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2. ASPECTOS GERAIS DO COMPADRIO NA FREGUESIA DE PALMEIRA Há um aspecto de Palmeira, característico de muitos povoados, que ainda não fo

2.2 TRABALHANDO OS DADOS:

2.2.2 Filhos de livres e escravos:

Os assentos de batismos daquelas crianças que tiveram mãe escrava e pai livre, ou mãe livre e pai escravo, receberam atenção especial. Trata-se de famílias de condição mista, que podem indicar por meio do compadrio, o uso de estratégias de libertos e cativos para obter mais espaço na sociedade dos livres ou de manter vivos os laços com os escravos e a antiga escravaria.

Foram listados padrinhos, madrinhas, pai, mãe e o senhor daqueles que eram escravos, os quadros que reúnem esses dados estão em anexo. Aconteceram 41 batismos desse tipo, separados de acordo com a condição da mãe do batizando. Como a condição

75 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”.

dessas crianças é controversa, elas acabam sempre por “seguir o ventre”, critério que é comumente aplicado pelos senhores para requerer direito de proprietário sobre a criança caso sua mãe seja escrava. Por isso, esses assentos foram divididos em dois grupos: um com dezenove batizandos que, filhos de escravas, permaneceram no cativeiro; outro com vinte crianças livres, seguindo o ventre. Para facilitar a visualização desses laços, os dados gerais estão reunidos em quadros.

Crianças escravas, com mãe escrava e pai livre:

Padrinho Madrinha

Livre 16 16

Escravo 3 2

Total 19 18*

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3. *Um caso com ausência da madrinha, que foi substituída por um segundo padrinho livre.

Os padrinhos foram sobretudo senhores de escravos ou livres pobres. Entre os senhores identificados não estão grandes proprietários. Pode ser que entre os pobres livres estivessem alguns libertos, mas por terem nomes muito comuns não foi possível atestar sua identidade. Apenas duas mães recorreram a escravos para o batismo de seus filhos, são elas Brígida, escrava de Felisberto dos Santos que teve cinco filhos batizados nessa época e Mariana, cativa de Francisco das Chagas. Três filhos de Brígida tiveram padrinhos escravos, sua filha Teresa teve também a madrinha nessa condição, já o filho Calixto teve como madrinha uma parda livre. A escrava Mariana teve uma escrava como comadre. Os pais das crianças são em algum momento referidos como forros, e por vezes indica-se o estado civil de casado. Mesmo que esses companheiros não tenham sido oficialmente casados durante todo o período em que tiveram seus filhos e os batizaram, vemos que eram relações estáveis aquelas apresentadas. Em nenhum caso os pais foram referidos como solteiros ou essas crianças como ilegítimas.

A formação de família é mencionada por alguns autores, como Robert Slenes, Roberto Góes e Manolo Florentino, como um meio de obter alguma estabilidade na senzala, melhorar as chances de negociação com os senhores. Também funciona como unidade que consegue resguardar e manter viva uma cultura escrava que junta elementos africanos com brasileiros e permanece em constante mudança. A família também pode representar uma via facilitadora da liberdade.76 Mas essa é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que traz vantagens ao escravo, pode prejudicá-lo e ser positiva para o

76 SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 –

senhor. Como observam Góes e Florentino, a família também atrela o cativo à escravaria, inibe fugas ou revoltas mais violentas, pacifica sua relação com os proprietários. Então, mesmo que seja uma maneira eficaz de obter estabilidade, maior status e um passo a mais para a liberdade, as formações familiares podem ter resultados não tão compensadores e às vezes cruéis. Um caso que exemplifica bem essa questão é o de Rita. Escrava de Joaquim Pinto, segundo consta no assento do batismo de seus filhos, ela pode ser também a escrava Rita da viúva Maria Inácia Martins, que novamente consta no livro. Essa possibilidade se deve ao nome do pai, em ambos os assentos, ser o mesmo: José da Silva, um forro. Se a informação está correta, então podemos ver que seus filhos são todos escravos, mesmo sendo seu companheiro um homem alforriado. Cruzando os dados com a Lista de Habitantes de Palmeira de 1835, encontra-se Rita já como escrava de Joaquim Pinto, que pode tê-la comprado da antiga proprietária, enquanto a filha Joaquina na aparece. No domicílio de Maria Inácia, senhora anterior da mãe, há uma menina escrava chamada Joaquina, de idade correspondente à da filha de Rita. Portanto, considerando verdadeiras as hipóteses acima, o casal não conseguiu a liberdade de seus filhos ou de Rita. Mãe e filha foram separadas.77

Cacilda Machado, estudando trajetórias de casais mistos, se deparou com uma variedade de resultados para a condição jurídica das famílias formadas por esse tipo de casamento. Os assentos de batismo foram um apoio importante para acompanhar esses resultados em longo prazo. A autora percebeu que, assim como alguns indivíduos escravos ao casarem com livres conseguiram a alforria, a maioria acabou vinculada ao senhor do cônjuge escravo, acabando numa condição de escravidão informal.78

Crianças livres, com mãe livre e pai escravo:

Padrinho Madrinha

Livre 15 17

Escravo 7 4

Total 19 21*

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

* Um caso com ausência da madrinha, que foi substituída por um segundo padrinho escravo do mesmo senhor que o pai da criança.

77 Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3 e Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira,

1835.

78 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem

do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)". In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2004.

Ao primeiro olhar já percebemos entre os padrinhos e madrinhas das crianças filhas de mulheres livres com pais escravos uma presença maior de cativos: sete padrinhos e quatro madrinhas, além de duas batizantes com condição jurídica de forra declarada no assento. Um casal em específico demonstra preferência por compadres escravos ou alforriados. São eles Constância Maria, forra, e Antônio, escravo de Manoel de Paula Teixeira. Entre seus seis filhos, quatro tiveram padrinhos escravos, entre as madrinhas havia uma escrava e ao menos duas forras. Outras famílias do grupo tiveram esse comportamento de modo menos acentuado. Mesmo com maiores chances de essas crianças terem padrinhos escravos e forros, normalmente os padrinhos e madrinhas foram senhores de escravos, algumas vezes familiares do senhor de seu compadre cativo.

Comparando os dois grupos, as diferenças são sutis. A pequenez do conjunto dificulta o destaque de diferenças. Porém, é perceptível que entre os padrinhos e madrinhas das crianças livres (as filhas de mulher livre e homem escravo), a presença de escravos se avoluma, enquanto que, como compadres de mães escravas, esses cativos só aparecem em casos isolados. Se pensarmos que eles fazem parte de um mesmo grupo, e que o objetivo de obter a liberdade para os membros da família é coerente com todos esses casos, então porque, quando separamos os assentos da maneira proposta, eles passam a indicar direções opostas em suas tendências de relações de compadrio?

Talvez a condição do afilhado influenciasse a escolha no sentido de que, quando o filho era escravo, os pais preferiram que ele tivesse padrinhos livres para, quem sabe, intercederem por ele em problemas futuros, como acontece com os outros batizandos cativos. Havia também a esperança de que vínculos com pessoas livres facilitassem a conquista da alforria para os filhos. Além disso, esses laços poderiam significar uma valorização do status social da família e prover relações futuras com mais pessoas livres. É um meio de chegar perto da sociedade livre mesmo sem pertencer a ela, na esperança de colher frutos positivos dessa proximidade. Essas relações também sugerem que, como observa Fragoso, houvesse uma aproximação entre famílias e mais, entre as famílias senhoriais aparentadas ou entre aqueles com quem mantinham relações clientelísticas.79

No entanto, a preservação de laços com escravos, principalmente pelos pais que tiveram filhos livres, fortalece a percepção de que a alforria não subtrai o liberto de seu meio

79 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)".

antigo – sobretudo nesse caso em que ao menos a mãe da família ainda estaria presa ao cativeiro. A manutenção ou formação de vínculos com alguns elementos desse meio era desejável e valorizada. A maioria desses padrinhos escravos pertencia ao mesmo proprietário do pai da criança, que em muitos casos deveria ser também antigo senhor da mãe, então vemos que os laços não são com elementos isolados, mas com a antiga escravaria. Além disso, esse poderia ser mais um meio de manter essa família presa ao cativeiro no entendimento do senhor.

Com todos esses dados explorados, entende-se que os padrões estabelecidos para a escolha de padrinhos são próximos aos encontrados por Gudeman e Schwartz na Bahia, mesmo que os contextos sejam muito diferentes. O tamanho das escravarias de Palmeira, muito menores que as presentes no ambiente estudado pelos autores, interfere nas diferenças identificadas, mas outra questão deve ser levantada.80

A escolha dos padrinhos, acredita-se, partiria dos pais da criança. Mas não seria uma escolha dupla, já que é um convite aos possíveis compadres? É aceitável que os pais ou a mãe da criança almejassem relações de compadrio que representassem de um modo ou de outro, vantagens para seus filhos apadrinhados ou mesmo para toda a família. Esse desejo poderia ser o de fortalecer laços afetivos, aumentar o status social, apostar na boa intenção dos compadres de melhorar as condições de vida de seu filho ou mesmo de agraciá-lo com alguma herança, ou então aproximar as duas famílias. As motivações que levam à aproximação de pais e padrinhos não podem ser alcançadas por nós de maneira direta, apesar de podermos vislumbrá-la por alguns instantes pelas pistas que nos deixam as fontes.

Mas essas relações têm duas pontas, e na ponta dos padrinhos, há a responsabilidade de um vínculo eterno com o afilhado e a necessidade de respeito, confiança e solidariedade para com os compadres. Portanto, a decisão de aceitar o convite e batizar a criança deveria ser bem avaliada.81 Muitos dos padrinhos, e madrinhas, aos quais somos apresentados pelo livro de batismos, constam várias vezes nos registros. Sua presença repetida é sinal de que lhes é atribuído valor como ocupante desse papel, e provavelmente em outros campos da sociedade, então pode ser que eles filtrassem esses batismos, escolhessem quem iriam batizar. Muitas possibilidades derivam dessa idéia: senhores que batizam escravos de outros senhores poderiam usar esse laço como forma

80 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”.

81 Novamente chamo a atenção para a relação de solidariedade, nos termos de Gudeman. GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person.

de vínculo entre as famílias dos proprietários (batizando escravos não deixam de batizar dependentes de alguém).