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3. PADRINHOS E MADRINHAS: HIERARQUIAS DEFININDO TRAJETÓRIAS.

3.2 MANOEL E ESMERIA, COMPADRES E ESCRAVOS:

A trajetória dos escravos de Domingos Inácio de Araújo, Manoel e Esmeria, é a mais impressionante entre todas as histórias que se cruzam nos registros batismais da pequena freguesia. Juntos eles batizaram 23 pessoas, mas Manoel ainda ultrapassa a esposa, chegando a 31 batismos, oito em companhia de outras madrinhas. O seguinte quadro mostra os afilhados do casal, e também os casos em que eles batizaram separados.

110 HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher

na família e na sociedade coloniais. 111 Ibdem.

Afilhados de Manoel:

Nome Ano de batismo Mãe Senhor Madrinha Brás 1832(ano de

batismo de vários africanos)

Africano Domingos Inácio de Araújo Joaquina (de Clara Madalena) Esmeria 1832 Africana José Caetano Esmeria

Claudiana 1834 Floriana Antônio Joaquim de Camargo Maria (de Domingos Inácio de Araújo) Vicência 1834 Floriana Antônio Joaquim de Camargo Maria (de Domingos

Inácio de Araújo) Ricarda 1834 Ana Manoel da Cruz Carneiro Maria (de Rita do

Nascimento) Marcolino 1836 Catarina Francisca Rodrigues, viúva Joana Maria Felicidade 1836 Maria Francisco de Paula Marques Genoveva Maria Barbara 1837 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Luiza (de Domingos

Inácio de Araújo) Rufina 1838 Maria José Caetano Esmeria

Amaro 1838 Maria Rodrigues

Livre Esmeria

Tereza 1839 Africana Domingos Inácio de Araújo Esmeria Tobias 1841 Luzia Tenente Antônio de Andrade ilegível Sebastião 1842 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria Efigênia 1842 Maria José Caetano Esmeria Eulália 1843 Maria José Caetano Esmeria Inácio 1844 Gertrudes José Marcelino Carneiro Esmeria Brígida 1844 Emiliana Livre Esmeria Luiza 1845 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria Firmina 1845 Severina Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria João 1845 Maria José Caetano Esmeria Martinho 1845 Eufrásia José Caetano Esmeria Joaquim 1845 Ana

Vicência Livre Esmeria Gabriela 1846 Escolástica Antônio Joaquim de Camargo Esmeria Marcolina 1846 Maria Domingos Inácio de Araújo Esmeria Iria 1846 Gertrudes José Marcelino Carneiro Esmeria Leopoldina 1846 Ana Veríssimo Inácio Marcondes Esmeria Dulcia 1847 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria Posidônio 1847 Maria Jose Caetano - Alferes Esmeria Luiza 1847 Eufrásia José Caetano de Oliveira Esmeria Ana 1849 Josefa Maria Livre Esmeria Afilhados de Esmeria sem Manoel:

Nome Ano de Bat. Mãe Senhor Padrinho

Benedita 1840 Benedita Livre Joaquim dos Santos Martinho 1848 Maria Domingos Inácio de Araújo Henrique (José Caetano de

Oliveira)

Generosa 1848 Rosa Lucas Antonio de Araújo Henrique (José Caetano) Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

O escravo Manoel casou-se com Esmeria entre 1835 e 1837. Antes disso já havia batizado uma africana como par da futura esposa, a afilhada ganhou o nome da madrinha, Esmeria. Após o casamento, a esposa passou a ser madrinha ao seu lado em praticamente todos os batismos. Ele batizou africanos, filhos de escravas solteiras,

filhos de escravas casadas, e até mesmo de mulheres livres. Esmeria, anos depois também apadrinhou crianças sem seu marido.

Os dois eram jovens ao começar a servir de padrinhos, ele tinha 21 anos, segundo consta na lista de habitantes de 1835, na qual a idade registrada foi 24 anos. Ela tinha 26 em seu primeiro batizado. Não eram novos demais para batizar, mas curiosamente até aquele momento alguns dos escravos mais velhos da escravaria, Bento, Inácio e Maria apadrinhavam mais pessoas e depois que Manoel e Esmeria começaram a ser padrinhos, os outros escravos pouco apareceram nos assentos.112

Manoel também era sapateiro, o que era uma valorização não só de seu preço como escravo, mas também de seu status frente aos companheiros de escravaria. Além disso, o fato de serem os dois escravos casados é importante na preferência dos compadres. Mas o que certamente contribuiu para o bom desempenho do casal foi o fato de terem como senhor o capitão Domingos Inácio de Araujo, cuja família já tinha o costume de estabelecer muitos laços de compadrio.

Entretanto, não foi a escravaria de Domingos o principal “mercado” de afilhados de Esmeria e Manoel. Eles foram padrinhos de escravos de alguns dos proprietários mais importantes em Palmeira com quem a família Araújo tinha vínculos muito fortes. Os principais foram o alferes Joaquim Mateus Branco e Silva, genro do capitão, o alferes José Caetano de Oliveira, seu cunhado113, e seu filho Veríssimo Inácio Marcondes. Além deles, há escravos de Antônio Joaquim de Camargo e Manoel da Cruz Carneiro, que assim com os anteriores figuram entre os padrinhos mais requisitados da freguesia. Manoel e Esmeria com o tempo ultrapassaram os outros padrinhos escravos de seu senhor e chegaram a um patamar que reunia os maiores proprietários da região. Se pensarmos nessa trajetória conforme o entendimento de Fragoso, em que indivíduos representavam casas nas relações de compadrio, então temos dois escravos que representam a casa do capitão Domingos de Araújo. Não é difícil entender esse vínculo como maior motivador da boa atuação do casal de escravos como batizantes, ainda mais entendendo que toda a família senhorial atuava dessa forma. 114

A atuação do casal como compadres acompanhava a da família Araújo e era parte da estratégia da casa em manter e fortalecer os vínculos com casas de aparentados,

112 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da

Palmeira, 1835.

113 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: reminiscências e tradições. Curitiba: A.M. Cavalcante, 1977. 114 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)".

conforme a teoria de João Fragoso. Porém a importância desses escravos nas relações de compadrio da casa era diferente da participação dos familiares do capitão. Os laços de compadrio de Manoel e Esmeria alcançavam uma parte da população que o compadrio da elite pouco contemplava, chegava às pardas livres e às famílias escravas com uma amplitude talvez irrealizável pelas famílias proprietárias.

Isso não significa que o casal não tivesse o mérito de tal trajetória, eles certamente eram valorizados na escravaria, o que levou ao acúmulo de afilhados na comunidade escrava em geral. Pode ser também que eles tenham sido uma referência de liderança em sua escavaria, já que mantinham uma relação mais estrita com o senhor. Além do mais, os dois poderiam interceder por seus afilhados por meio do senhor Domingos de Araújo, já que ele era próximo dos proprietários desses batizandos.

Essa proximidade com a família do senhor pode ser identificada examinando os batismos dos filhos de Esmeria e Manoel. O casal teve quatro filhos enquanto casados, e mais duas que não tiveram o pai registrado em seus assentos de batismo, anteriores ao casamento. Apenas a primeira filha, Catarina, batizada em 1833, teve padrinhos escravos. A partir da segunda os compadres de Manoel e Esmeria foram todos senhores, normalmente da família de Domingos Inácio de Araújo.

Relações de compadrio de Esmeria e Manoel por meio de seus filhos:

Ligação entre padrinhos e afilhado Ligação entre padrinho e madrinha Ligação por casamento

* Abaixo estão os filhos de Manoel e Esmeria, de acordo com seu ano de batismo e, acima, seus padrinhos. Aqueles ligados ao Capitão Domingos Inácio de Araújo, senhor dos batizandos, são seus filhos.

** Maria é escrava do Capitão Domingos, Francisco é escravo de Maria dos Passos. Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Filhos

O casal, como aconteceu com a maioria dos pais cativos dessa localidade, deu preferência a compadres livres e nesse caso muito bem colocados na sociedade. Essas escolhas podem ter diversas motivações, uma delas que entre os cativos não existisse ninguém que se equiparasse em prestígio a Manoel e Esmeria, o que deixaria as relações de compadrio muito desequilibradas. Outro bom motivo para a eleição dos padrinhos seria a aproximação à casa senhorial, visando melhorar a relação entre essa família e os senhores, o que consequentemente traria melhores condições de vida e mais estabilidade.

Independente dos possíveis benefícios de tais laços, esse casal soube aproveitar uma das poucas formas de conseguir prestígio tanto entre escravos quanto entre livres. Sua grande quantidade de afilhados, escravos de senhores que eram ligados à casa do capitão Araújo ou pardos livres, deu a eles um vasto campo de circulação no qual eram respeitados e influentes. Não conseguiram modificar a condição jurídica da família, mas com toda a certeza não eram anônimos em uma massa de escravos e tinham laços de solidariedade que ampliavam seus horizontes para além dos limites da escravaria. O fato de batizarem filhos de mulheres livres, o que também aconteceu com alguns outros padrinhos escravos, é mais uma demonstração de como o mundo dos libertos e livres de cor era ainda muito próximo ao mundo do cativeiro. O parentesco e outros laços ligavam essas pessoas. A hierarquia social interna à escravaria não se subverteu quando alguns elementos passaram à condição de libertos, tanto que Esmeria e Manoel batizam alguns filhos de mulheres livres, mas, para batizantes de seus filhos, preferiram outras pessoas. O fator da dádiva, do qual fala Hameister, é importante nesse ponto. Os compadres de casal eram de condição tanto jurídica quanto social muito superior à deles. Isso significa não só que o essa família é muito respeitada, mas que ela pode, numa relação de reciprocidade como essa, obter muitas vantagens desses laços em seu cotidiano.115

Essa trajetória é um bom exemplo de como as relações de compadrio, quando bem selecionadas, podem produziu um efeito de crescimento do status de famílias, para isso o casamento e a estabilidade familiar contribuem substancialmente. A primeira vista o caso de Manoel e Esmeria causa estranhamento, mas após a análise dos dados gerais e de outras trajetórias de padrinhos, vemos que ele se alinha perfeitamente a forma como o compadrio ocorreu em Palmeira. As tendências e o comportamento demonstrados pela

115 HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher

população em relação a esse laço espiritual, unindo-o a estratégias de sociabilidade permitiram que um casal de escravos fosse tão procurado para apadrinhar os filhos de outros cativos e de pardos livres. Vários fatores se somaram a favor disso e Manoel e Esmeria se tornaram uma referência importante como padrinhos para a base da população, assim como outros indivíduos ou famílias tiveram esse papel em seus círculos.

O fato de serem dependentes de um senhor que também tinha o compadrio como estratégia importante de domínio e poder político, como interpreta Carlos Lima, é um dos maiores colaboradores para tamanha expressão. Há uma troca entre a família escrava e a família senhorial, elas colaboram e também se tornam cada vez mais interdependentes. A forma dessa interdependência é certamente ambígua e desigual, na medida em que uns são escravos de outros. Certamente há violência, coação e desconfiança definindo essa relação, mas ela não deixa de ser vantajosa a ambos os lados. Se para os senhores ela garante uma forte ligação com os dependentes, num momento em que a força desses laços começava a ser ameaçada pela decadência da escravidão, para os escravos ela representa uma oportunidade de conseguir respeito e melhores condições no cativeiro para a família, quem sabe até aumentar suas chances de liberdade. 116

Todas essas trajetórias revelam um campo de atuação dos padrinhos bem amplo. E essa atuação por vezes se dividiu em pólos: aqueles que batizavam os filhos da elite, aqueles que batizavam os filhos de pequenos proprietários, os padrinhos de pessoas pobres e dos pardos livres, os padrinhos de escravos. Isso não significou que os padrinhos do primeiro grupo não fizessem parte de outros grupos, mas a relação era sempre vertical. Então, mesmo que um senhor de escravos batizasse um pardo livre, o maior padrinho entre os pardos livres nunca batizaria um filho de senhor de escravos. A exceção foram os padrinhos escravos que muitas vezes chegara a batizar filhos de mulheres libertas ou livres apesar de sua condição jurídica ser inferior.

No entanto, como defende João Fragoso, não devemos pensar apenas nos indivíduos. Esses escravos representavam casas, portanto a relação de compadrio com eles seria símbolo de um laço com a família senhorial, mesmo que indiretamente. É possível

116 LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-

também que, como identificaram Bruna Sirtori e Thiago Luís Gil para as redes de sociabilidade entre escravos de Vacaria, houvesse uma hierarquia entre as escravarias.117 A hierarquização é um traço característico dessa sociedade e evidenciado pelos assentos de batismo. Tanto entre livres quanto entre escravos, notamos essa característica influindo nas teias de parentesco ou compadrio e também ligada ao poder político. O status social definia o lugar nessa hierarquia, portanto, na medida em que ter agregados é ter mais dependentes e que o casamento une famílias, o parentesco espiritual compreendido no compadrio era uma forma de estender ainda mais essas teias que sustentavam o poder e o prestígio. Manoel e Esmeria, ao tecerem sua própria rede, contribuíram para o fortalecimento da rede de confiança e solidariedade de seu senhor, garantindo a ele sustentação suficiente para disputar o poder político da freguesia nova.

117 GIL, Thiago L. & SIRTORI, Bruna. Bom dia, padrinho: Espaço e parentesco na formação de redes entre cativos nos campos de Vacaria, 1778-1810. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10, nº 1 e 2, Jan. – Dez., 2009.