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2. ASPECTOS GERAIS DO COMPADRIO NA FREGUESIA DE PALMEIRA Há um aspecto de Palmeira, característico de muitos povoados, que ainda não fo

2.2 TRABALHANDO OS DADOS:

2.2.3 Africanos, expostos e índios:

Os assentos de africanos, crianças expostas e indígenas foram analisados separadamente, observadas as especificidades desses batizandos. A principal diferença para os outros batismos é a não participação da mãe na escolha dos compadres. Os escravos novos não têm mãe ou família conhecida, ao menos as fontes não permitiram esse tipo de associação. Alguns eram ainda crianças, mas a maioria já era adulta ao ser batizada. As crianças expostas são as que foram abandonadas pela mãe em alguma casa da freguesia e acolhidas por essa família, oficialmente a mãe dessas crianças não é conhecida. Os indígenas, todos acima de oito anos, aparecem algumas vezes como expostos ou é referido que foram criados por determinada família branca. Apenas três deles tiveram o nome da mãe registrado, o que contraria a regra geral da não participação das mães no compadrio, mas para demarcar a participação indígena nessa sociedade, esses assentos foram analisados junto aos dos outros índios e não aos de livres comuns.

Padrinhos e madrinhas de Africanos, expostos e índios, Palmeira (1831-1850):

Afilhados

Padrinho Africanos Expostos Índios Total

Livre 42 43 11 96 Escravo 21 - 1 22 Forro 3 - - 3 Ausente - - - - Madrinha Livre 33 40 7 80 Escrava 17 - 1 18 Forra 1 - - 1 ausente 15 3 4 22 Segundo padrinho 8 3 2 13 Total 66 43 12 121

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Os expostos e índios tiveram quase sempre padrinhos livres. Apenas dois índios tiveram padrinho ou madrinha escravo, mas com um número tão pequeno é difícil afirmar que as relações entre indígenas e escravos, ao menos a demonstrada pelo compadrio, fossem pouco significativas. A ausência de madrinhas foi relevante para esse pequeno número, e também a sua substituição por um segundo padrinho.

Há ainda mais um detalhe interessante: entre os expostos, em 13 casos os padrinhos eram os próprios receptores das crianças ou então pertenciam à família e 12 madrinhas também eram da família receptora. Essas escolhas de padrinhos apontam para um

interesse menor dessas famílias em, por meio do compadrio, fortalecer laços com outros domicílios por meio dessas crianças. É possível também que as crianças nessa situação não fossem muito atrativas para se apadrinhar. Os batismos que tiveram padrinhos e madrinhas receptores dos expostos indicam também, ao menos nesses casos, além da possível pressa do batismo e a conseqüente dificuldade de encontrar padrinhos, uma vontade de manter essas relações dentro do domicílio, ligando a criança à família de modo irreversível.

Quanto aos escravos novos, sua situação é bem diferente. Recém chegados e destinados ao trabalho escravo, eles ainda não tinham vínculos com essa sociedade, nem com escravos e menos ainda com livres. A importância de construir novos laços foi também muito grande para os africanos, pois o compadrio compreende solidariedade entre os envolvidos. Além disso, ele poderia trazer outros benefícios aos quais os escravos crioulos tinham maior acesso.82

Foram poucos os batismos de africanos, mostra da pequena participação desses escravos nos planteis paranaenses. No entanto é um período de maior entrada desses escravos novos na 5ª Comarca por meio de Paranaguá; em Palmeira, alguns proprietários eram compradores de africanos, como Domingos Inácio de Araújo. Entre 1831 e 1833 os batismos desses escravos foram mais numerosos, voltando a acontecer entre 1839 e 1842 em menor quantidade e mesmo em 1850, quando quatro africanos foram batizados poucos meses antes da aprovação da Lei Euzébio de Queiroz, proibindo definitivamente o tráfico atlântico que não tinha parado com a criminalização desse comércio em 1830. Era um ambiente de impunidade e de insistência na escravidão como base do sistema econômico, dando margem a fraudes e a burla de regras, o que certamente afetou também o registro dos batismos. Por isso, as fontes devem ser olhadas com alguma desconfiança, e devemos contar com a inexatidão de dados como idade e origem.83 Os assentos de batismos de africanos são 66. Entre eles, a maioria registrara padrinhos de condição livre, enquanto menos de um terço apresentou padrinhos escravos. Os padrinhos com a condição jurídica de forro indicada foram apenas três. Comparados com a escolha de padrinhos em outros grupos de batizandos, esse levantamento revela

82 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)"; LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835).

Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004

83 LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-

uma pequena, porém significativa diferença. Apesar dos padrinhos e madrinhas livres de africanos representarem a maioria, os de condição escrava crescem em importância. Nesse sentido, a tendência de se ter pessoas livres apadrinhando africanos vai à contramão do observado por Gudeman e Schwartz no Recôncavo baiano, onde os escravos africanos eram batizados sobretudo por outros escravos. No entanto, havia uma diferença brusca entre a formação das escravarias baianas e as paranaenses, essa questão foi levantada pelo próprio Stuart Schwartz num texto que compara o compadrio escravo em Curitiba e na Bahia. Para o autor, o tamanho das escravarias, muito pequenas no planalto curitibano, dificultaria a um escravo novo o acesso a padrinhos cativos e a escolha predominante de livres para esse papel era afetada por essa característica.84 Como já foi esclarecido, os padrinhos, além de parentes espirituais de posição superior ao afilhado, também compartilham da responsabilidade pela instrução espiritual e moral da criança e indiretamente pelo seu bom encaminhamento social. Essa relação então avança sobre o âmbito social e os padrinhos mantêm com seus compadres ou afilhados, laços de respeito e normalmente uma convivência mais aberta e constante do que seria sem a existência desse tipo de vínculo.85

Segundo Gudeman e Schwartz, no caso de africanos esses padrinhos poderiam atuar na ambientação do novo escravo à rotina de trabalho na propriedade e à sociedade na qual agora estava inserido, agindo como tutores do afilhado, que não tinha pais ou família a qual recorrer nesse momento. Os autores apresentam uma teoria sobre o batismo de africanos, aplicável àquele contexto baiano que estudaram, onde os padrinhos de africanos eram principalmente os escravos do mesmo plantel. Nessa situação, os proprietários desses africanos poderiam estar interferindo no estabelecimento dessas relações, indicando ou convidando seus próprios escravos a batizar os novos cativos africanos. Os padrinhos seriam em partes responsáveis pela "civilização" e adequação dos africanos tanto ao ritmo de trabalho quanto aos códigos de conduta da sociedade e ao cativeiro. O batismo teria uma função, nesses casos, destacada por Roberto Góes e Manolo Florentino em A Paz na Senzala, de justamente manter a ordem e pacificar a convivência entre os escravos e destes com o senhor.86

84 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”; SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes.

85 GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person.

86 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”; FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas:

Em Palmeira, como visto, os padrinhos de africanos foram preferencialmente livres. Entre os 21 padrinhos escravos de africanos, um terço pertencia ao mesmo senhor (7), entre as 17 madrinhas cativas, cinco delas eram escravas do senhor do afilhado. Isso mostra que a procura por padrinhos escravos que, pertencendo à mesma escravaria, ajudassem o africano em sua adaptação pode ter acontecido, mas não foi o que melhor definiu as relações de compadrio desses africanos. Mesmo que seu senhor estivesse interferindo na escolha dos padrinhos, eles teriam que vir de fora, dos vizinhos, na maioria dos casos. Mas isso, como aponta Schwartz, é sinônimo de maior alcance da sociabilidade escrava que pode ter reflexos no compadrio.87

De qualquer forma, ao observar esses padrinhos escravos de africanos, vemos que a idade mínima entre eles era de 25 anos e a maioria tinha mais de trinta, isso entre aqueles que puderam ser encontrados na Lista de Habitantes de Palmeira em 1835. A exceção é Manoel, que tinha 20 anos em um dos batismos, considerando que a idade anotada na Lista de Habitantes estivesse correta. Com algumas exceções como Júlio, que batiza apenas uma vez no período, eles estão no papel de padrinhos por várias vezes, assim como as madrinhas, com o detalhe de que elas eram mais novas. Então, independente de serem escravos de mesmo senhor, os africanos tinham como padrinhos homens mais velhos e com algum respeito dentro do meio escravo por serem padrinhos também de outros escravos. Robert Slenes, em Na Senzala uma Flor, não deixa de notar que dentro das escravarias, seguindo padrões africanos, os homens mais velhos, sobretudo os crioulos, estavam numa posição de poder em relação aos outros. Não foram encontrados muitos africanos batizando africanos, apenas José, cativo viúvo que tinha 68 anos ao batizar a africana Joana em 1831, e Antonio Congo, liberto casado com 66 anos ao batizar Francisco. Outro ponto importante é que em 11 casos, o padrinho e a madrinha eram escravos do mesmo senhor.88

Se essas relações não foram, como as que Gudeman e Schwartz observaram na Bahia, usadas para dar alguma estabilidade à adaptação do africano às novas condições de vida, elas talvez estivessem fortalecendo laços entre senhores, por meio do compadrio entre seus escravos, como João Fragoso verificou no Recôncavo da Guanabara. Mesmo o apadrinhamento de africanos por pessoas livres poderia evidenciar relações de

Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997.

87 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes.

88 SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835.

clientelismo entre o senhor desse escravo e os padrinhos, já que é difícil acreditar que em todos esses casos houvesse algum laço preexistente entre esse escravo recém chegado e uma pessoa livre, mesmo pobre, que motivasse o apadrinhamento.89

O Arcebispado da Bahia também havia definido que um africano deveria ser batizado, para ter a alma salva deixando de ser pagão, mas que para isso ele precisaria de educação e instrução nos saberes católicos, ou ainda, tornar-se minimamente “civilizado”, assim sendo possível a ele compreender o porque do batismo e de ser cristão. O rito em questão seria uma importante forma de civilizar esse indivíduo. Não obstante, o africano percebia que o batismo lhe daria um status mais valoroso. Mesmo entre os próprios africanos, haveria certo desprezo pelos que não foram batizados e esses indivíduos, que já estavam na pior posição possível nessa sociedade, teriam ainda menos chances de progredir de alguma forma, de serem aceitos entre os próprios escravos, caso lhes faltasse o sacramento maior da Igreja Católica.90 Então, não podemos excluir a possibilidade de que os próprios africanos escolhessem seus padrinhos e que eles escolheriam padrinhos livres por entender que esse vínculo seria valioso.

Outra constatação interessante é que quando os padrinhos de africanos foram escravos, eles batizaram sempre ao lado de madrinhas de condição igual ou forras. O mesmo acontece com as madrinhas escravas; em apenas um caso é observável a madrinha escrava ao lado de um padrinho livre. O que vai de encontro ao observado também nos assentos batismais de outros grupos, para os quais o estatuto legal do padrinho e da madrinha tende a ser igual. Quinze batizandos africanos não tiveram madrinhas, o que representa um percentual um tanto elevado, considerando a fração de outros grupos que também não tiveram madrinha. Mas eles também tiveram um segundo padrinho em oito dos casos, figura incomum que requer uma análise mais atenta.