção entre os padrinhos. Era Manoel, escravo de Domingos Inácio de Araújo, proprietário de terras já conhecido por meio de pesquisas anteriores da Lista de Habitantes feita no ano de 1835.1 Logo percebeu-se que se tratava de um homem casado e com filhos. Sua mulher, Esmeria, também foi presença constante entre as madrinhas da freguesia à época. Uma constatação inesperada foi a de que o casal de escravos foi o mais ativo no apadrinhamento dos palmeirenses por todo o período no qual sua trajetória ascendente como padrinhos se inscreveu.

Mas qual o motivo de tal sucesso que ultrapassou até os membros das famílias mais tradicionais e abastadas da localidade? Para entender esse pequeno e curioso caso da história do compadrio em Palmeira, foi preciso investigar o contexto no qual ele se desenrolou e as pessoas que envolveu e que de algum modo compartilharam ou conviveram com essa atuação.

Mas o que faz com que um casal de escravos tenha mais afilhados que qualquer fazendeiro ou dona da região? A trajetória do casal de escravos é de fato curiosa, mas para entender como ela foi possível, é preciso investigar não só contexto o qual ela se desenrolou, mas também os principais indivíduos que de algum modo compartilharam dessa atuação.

Para isso, foi adotada a criação de quadros que reunissem informações quantitativas retiradas dos assentos batismais, separando em grupos os batizandos, conforme sua condição jurídica. Foram analisados separadamente africanos, crianças expostas e indígenas, levando em consideração o caráter especial desses apadrinhamentos. Desse modo foi possível visualizar padrões gerais do compadrio conforme o tipo de afilhado quanto à escolha dos padrinhos.

Veremos que os padrões estabelecidos foram majoritariamente próximos aos encontrados por Stephen Gudeman e Stuart Schwartz para regiões do Recôncavo baiano, entre os séculos XVIII e XIX. Os autores, sobretudo Schwartz que ainda complementa esse estudo posteriormente com pesquisas semelhantes voltadas para

1 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da

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Curitiba, entendem que esse padrões tenha sido comum a muitas regiões brasileiras, mesmo em casos onde elas apresentam características tão distintas.2

A principal distinção de Palmeira quanto a outras regiões foi a população diminuta, assim como as fazendas e contingentes de escravos. Mas não foi por isso que essa sociedade deixou de ser eminentemente escravista. Mesmo com o trabalho livre, de familiares e agregados, que tiveram mais importância entre as famílias de poucas posses, o trabalho escravo sempre foi a base de sustentação da produção agrícola e pecuária dos campos paranaenses. A freguesia nova de Palmeira, que havia se desenvolvido à beira do caminhos do Viamão, esteve muito ligada a esse comércio de gado e assim como em outros povoamentos nos campos gerais, teve na fazenda de gado seu principal meio econômico. Os fazendeiros, por sua vez, dominando essa atividade, eram os pilares dessa sociedade.3

O compadrio foi amplamente utilizado por essa população, numa freguesia ainda muito recente e precisada de meios para a estabilização e a formação de vínculos entre os habitantes e com o lugar. Tanto entre livres quanto entre escravos, os laços de compadrio tiveram papel importante no rearranjo dos parentescos ou no seu fortalecimento. Porém, veremos que não há como desvincular essa relação de seu princípio espiritual e moral, que por sua vez ditava normas na orientação da escolha dos compadres. Manter esse parentesco espiritual com uma família era uma escolha irredutível, assim todos os fatores eram pesados. O asseio moral, a imagem pública, a ancestralidade o status social dos padrinhos, tudo influenciava em sua escolha. Uma relação de compadrio deveria suprir não só as necessidades morais e espirituais que poderia expressar o afilhado, mas as preocupações sociais e políticas, das quais compartilhava a família.4

Padrinhos bem arranjados poderiam significar um degrau para a mudança de condição jurídica, um bom casamento, bons negócios, educação. Por isso, e por outros motivos, a escolha normalmente seguia a regra da verticalidade: os padrinhos teriam de ser de um

2 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos

Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

3 GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004.

4 GUDEMAN, Stephen. "The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person". In: Proceedings of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland vol. 0. (1971). 1971. Royal Anthropological Institute of Great Britain, 1971.

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nível superior social ou juridicamente que a família do afilhado, ou pelo menos ter condições iguais, afinal, padrinhos precisavam ter algo a oferecer em troca da imensa honra de ser abrigado numa família pelo parentesco espiritual, mais nobre que o carnal ou o social.5 (nota gudeman)

A trajetória de Manoel e Esmeria foi a mais bem sucedida em termos de quantidade de afilhados, pelo que podemos acompanhar nas fontes utilizadas, mas assim como eles, muitas outras pessoas apadrinharam recorrentemente os habitantes de Palmeira. Reunido esses indivíduos, percebemos que, apesar de os membros da elite se sobressaírem, há tanto escravos como livres pobres, pardos livres e fazendeiros. A composição desse grupo de padrinhos é muito variada. O principal é que normalmente não era apenas o indivíduo que apadrinhava, mas os membros de sua família, todos representando a casa.6

Notaram-se algumas características bem específicas nessas relações de compadrio, como duplas de padrinhos homens em substituição à tradicional formação de padrinho e madrinha, e alguns padres que serviram de padrinhos. Esses casos desobedecem às regras estabelecidas pelas constituições primeiras do Arcebispado da Bahia quanto aos batismos no Brasil.

Para abordar todos esses aspectos, foram organizados três capítulos. No primeiro, são abordadas as discussões sobre o contexto, indo do período imperial à historiografia voltada para a história do Brasil e principalmente da escravidão, e as modificações na abordagem dos temas durante o século XX. Também foram contemplados o processo de povoamento nos campos paranaenses e os movimentos de expansão colonizadora rumo ao oeste. A freguesia de palmeira, sua formação e aspectos gerais de sua sociedade, com base na lista de habitantes de 1835, completam essa contextualização.

No segundo capítulo, adentra-se o tema do compadrio. Foi importante uma breve discussão sobre o batismo e seu simbolismo entre os cristão. Aspectos de sua adoção como sacramento principal do catolicismo, de seus diversos significados e de sua importância enquanto laço espiritual que extrapola as portas da Igreja e da espiritualidade adentrando a esfera social, foram expostos. Numa segunda parte, foram explorados os dados dos assentos batismais da Paróquia Nossa Senhora da Conceição

5 Ibdem.

6 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". In: FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antônio C. J. de & ANASTASIA, Carla M. J.

Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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de Palmeira. Organizando quadros, chegou-se a padrões no estabelecimento de relações de compadrio, privilegiando o compadrio envolvendo escravos.

No último capítulo, à partir de quadros em que os padrinhos e as madrinhas que apareceram cinco vezes ou mais nos assentos batismais foram listados, verifica-se o parentesco entre os presentes na lista. A participação de famílias inteiras e seus dependentes em teias formadas pelo compadrio foi discutida. Algumas trajetórias parciais foram rapidamente descritas e a trajetória de Manoel e Esmeria foi estudada com mais atenção, chegando-se a seus laços de compadrio e à estrita relação que mantinham com seus senhores.

Espera-se que esse estudo monográfico contribua para pesquisas futuras voltadas aos temas do compadrio e da escravidão no Paraná, que vêm sendo cada vez mais explorados e ainda têm possibilidades amplas de estudo e abordagem.

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1. PALMEIRA, ESCRAVOS E FAZENDAS DE GADO.

O que conhecemos hoje por Paraná, foi por um longo período parte de um território anexado a capitania de São Vicente, que depois se tornou Província de São Paulo 1821. Segundo Westphalen, até meados do século XIX, os campos paranaenses foram a 5º Comarca dessa província, também chamada de Comarca de Paranaguá e Curitiba. No início do povoamento, o território ocupado e explorado pelos portugueses era quase restrito ao litoral. Uma fronteira móvel e incerta separava as terras portuguesas das espanholas, e os domínios dos espanhóis se estendiam pelos campos paranaenses, também pelas terras catarinenses. O ouro, ou melhor, o início da busca por ele, trouxe muitos garimpeiros esperançosos, aventureiros e algum comércio ao litoral paranaense. Aos poucos essa população subiu ao planalto, instalando-se onde tempos depois se formou a vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. A 5ª Comarca começou a crescer, principalmente no século XVIII, mas não pelo garimpo e mineração, que acabou se esgotando e perdendo mercado para Minas Gerais, e sim por uma soma de fatores facilitadores da instalação de povoamentos no planalto. O terreno e a natureza favoráveis à criação de animais, a passagem de caminhos por localidades próximas e a preocupação do governo central e da capitania em manter o controle do território e afastar tanto índios quanto espanhóis, foram decisivos para o estabelecimento de vilas de portugueses nos campos paranaenses. No litoral, o porto apesar de pequeno tinha sua importância local, mas só passou a crescer no século posterior, como receptor de africanos durante a ilegalidade do tráfico.7

Além de algumas expedições de exploração e reconhecimento do território e principalmente voltadas à preação de indígenas, que de tempos em tempos eram feitas pelos sertões do Brasil, e ao sul de São Vicente eram muito comuns, a presença portuguesa ficou presa às proximidades do litoral do centro sul e de parte do nordeste por muito tempo. Mas no século XVII, e especialmente ao longo do século XVIII, o povoamento no interior da colônia portuguesa se intensificou, dando origem a vilas e cidades, ligadas às rotas de comércio que cresciam e às grandes fazendas de monoculturas, que passaram a ser a atividade principal de várias regiões, voltadas à exportação.

7 WESTPHALEN, Cecília M. A Introdução de escravos Novos no Litoral Paranaense. In: Revista de

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Esse movimento também envolve o território paranaense. O Paraná, como ressaltou Cecília Westphalen, sempre foi um local de passagem, de caminhos. A partir do meio do século XVIII, o comércio entre o extremo sul e o sudeste do Brasil, que compreendia gado de vários tipos, sobretudo mulas, e charque, cresceu significativamente. Esse crescimento foi ainda mais intenso após a mudança da corte para a colônia.

1.1 BRASIL IMPÉRIO E ESTUDOS DA ESCRAVIDÃO:

Desde a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, esta cidade passou a ser sede do governo real. Para alguns historiadores, esse é o marco do fim do período colonial, pois sendo sede do governo do Império luso, não mais configurava uma colônia no sentido estrito. Dom João VI foi regente de 1815 a 1821, quando a corte voltou a Portugal e deixou o príncipe Pedro de Alcantara como regente da coroa no Brasil. Mas não havia como voltar às mesmas condições anteriores definidas pela submissão de uma colônia à metrópole européia. Ao passar a sediar a corte, tornar-se o centro político do reino, o Brasil conseguiu algumas vantagens em sua relação com Portugal. Mas embates políticos entre colônia e metrópole levaram à independência do Brasil em 1822, que continuou em regime monárquico, porém com um imperador: Dom Pedro I, o mesmo príncipe regente da colônia.8

O período chamado de Primeiro Reinado, que vai de 1822 a 1831, quando Dom Pedro I foi imperador foi turbulento. A independência do Brasil, que se constituiu império, apesar de ser considerada um processo pacífico (quando pensado apenas como envolvendo as principais cidades), foi causa de conflitos violentos em regiões periféricas. Também foi o início de um período de profunda mudança no entendimento da sociedade sobre si mesma, sobre ser parte de uma nação, de uma unidade. O esforço para manter a unidade territorial e política do Brasil foi questão primordial então, e esse processo passava sem dúvida pela consciência nacional da população, que na verdade não existia e tinha que ser moldada, uma mudança que levaria muito tempo para se consolidar. A escravidão, argumenta Boris Fausto, seria um elemento a mais para o esforço de unidade territorial do império. Segundo ele, manter a escravidão em vigência no Brasil, pois essa era uma instituição que já dava sinais de esgotamento, só seria possível com a manutenção do controle político de todo o império. A escrita de uma

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constituição também foi um acontecimento importante, mesmo ainda representando o poder absoluto do imperador.9

O imperador teve, de fato, muitos apoiadores, sobretudo da aristocracia que era beneficiada com títulos de nobreza, mas isso não fez de seu reinado estável. A disputa por controle de terras, exércitos e comércio, principalmente entre portugueses e brasileiros, demonstrava a dificuldade de que o Brasil se estabilizasse como império independente, além disso, havia as discórdias sobre a constituição e os poderes que ela garantia ao imperador. Dom Pedro, em 1831 volta para a Europa e deixa no Brasil seu filho e sucessor. O segundo imperador, no entanto, era ainda uma criança. Regentes se sucederam em seu lugar até que atingisse a maioridade e esse foi um momento conturbado de disputa entre facções políticas pelo controle do governo. Por pressão das elites, a maioridade do príncipe foi adiantada e ele foi coroado aos 15 anos. O período chamado de Regência dá lugar ao Segundo Reinado. Dom Pedro II reinou de 1840 a 1889. Foi um longo período em que um só homem governou, no entanto nem tudo foi tão estável. Houve desde a Regência um crescimento das divergências políticas entre grupos, principalmente representando regiões, interesses de províncias. Quando o imperador assumiu o poder, dois partidos se formavam: os liberais e os conservadores. Os conservadores representavam principalmente os interesses da corte e dos produtores de café, que nessa época despontava como principal produto de exportação, sobretudo ao sul do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Já os liberais representavam os interesses das Províncias, alguns conflitos vieram desse enfrentamento. Uma das principais diferenças entre os dois partidos era que o liberal queria maior descentralização de poder, mais autonomia para as províncias, enquanto o conservador defendia o controle centralizado. Inovações como a instalação de serviços bancários e as linhas de trem que passaram a ser construídas, foram pontos essenciais no desenvolvimento da economia nas áreas principais de produção e também aumentaram a comunicação entre diferentes locais. A escravidão, apesar de cada vez mais decadente no cenário internacional e no Brasil imperial, continuou a fornecer a maior parte da força de trabalho da qual dependia a produção agrícola que sustentava o país. O Brasil

9 . A assembléia constituinte que tinha como objetivo aprovar a nova constituição foi dissolvida por Dom Pedro, que aprovou a constituição por seus próprios poderes, não sem antes modificá-la. FAUSTO, Boris.

História do Brasil. Edusp: São Paulo, 10ª edição, 1930; BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de. O Brasil da independência a meados do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org). História da América

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foi último país a abandonar a escravidão, em 1888. No ano seguinte é proclamada a República.10

Durante esse período, que tomou quase todo o século, alguns conflitos e guerras aconteceram. A Guerra da Cisplatina, entre 1825 a 1828, foi uma das principais, na qual o Brasil perdeu parte de seu território do extremo sul, a Cisplatina, que conseguiu sua independência e passou a ser a República Oriental do Uruguai. A Confederação do Equador, movimento separatista que envolveu algumas províncias do nordeste e, apesar da rápida derrota, foi uma clara demonstração da insatisfação com o primeiro império. O período regencial foi especialmente agitado. Várias rebeliões surgiram, prolongando-se até o prolongando-segundo reinado. A Balaiada (começou no Maranhão e alcançou o Piauí) e a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul e Santa Catarina) foram as mais sérias. A Farroupilha durou 10 anos (1835-1845) e conseguiu resistir por longo tempo, com a criação da República do Piratini e a conquista de Santa Catarina. O movimento teve a participação de pessoas de diferentes extratos sociais e direcionamentos políticos, tendo em comum a crítica às decisões políticas da corte e as altas taxas impostas às mercadorias riograndenses, e culminou na adoção da república. Esse movimento foi um dos que mais afetou o Paraná, tanto economicamente quanto por sua proximidade geográfica. Após se acalmarem as revoltas internas, o segundo Império passou pelas guerras motivadas por controle territorial e econômico de regiões ao sul da América do Sul. As campanhas platinas, em 1851 e 1864, foram geradas por problemas comerciais e fronteiriços, com Argentina e Uruguai. Já a Guerra do Paraguai, foi muito mais violenta e trouxe sérias conseqüências ao Paraguai. A guerra começou em 1864, indo até 1870, causada principalmente pela disputa de territórios no sul do Brasil e na Argentina, aos quais o ditador paraguaio Solano Lopez pretendia estender seus domínios, chegando até o Uruguai. O País era o mais próspero da região, mas após o fim da guerra, derrotado pela aliança de Uruguai, Argentina e Brasil, teve sua população e indústria arrasados.11 A guerra do Paraguai teve também graves efeitos no Brasil. O Império empreendeu vários esforços para garantir a vitória, com custos enormes, além de morte de civis e milhares de soldados. Porém, esse conflito representou a militarização do país de maneira mais organizada e forte. Outra conseqüência foi o desconforto com a situação

10 FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp: São Paulo, 10ª edição, 1930. . BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de. O Brasil da independência a meados do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina, Vol. III. São Paulo: Edusp, 2001.

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dos escravos que tinham participado da guerra, essa participação é muitas vezes destacada por contribuir para os crescentes debates sobre a legitimidade da escravidão.12 A escravidão foi uma forte herança deixada pelo período colonial e que vigorou, mesmo decadente, durante praticamente todo o período imperial. Diversas obras historiográficas se dedicaram ao longo dos anos a estudar esse tema. É essa uma temática tão essencial à compreensão da história brasileira que não pode ser ignorada em obras que vão do específico e regional àquelas que tentam abordar uma história total do Brasil. Mas o importante de todos esses estudos é a maneira como eles abordam o assunto. Dois conjuntos historiográficos, ou escolas, são extremamente importantes nessa discussão: as obras da década de 1930, principalmente Gilberto Freyre, e as paulistas dos anos 60. O estudo da escravidão após os anos 80 tem como fortes referências as críticas a essas duas escolas. É importante uma rápida exposição das idéias principais defendidas por esses movimentos e autores pois elas estão ainda presentes no ensino escolar e em parte da historiografia, e formam parte do nosso imaginário sobre a escravidão e a sociedade escravista.

Algumas obras formaram modelos de abordagem da história do Brasil e são importantes referências, principalmente quando é necessário entender os diferentes olhares lançados às mesmas questões, ainda hoje incansavelmente discutidas e revistas. Gilberto Freyre é constantemente invocado quando se discute escravidão e formação da sociedade brasileira. Seu livro mais conhecido, Casa Grande & Senzala, é um dos mais importantes referenciais quanto ao assunto escravidão de nossa historiografia, isso porque formou um modelo de abordagem da temática e abriu um precedente que colocava esse assunto no topo de qualquer estudo da sociedade brasileira ao longo de sua história. Para Freyre, o único modo de conhecer a sociedade era voltar às suas origens, remontar seu passado. Assim ele chegou ao Brasil dos engenhos de cana, dos senhores e escravos. Uma das principais críticas feitas à sua obra é o modo como o autor estende esse universo de senhor e escravo, das grandes fazendas, a toda a sociedade brasileira da época, que apresentava formações bem mais diversificadas que essa relação simples dualista. Outro ponto severamente questionado, e considero o mais importante na discussão da obra, é o modo como a relação senhor – escravo, ou mesmo a escravidão como um todo, era compreendida por Freyre. O autor suaviza essa relação, diminui a importância dos conflitos e da violência, entende-a de forma branda. A figura

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do patriarca é o centro da família, os escravos teriam a esse homem o temor e respeito que se tem a um pai, e talvez a afeição. Desse modo, Gilberto Freyre aposta na ilusão de um ambiente pacífico onde o poder de um senhor, menos opressor que tutor, mantém a ordem. Entretanto, sua obra também destaca uma característica muito importante da sociedade colonial e que ficou como herança para a historiografia: a miscigenação. O autor dá destaque a uma miscigenação sexual, mas junto a ela está a convivência, no espaço público e privado, de brancos e negros que formavam laços e estavam socialmente ligados, independente de uns serem escravos de outros. Apesar de essa convivência ter seus limites, não eram mundos separados o dos negros e dos brancos.13 Outro título a ser lembrado é Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. O autor tem foco no estudo das raízes de características culturais e psicológicas que moldam o comportamento da sociedade moderna brasileira. Desde a importância da unidade familiar frente às relações políticas até a falta de identidade do português e mesmo do brasileiro como princípio daquilo que chama de “homem cordial”, Sérgio Buarque de Hollanda procura em características da formação do Brasil a origem dos problemas vividos até sua época.14

Esses modelos passaram a ser mais questionados e realmente superados nos anos 60, com um enfoque sociológico através da Escola Sociológica Paulista, representada por Florestan Fernandes, Roger Bastide, Octávio Ianni, entre outros. O movimento passou a entender a escravidão como tendo na violência seu princípio e sua base e o escravo como um homem explorado como objeto, coisificado. Desse modo havia um antagonismo entre senhor e escravo que era pautado na ação violenta e controladora do senhor e na passividade do escravo explorado. O capitalismo passou a ser considerado elemento principal da escravidão, o escravo era uma fonte de renda, era a ferramenta e o trabalho que geravam a renda; e a violência, parte essencial da manutenção desse regime.15

O rumo que os estudos sobre escravidão tomaram nos anos 80 no Brasil, em contato com as mudanças na historiografia em outros países, abriu os horizontes do tema continuamente até o presente. Isso decorre, sobretudo, do diálogo com outras áreas, como a antropologia. Nesse novo momento dos estudos históricos, diversos estudiosos

13 LIMA, Adriano B. M. Trajetórias de Crioulos: Um estudo das relações comunitárias de escravos e

forros no Termo da Vila de Curitiba (c. 1760 – c. 1830). Dissertação de Mestrado, UFPR, Curitiba, 2001. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 12ª Ed. 1963. 14 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1988.

15LIMA, Adriano Bernardo Moraes. Trajetórias de crioulos. Curitiba, Dissertação de Mestrado em História, UFPR, 2001. P. 9.

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desenvolveram questionamentos e críticas dirigidas às obras dos anos 60, sobre a escravidão e a sociedade brasileira. O principal objetivo dos estudos feitos após os anos 80 sobre o tema da escravidão foi contestar o conceito de homem-coisa que os seguidores da Escola Sociológica Paulista aplicaram ao escravo. Uma infinidade de temas passou a ser trabalhada, todos eles questionavam a passividade, a inadequação e a falta de humanidade que o conceito de coisificação agregava ao escravo. Estudos de família, de alforrias, de resistência, de atividades autônomas indicavam a participação ativa do cativo na sociedade escravista e até mesmo que sua relação com o senhor era baseada também na troca, na barganha. A sociedade escravista por esse ponto de vista ganhava diversas facetas e elementos, saía definitivamente das concepções anteriores. A violência certamente é levada em conta, está na própria condição do escravo e é um meio de coação, no entanto divide espaço com outros meios de interação entre livres e cativos, entre senhores e escravos, sejam eles mantenedores do sistema escravista, ou sabotadores dele.

Muitas das obras que formam uma base teórica dessa pesquisa são orientadas pelos debates citados, fazendo ainda uso de fontes normalmente desprezadas e outras metodologias. No entanto, a maioria dos estudos sobre o tema teve como recorte regiões onde havia maior número de cativos e mais escravarias.16

A escravidão no Brasil é normalmente pensada nos termos das regiões exportadoras, ou dos grandes aglomerados urbanos, onde o tráfico de africanos sempre foi intenso e onde os contingentes de cativos eram constantemente renovados. Nesses locais a proporção entre homens e mulheres foi tradicionalmente desequilibrada. A preferência dos europeus e americanos, ao comprar escravos que viriam da África, era normalmente por homens. Paul Lovejoy observa que no século XVIII o comércio de escravos novos cresce vertiginosamente e passa a ter como maior mercado o Brasil. Já no século seguinte, com as proibições do tráfico por todo o Atlântico fizeram com que esse comércio diminuísse muito até cessar, porém, mesmo ilegal, com fiscalização e pressão inglesa, os escravos novos não deixaram de chegar às escravarias brasileiras pelo menos

16

FRAGOSO, J. L. R. & FERREIRA, Roberto Guedes . Tráfico Interno de escravos e Relações

Comerciais no Centro-Sul, séculos XVIII e XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: LIPHIS (departamento de História da UFRJ e Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (IPEA), 2001; MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo

no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e

tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997; SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial: 1550-1835. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

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até 1850, quando houve uma proibição efetiva do tráfico atlântico de africanos para o Brasil.17

Mesmo com a chegada constante de escravos novos em grande parte do Brasil até a primeira metade do século XIX, mesmo que a presença masculina fosse majoritária, a formação de famílias não foi impossibilitada dentro das escravarias e sua importância é apontada por muitos autores como decisiva e estratégica na melhora de sua condição de vida ou até na conquista da alforria própria e de dependentes. Robert Slenes percebe a família como meio principal de manutenção de traços culturais e de reconstrução da identidade. Enquanto isso, Góes e Florentino destacam outra “função” da formação de laços parentais: manter a paz, manter um contrato silencioso entre senhor e escravos. A família não só garantiria ao escravo algumas vantagens dentro do cativeiro, mas também daria ao senhor maior controle sobre seus cativos, mantendo um ambiente estável onde a negociação das condições de cativeiro estava implícita.18

Esses estudos têm como alvo a sociedade escravista do Sudeste (Campos dos Goitacazes no Rio de Janeiro e região do vale do Paraíba em São Paulo), mas o que encontramos nas escravarias do Paraná é uma propensão ainda maior à formação de famílias. A renovação do cativeiro com a entrada de novos escravos não teve a intensidade que percebemos no restante do império, assim foi possível um ambiente de características únicas. Nesse ambiente os escravos crioulos são a maioria, vivem nas mesmas propriedades por muito tempo, nelas formam laços que não são ameaçados a todo o tempo pela separação forçada e a distância. As famílias eram grandes, havia muitas crianças e essa população provavelmente teria uma ligação muito forte com o local onde sempre viveram, além disso, seriam o que havia de mais valioso nela.19

1.2 CAMPOS PARANAENSES ESCRAVISTAS E A EXPANSÃO PARA O OESTE: O caminho que ligava Viamão, no Rio Grande do Sul, a Sorocaba, em São Paulo, foi de extrema importância para a definição do povoamento dos campos gerais no Paraná e do modo como se comportaram as populações ali instaladas. A rota das tropas condutoras de mulas cortava os campos gerais e o principal ponto de passagem era Castro. A vila

17 LOVEJOY, Paul. A Escravidão na África: Uma história de suas transformações. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2002.

18 FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico

atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997. SLENES, Robert.

Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

19 LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004.

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de Castro tinha maiores fazendas e mais escravos que os outros povoamentos do planalto no início do século XIX. Era um dos pontos principais de parada das tropas, que necessitavam de repouso em vários momentos da longa viagem ao sudeste, para que o gado recuperasse o peso e descansasse para seguir viagem. A criação de animais foi estimulada pelo tropeirismo e se tornou a atividade principal dos campos gerais. Do mesmo modo, muitas pessoas, livres e escravos, entraram para o negócio de tropas, alguns como simples tropeiros, cuidando do rebanho durante a viagem, outros, que tinham posses suficientes para investir no negócio, iam até o sul para comprar animais e revendê-los em Sorocaba.20

Essa característica de passagem do Paraná, de estar entre o Rio Grande do Sul e o sudeste do Brasil era mais importante que a pouca atividade econômica que se desenvolvia aqui, e tornava a defesa desse território uma preocupação cada vez mais presente entre os governantes. Este é também um tema recorrente nas obras dedicadas à história da formação do Paraná. Romário Martins aponta a proximidade paraguaia, principalmente no território de Guairá que era muito extenso e pertencia à Província do rio da Prata, como especialmente preocupante. Essa Província reivindicava o domínio de uma grande área que chegava ao porto de Santa Catarina. As missões jesuíticas no Guairá também eram tidas como ameaça à integridade do domínio português, e foram fortemente combatidas.21

Um dos problemas sempre evidenciados pelos autores que estudaram o povoamento português no Paraná foi a presença indígena por todo o sertão. Longe de formarem um grupo homogêneo, as várias nações tinham seus próprios conflitos, seus inimigos e estavam cada vez mais pressionadas por portugueses de um lado e espanhóis de outro. A reação desses povos indígenas era tanto de afastamento e por vezes hostilidade, quanto a formação de alianças com um lado ou outro. Por isso, não só era preocupante para os portugueses avançarem sobre um território pouco conhecido e que já era ocupado por índios que poderiam resistir a esse contato normalmente violento,

20 GUTIÉRREZ, H. Fazendas de gado no Paraná escravista. In: Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, pp.102-127, 2004, pp. 102-127. MARCONDES, Renato Leite. Formação da rede regional de abastecimento do Rio de Janeiro: a presença dos negociantes de gado (1801-1811). In.: Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, PP. 41-47.

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como também, e principalmente, a possibilidade desses índios estarem ligados aos espanhóis.22

Podemos dizer que são três momentos de expansão da ocupação do território paranaense até que ele se tornasse Província. Primeiro a ocupação do litoral, depois, no XVIII a formação de pequenos povoamentos no planalto curitibano, já adentrando os campos gerais e ainda no século XIX, a expansão para a fronteira agrária, a partir de Castro e Palmeira em direção ao interior do continente.

Este terceiro movimento de expansão dos territórios brasileiros no Paraná, que se intensificou na metade do século XIX, contou com incentivos governamentais de diversas naturezas. A intenção era não apenas levar homens que desbravassem a área além da fronteira agrária, mas também que lá se estabelecessem famílias, que essas famílias tivessem alguma possibilidade de produção que as segurasse na região, e que as pessoas ali instaladas pudessem defender o território em caso de necessidade23. Essa situação está claramente ligada aos acontecimentos pelos quais passava o Brasil durante o início do XIX e que representavam mudanças profundas no cenário político e também econômico do país, acontecendo num curto período de tempo.

Sobre a escravidão no Paraná, os trabalhos voltados ao tema vêm ganhando mais espaço nas últimas décadas. Stuart Schwartz em Escravos Roceiros e Rebeldes, Cacilda Machado, Fernando Franco Netto, Carlos A. M. Lima, Eduardo Spiller Penna, são apenas alguns dos autores que trabalharam ou tem trabalhado o tema24. Talvez o assunto tenha despertado pouco interesse anteriormente por ter sido a quantidade de cativos no

22 BALHANA, A. P.; WESTPHALEN, C.; MACHADO, B. P. História do Paraná. V. 1. Curitiba: Grafipar, 1969. FRANCO NETTO, Fernando. Famílias escravas nos campos gerais do Paraná In.: Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba. 2009.

23 FRANCO NETTO, Fernando. População, escravidão e família em Guarapuava, século XIX. Guarapuava: Ed. da UNICENTRO, 2007.

24 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001. MACHADO, Cacilda. A trama das

vontades: Negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicure, 2008. p.20. NETTO, Fernando Franco. População, escravidão e família em

Guarapuava no século XIX. Tese de Doutoramento em História. UFPR, Curitiba: 2005. LIMA, Carlos A. M. . Roças de libertos e seus descendentes nas partes meridionais da América Portuguesa (Castro,

1804-1835). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 166, n. 426, p. 271-303, 2005. PENNA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face: A astúcia escrava frente aos senhores e à lei na

Curitiba provincial. Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba: 1990. E ainda: MELLO, Kátia A. V. de. Comportamentos e práticas familiares nos domicílios escravistas de Castro segundo as

listas nominativas de habitantes (1824 – 1835). Dissertação de Mestrado e História. Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2004. PORTELA, Bruna M. Caminhos do cativeiro: a configuração de uma

comunidade escrava (Castro, São Paulo, 1800 - 1830). Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba: 2007. WEBER, Silvio A. Além do Cativeiro: A Congregação de escravos e senhores na

Irmandade do Glorioso Sã Benedito da Vila de Morretes. Século XIX. Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba: 2009.

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Paraná sempre pequena, no entanto a população livre também era diminuta, assim como as vilas, as propriedades. Horácio Gutiérrez chama a atenção para a proporção: em alguns locais, dependendo da época, a população escrava representava um quarto da população, mas normalmente ficava entre um quinto e um sexto. O litoral tinha sempre as menores quantidades de cativos, enquanto os campos gerais, com o crescimento das fazendas de gado, agrupavam a maioria. Mas essa sociedade não era tão simplificada. Havia os senhores, os escravos, os pequenos proprietários, os livres pobres, os livres e libertos pardos e negros.25

Segundo estimativas de Daniel Pedro Müller, o Paraná tinha 42.890 habitantes em 1836, crescendo para 56.360 em 1852 segundo José Thomaz Nabuco de Araújo26. No entanto, essa comparação tem suas armadilhas, já que se trata de estimativas feitas por autores diferentes, provavelmente com fontes e parâmetros variados. Mesmo assim, nos dão referências quanto ao tamanho da população e seu lento crescimento durante essas duas décadas. Iraci da Costa e Horácio Gutiérrez fizeram esse levantamento para vilas paranaenses em anos selecionados entre 1798 e 1830, com os dados disponíveis em mapas de habitantes. Segundo eles, em 1830 eram 36.701 habitantes, desses pouco mais de um sexto (6260) eram escravos. Os apontados como brancos eram quase 70% da população, mas uma porção significativa (9069) era de pardos e pretos livres. Essas proporções se alteram de vila para vila, mas são um bom parâmetro para pensar a formação da população paranaense nesse período. Não só a sociedade, mas tudo que envolvia a posse da terra, as atividades econômicas e políticas, nos campos gerais paranaenses, fazia parte de uma estrutura tradicional gerada pelo ciclo do gado e que vai sendo superada no fim do século XIX, mas deixa sua marca nessa região.27

A população escrava do Paraná era mínima se comparada ao que se veria no Sudeste, mas formava uma parcela significativa dos habitantes, proporcionalmente próxima a de muitas vilas do restante da Província de São Paulo ou Minas Gerais. Horácio Gutierrez calcula que fossem 17,1% em 1830, mas com variações entre as localidades que eram acentuadas em vilas onde a pecuária era a atividade principal, como já foi dito. Em

25 COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985.

26 Expostas por Iraci Costa e Horácio Gutiérrez. Ibdem.

27 GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004, PP. 123–124. COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de

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Castro, por exemplo, eram 26,9% nesse ano e em Palmeira eram 31%.28 Além disso, essa população estava num contexto que lhe atribuía características peculiares, como maior autonomia em alguns casos, onde a presença dos proprietários era periódica e a organização e rotina da fazenda era controlada apenas por capatazes ou pelos próprios cativos.29

Gutiérrez também nota a divisão existente entre proprietários de terras que tinham escravos e os que não tinham. O trabalho familiar, de agregados ou assalariados era comum, mesmo sendo bem menos importante que o trabalho escravo principalmente em grandes propriedades. Para o autor, a possibilidade de crescimento de uma atividade em certa propriedade era determinada pela presença de cativos. O trabalho livre limitava esse crescimento.30

Quanto à posse de escravos, as fazendas de gado eram as principais receptoras e mantinham as maiores escravarias, porém havia pouca renovação externa nesses planteis. Os africanos eram a minoria entre os cativos, e passaram a chegar mais escravos novos a essas fazendas no período do tráfico ilegal.31

A questão da militarização dessa população dos campos gerais é interessante, pois faz parte de uma preocupação no XVIII com a defesa armada do território, incentivada por políticas públicas. O Morgado de Mateus tem um papel importante nesse contexto, partindo dele maior parte dos empreendimentos políticos nesse sentido. Era importante também o estabelecimento de atividades econômicas rentáveis o suficiente para segurar a população nos novos povoamentos e também dar preferência a famílias que quisessem se instalar nos locais, pois elas garantiriam a produção e a fixação dos povoadores. A expansão do início do século XIX, também marcado pelo militarismo, é definida muito mais pela abertura de novos campos que possibilitassem o crescimento do que propriamente por levar às regiões fronteiriças uma população que pudesse proteger militarmente o território, apesar de os dois intuitos estarem juntos e inseparáveis nesse momento. Essa impressão é reforçada pelas guerras do Prata, que acabaram por

28 GUTIÉRREZ, H. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. Revista História, São Paulo, v. 25, n.1, pp. 100-122, 2006.

29 Carlos Lima e Kátia Mello identificam essa possibilidade em fazendas absenteístas de Castro e Curitiba. LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004. 30 GUTIÉRREZ, H. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. Revista História, São Paulo, v. 25, n.1, pp. 100-122, 2006.

31

GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004.

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direcionar a atenção para o sul, distanciando o Paraná desses conflitos por algum tempo.32

Porém, não podemos pensar que por ser a população e poucos os núcleos urbanos tão pequenos, essa porção da Província de São Paulo estivesse isolada dos acontecimentos no restante do Império. As conseqüências econômicas e políticas eram sentidas como reflexo das mudanças num contexto maior. Um exemplo foi o aumento do comércio entre as Províncias que aconteceu com a instalação da corte no Rio de Janeiro, outro foi a negociação da emancipação da 5ª Comarca de São Paulo diante de revoltas que a

afetavam diretamente. As Revolução Liberal de 1842 em São Paulo tiveram muitos potenciais apoiadores entre os paranaenses, pois muitos deles eram liberais. Também era intenção dos farroupilhas chegarem aos campos paranaenses e, como foi feito em Santa Catarina, com o apoio da população local, talvez separar esse território do restante do Brasil. A adesão principalmente de proprietários de terra nos campos paranaenses seria essencial para que esses movimentos tivessem no Paraná um ponto de apoio. Mas, num acordo com o poder imperial para que tomasse uma posição de neutralidade diante desses conflitos, o Paraná conseguiu sua emancipação e até contribuiu com tropas no combate à Revolução Farroupilha.

É evidente, portanto, a participação do Paraná em eventos políticos do Império. Mesmo quando não havia uma participação direta, esses acontecimentos manifestavam algum efeito na sociedade paranaense. Além do mais, devemos considerar que a constante passagem de tropeiros e demais viajantes pelos caminhos que cruzavam o Paraná, sobretudo entre Sorocaba e Viamão, era um canal de informação sobre vários locais do Brasil, desde o sul até São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.33

Mais uma questão política do Império que trouxe mudanças para o Paraná foi a proibição do tráfico de escravos africanos em 1831, que não teve a eficácia desejada. A Lei de 7 de novembro de 1831, como ficou conhecida, previa a libertação dos escravos africanos que desembarcassem no Brasil e a punição dos traficantes. Porém essa lei apenas tornou esse comércio mais discreto em grandes centros e deslocou as rotas de desembarque de escravos novos para portos periféricos, onde a fiscalização poderia ser evitada. Westphalen destaca o papel dos administradores e autoridades que controlavam o porto de Paranaguá e a alfândega, envolvidos na receptação ou apenas fazendo vistas

32 FRANCO NETTO, Fernando. Famílias escravas nos campos gerais do Paraná. 33

GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004.

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grossas quanto aos desembarques clandestinos de africanos no litoral paranaense. Esse contingente seria destinado a outras regiões, porém parte dele acabava integrando as escravarias os campos paranaenses. Carlos Lima, analisando a população escrava de Castro durante o período percebeu um aumento na entrada de escravos novos na época da ilegalidade do tráfico, somada a um crescimento em geral dos plantéis. Destacou ainda que em Castro, e isso pode ser estendido a outras vilas, as escravarias eram majoritariamente formadas por escravos crioulos, com um número de crianças considerável e que nesse período teve maior presença de africanos que em qualquer outro, mesmo que tenha sido um número pequeno comparado ao de crioulos e ainda mais de outras regiões do Brasil. Essa era uma situação comum nos povoamentos dos campos gerais, se bem que evidenciada em Castro, mas não era o que normalmente se encontrava em locais do império voltados para a produção em grande escala, ou mesmo nos grandes centros.34

1.3 A FREGUESIA NOVA DE PALMEIRA:

Segundo Astrogildo de Freitas, Palmeira era nesse período uma freguesia de Curitiba que começou como um pequeno povoado que também servia de pouso para o gado às beiras do caminho entre Viamão e Sorocaba. Conhecida então como Freguesia Nova, só foi realmente elevada à categoria de freguesia em 1833 e a vila em 1869. Seu nome vem do Capão da Palmeira, região onde o povoado se instalou. Essa terra na verdade pertencia a filha de Manuel Gonçalves da Cruz, dona Antônia da Cruz França, parte de uma sesmaria dada ao pai. Depois de alguma confusão sobre a validade da sesmaria e da herança, e de a posse ficar compartilhada entre alguns, o marido de Dona Antônia França, Manuel José de Araújo acabou como dono da fazenda onde cresceu o povoado. Outro impulso para a criação da freguesia naquela localidade foi a necessidade de transferir os habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Tamanduá, que estava mal localizada, como afirma Moisés Marcondes, bisneto do então proprietário da fazenda da Palmeira.35 Em 1819, Manoel de Araújo doou parte de sua fazenda a Nossa

34 WESTPHALEN, Cecília M. A Introdução de escravos Novos no Litoral Paranaense. In: Revista de

História. Vol. XLIV, ano XXIII, n. 89. Curitiba: Jan-mar/1972. LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835).

Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004.

35 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: Reminiscências e Tradições. Volume II. Curitiba, Lítero-Técnica, 1984. P. 13.

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Senhora da Conceição, onde estava sendo construída a igreja matriz da localidade, o povoado cresceu a sua volta.36

É perceptível, desde o surgimento da freguesia, a forte relação da propriedade daquelas terras e do domínio político da região por algumas famílias, principalmente a do tenente Araújo, domínio que foi perpetuado pelas outras gerações. Também se deve destacar que aquele povoamento era muito recente no período estudado, que vai de 1831 a 1850. Mesmo que as habitações ali já existissem a algum tempo, a organização administrativa só viria por volta desse período.37

Assim como Castro, por estar no caminho de Viamão, os habitantes de Palmeira se envolveram com o tropeirismo e com a criação de animais. Porém as fazendas eram menores, e o número de escravos também. A distribuição de livres e escravos era próxima à de Curitiba, no entanto, as características geografias e econômicas de Palmeira eram muito mais parecidas com as de Castro, não tendo, por exemplo, as características urbanas de Curitiba. A freguesia era estrategicamente importante na conquista de novos territórios, era uma “boca de sertão”, de onde partiam campanhas colonizadoras, organizadas por homens de posse, alguns com patentes militares. Palmas, Guarapuava e Ponta Grossa são povoamentos que receberam muitos palmeirenses.

Em Palmeira, pelos dados fornecidos pela lista nominativa de 1835, podemos observar muitas das características destacadas por Gutierrez quando fala do Paraná ou especificamente de Castro. A principal atividade na freguesia nova era a criação de gado, que utilizava trabalho escravo em sua maioria. Por ser um povoamento à beira do caminho do Viamão, sua população tinha nas atividades de tropeirismo sua melhor oportunidade econômica. Muitos dos habitantes declaram algum vínculo com essa atividade, os exemplos mais comuns são os negociantes e condutores de tropas de animais, outros, além de fazendeiros, também forneciam parada para o gado que seguiria viagem. Porém não podemos esquecer da produção voltada para a subsistência e para a venda interna. Desde as fazendas até as pequenas propriedades normalmente tinham produção agrícola em volumes pequenos, e muitos dos que não declararam serem pecuaristas ou criadores tinham alguns animais, possivelmente para consumo próprio.

36 FERREIRA, J. C. V. Municípios paranaenses: origens e significados de seus nomes. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2006. PP. 219-220.

37

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A população de Palmeira cresceu pouco de 1830 a 1835, cerca de 14% (de 1288 para 1474 habitantes), em comparação com o levantamento de Costa e Gutiérrez para 1830. Os escravos, em 1835 eram 445, ou seja, 30,2% da população, um percentual típico dos padrões paranaenses, ou até um pouco mais alto. Esses índices populacionais tenderiam a diminuir com a mudança de muitos habitantes para novos campos conquistados, como Guarapuava ou Tibagi, e os escravos estão incluídos nesse grupo.38

Dados gerais sobre a população da Freguesia de Palmeira:

Cor Condição Domicílios

Brancos 683 Livres 1017* Sem escravos 129

Pardos 349 Escravos 445 Com até 5

escravos 41

Negros 442 Libertos 12 Com mais de 5

escravos 31

Total 1474 201

Fonte: Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da

Conceição da Palmeira, 1835.

*Apenas 184 deles tiveram a condição de livre declarada, e eram praticamente todos pardos ou negros, o que significa que para os brancos e muitos pardos (130), além de 22 negros, a condição de livre está implícita.

Há também uma pequena parcela da população que é formada por pardos e pretos livres, sendo que quase metade destes tinha menos de 15 anos, e entre os adultos a maioria era casada. Outro detalhe dessa população livre e não branca é que, quando o domicílio era chefiado por um pardo ou preto, não havia escravos. É compreensível, pois um escravo tinha preço alto, e especialmente valorizado durante esse período. Portanto, as atividades para o sustento da família eram feitas pela própria família e pelos agregados. Em maioria essas famílias eram lavradoras, trabalhando em seu próprio domicílio, com pequenos cultivos, ou vendendo seu trabalho como jornaleiros. Poucos eram negociantes ou condutores de gado, apesar de alguns criarem gado (vacum principalmente). Alguns ainda declaravam viverem de algum ofício como sapataria, ferraria, carpintaria. O mais abastado, o pardo Manoel da Silva, tinha uma pequena criação, com 78 ovelhas e plantava milho e feijão em quantidade superior aos outros em sua condição, além de se declarar mineiro, ocupação que pode ter dado a ele meios para conseguir a liberdade (no caso de já ter sido escravo) e para iniciar suas atividades

38 COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985. LIMA, C. A. M. Tráfico ilegal para a fronteira agrária: Domingos Inácio de Araújo (Palmeira, 1830 – 1851). In.: Anais do IV Congresso Escravidão e Liberdade. Curitiba, 2009. AESP. Listas de habitantes de Curitiba e da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835-1836.

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agropecuárias. Sua renda pode ser um pouco superior aos demais livres negros, mas está na média dos domicílios de brancos, porém sua criação de ovelhas é a maior declarada. Dos 348 pardos ou negros livres, uns poucos viviam como agregados em domicílios de outros. Provavelmente eram um ajuda na força de trabalho do domicílio, mesmo que nele existissem escravos. Era uma categoria de habitante muito comum desde o período colonial em todo o Brasil, e percebemos que parte desses indivíduos foram escravos e depois de libertados continuaram no domicílio, provavelmente desenvolvendo ainda as funções de antes. Poucos dos agregados declaravam uma renda ou atividade própria, o que reforça a idéia de que eles estariam envolvidos nas atividades da propriedade onde viviam, assim como a família na maioria dos casos, principalmente se não houvesse ou fossem poucos os escravos.

Em maioria, os domicílios dessa freguesia não tinham escravos, mas entre os muitos que tinham, foi mais comum que contassem com menos de seis. No entanto algumas poucas propriedades reuniam o maior número de cativos: apenas 14 domicílios declaravam ter dez ou mais escravos e quase todos estavam ligados à criação de gado ou às tropas de animais. No entanto, o máximo de cativos em uma propriedade era 25, nas fazendas de Dona Rita Maria do Nascimento e Dona Clara Madalena dos Santos, ambas viúvas. Em terceiro lugar vinha o Capitão Domingos Inácio de Araújo, que era filho dos fundadores do povoamento.

Desse modo, vemos não só a quantidade de escravos demonstrar a situação econômica de uma família, mas também uma hierarquia nas quais as famílias com mais cativos estão normalmente no topo. Porém há famílias que fogem à regra, como a de Alfredo Manoel Medeiros, capitão e criador, que com apenas dois escravos e uma família bem pequena, tinha uma renda considerável, de três contos de réis declarada na lista de habitantes.

Essa é também uma população bem jovem, a grande maioria dos habitantes tinha até trinta anos de idade, e as crianças eram quase metade da população. A distribuição de homens e mulheres é bem equilibrada, tanto considerando as crianças parte da contagem, quanto contando apenas os maiores de quinze anos. Se fizermos essa contagem apenas com os escravos, veremos que o percentual de crianças é um pouco menor, mas o de adultos jovens se destaca. No entanto, para uma população cativa, a quantidade de crianças pode indicar a reprodução interna, e, portanto a formação de famílias. A distribuição de homens e mulheres é um pouco favorável aos homens se não forem consideradas as crianças, contando com elas é uma proporção equilibrada.

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A Palmeira visitada por Saint-Hilaire no início do século XIX, e descrita como uma nova freguesia, pequena e de gente simples, mas hospitaleira, era também a Palmeira escravista e de hierarquia bem demarcada, como a maioria dos pequenos povoados dos sertões do país, onde política e família formavam um emaranhado com poucas possibilidades de novos arranjos.39

Era ainda uma sociedade em formação, ou renovação, reunindo uma elite de famílias que traziam de outras regiões nomes de prestígio e tradição, e principalmente bens, sobretudo terras, que deveriam ser concentrados por seus novos membros e, aliados às novas posses conquistadas pelo casamento, mantidas na família. Num contraste com essa elite, mas sem de modo algum marcar uma oposição ou contrariedade, estão os pequenos proprietários sem escravos, os pobres, os lavradores e jornaleiros, e ainda os forros e cativos. Se a demarcação de uma elite fechada restringe a mobilidade social, ela é maior entre os outros grupos, que formam a maioria da população. Entre os escravos essa afirmação parece falsa, a não ser pela possibilidade de alforria, mas quando pensamos na família e não apenas no indivíduo, identificamos um meio de ascensão pelo menos: o casamento e a prole. Isso pode ser confirmado por registros de batismos, onde muitos dos batizandos são filhos de escravos com livres, e sendo a mãe livre, o filho também será. Do mesmo modo, o contrário pode acontecer se uma criança for filha de um homem livre com uma mulher escrava, iniciando uma trajetória familiar decadente em direção ao cativeiro.

A quantidade de famílias pobres40, e entre elas muitas formadas por pardos e negros livres, e de pequenos proprietários de terra, ou donos de poucos escravos, é um exemplo da diversidade desse grupo de habitantes, que representa um montante de possibilidades de mobilidade social. Essas categorias de indivíduos, ou ainda, famílias, não estão isoladas entre si, e sim constantemente renovando vínculos de diversas naturezas que contribuem para essa questão da mobilidade. Um desses vínculos se dá por meio do batismo.

O batismo é um dos meios de ter representado no mundo físico, laços referentes à espiritualidade. Mas por meio desses laços sagrados, podem estar projetadas as ambições de ascensão social de uma família, ou mesmo de renovação dos vínculos entre a elite e os que estão fora de sua bolha. Diversos anseios cercariam esse forte vínculo,

39 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: Reminiscências e Tradições. Volume II. Curitiba, Lítero-Técnica, 1984.

40

Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da

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mas, sobretudo aquele que é a base do compadrio: garantir ao filho um protetor, compromissado diante de Deus a protegê-lo e guiá-lo na hora da necessidade. Isso para um escravo significava muito, pois a hora da necessidade estava sempre próxima. Nos próximos capítulos o compadrio, especificamente o compadrio escravo, e seu código de escolhas e possibilidades serão investigados, em relação à Freguesia de Nossa Senhora de Palmeira, entre 1831 e 1850, época de consolidação da sociedade palmeirense em seus primeiros tempos. Desde a influência da condição da criança batizada na escolha dos padrinhos, até a hierarquia social que é refletida no estabelecimento de relações de compadrio, várias questões envolvem o tema e algumas delas serão desenvolvidas mais à frente.

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2. ASPECTOS GERAIS DO COMPADRIO NA FREGUESIA DE PALMEIRA Há um aspecto de Palmeira, característico de muitos povoados, que ainda não foi ressaltado: a importância de sua paróquia. O pequeno povoado que era um pouso para os viajantes e animais conhecido como Tamanduá, foi substituído pela freguesia que se estabeleceu ao redor da igreja construída num local conhecido como capão da Palmeira. A igreja erguida em 1830 tinha importância estratégica, já que o pouso era distante de Curitiba. O costume da missa aos domingos e mesmo outros compromissos dos católicos como a confissão, estavam sendo abandonados pelos habitantes de Palmeira, que também era distante de Castro. Para assegurar que a população dessa parte do sertão continuasse praticando o cristianismo da forma correta e não acabasse pagã, a construção da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Tamanduá foi considerada prioridade. O povoamento se estabeleceu ao seu redor.41

Essa paróquia, portanto, foi um ponto importante de convívio e encontro dos habitantes da localidade. Certamente sua fundação fortificou esse aspecto da sociabilidade de Palmeira e permitiu que os encontros fossem mais constantes. A intenção comum de participar das atividades religiosas e cumprir os deveres cristãos permitiu que pessoas de vários estratos sociais se reunissem, ainda que as distinções hierárquicas e mesmo a segregação física fosse imposta em muitos momentos.

Maria B. Nizza da Silva ressalta o papel importantíssimo da Igreja Católica no Brasil colônia e que persistiu por algum tempo durante o império: A igreja era uma instituição reguladora da sociedade. Mesmo que nem sempre tivesse a eficácia pretendida e que muitas vezes não conseguisse impor seus ditames a todos os cidadãos (e escravos), a instituição ditava regras de conduta a seu rebanho e mantinha sempre os olhos atentos dos párocos voltados para a sociedade e suas relações.42

Porém, não era a pressão de um pároco que mantinha a população alinhada com seus deveres, o próprio status de um indivíduo, sua imagem perante a sociedade, dependia dessa conduta. Nizza da Silva, num estudo sobre o casamento no Brasil colonial, observa toda a complexidade desta instituição e sua importância nas relações sociais. A Igreja se fez presente por meio deste e outros sacramentos, cultos e instituições.43

41 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: reminiscências e tradições. Curitiba: A.M. Cavalcante, 1977. 42 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.

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A conquista do status de “homem bom” ou de mulher honrada passa por um caminho repleto de armadilhas. Manter essa imagem é igualmente difícil. Precisa-se cuidar dos gestos, palavras e atos sobretudo perante os outros, pois se a conduta é posta em dúvida as relações sociais são dificultadas. O social, como a autora percebe em sua pesquisa, está ligado a uma imagem que se conquista e mantêm e que pode tanto agregar prestígio a um indivíduo, quanto desvalorizá-lo. Muitas das decisões e dos laços formados pelas pessoas nesse período dependiam dessa imagem: o casamento, as amizades, os negócios, os títulos, o compadrio. Por isso podemos entender que há mesmo num sacramento como o batismo um jogo de faces, apostas e anseios, intimamente ligado ao status de cada um dos envolvidos, podendo representar ao apadrinhado a abertura de algumas portas ou seu fechamento.44

Permeando os laços entre os personagens de qualquer sociedade há um jogo de imagens, interesses e retribuições, que se estabelece por diversos meios. O compadrio é um dos mais significativos, mas há muito a discutir sobre essa complexa instituição, que não deve ser entendida de maneira simplista. O compadrio, como definiram Stephen Gudeman e Stuart Schwartz, “é uma construção, um sistema de signos”. 45 Precisamos, portanto, entender seus significados e o modo como é construído em diversos níveis de relação entre as pessoas.46

O compadrio se inicia no batismo, que por sua vez é tão antigo quanto o próprio cristianismo, ou ainda mais. Esse sacramento tem origem em ritos judaicos de passagem e iniciação e desde que Jesus foi imerso por João Batista essa é uma prática repetida entre os cristãos. Mas é a partir do século III que ele passa a ser o principal sacramento do catolicismo e ter um significado bem definido: purificação do pecado original. A indicação de padrinhos também é identificada já no século III.47

Alguns autores - e cito Gudeman como o principal48, compreendem a construção e o significado do compadrio como repetição ritual do mito/dogma da concepção de Jesus Cristo por Maria. Segundo Antonio Augusto Arantes (1982):

44 Ibdem.

45 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos

Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 35. 46 Ibdem.

47 Ibdem; BRÜGGER, Silvia M. J. & KJERFVE, Tânia M. G. Compadrio: Relação social e libertação

espiritual em sociedades escravistas. (Campos, 1754-1766). In: Estudos Afro-Asiáticos. (20):223-238, julho de 1991.

Referências

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