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CArtografias e Devires

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Academic year: 2021

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iseca

Kirst

m ionis

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© dos auto rres 1* edição: 2 2003

Direitos resservados desta edição:

Universidaode Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Carlsa M. Luzzatto

Ilustração c d a capa: Trabalho realizado por Luiz Silveira Guides, na Oficina de Criatividade do Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre Revisão: MMaria da Glória Almeida dos Santos

Editoração • eletrônica: Fernando Piccinini Schmitt Bolsista d e s apoio: José Ricardo Kreutz

C328 Cartografias e Devires: a construção do presente./ organizado por Tania Mara Galli Fonseca e Patrícia Gomes Kirst. - Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

Inclui referências bibliográficas.

1. Psicologia social. 2. Cartografia. 3. Devir. 4. Subjetivação. 5. Heterogênese. 6. Perspectiva da diferença. 7. Metodologia de pesqui­ sa. 8. Modo de produção. 9. Gênero. 10. Subjetividade. 11. Trabalho. I. Fonseca, Tania Mara Galli. II. Kirst, Patrícia Gomes. III. Título.

CDU 302.7

(3)

SUMÁRIO

Apresentação / 9

Parte I - Olhar e perspectivismo Um outro olhar / 17

Evgen Bavcar

Corpo: ponte para o mundo / 23 Oswaldo Giacoia Junior 6 Redes do olhar / 43

Patrícia Gomes Kirst

A rede: uma figura empírica da ontologia do presente / 53 Virgínia Kastrup

Utopias como âncoras simbólicas / 63 Edson Luiz André de Sousa

Da função política do tédio e da alegria / 69 Peter Pál Pelbart

Parte II - Cartografia como modo de produção: agenciamento de conceitos-afetos

Complexidade, transdisciplinaridade e produção de subjetividade / 81 Eduardo Passos e Regina Benevides

0 Conhecimento e cartografia: tempestade de possíveis / 91 Patrícia Gomes Kirst, Angélica Elisa Giacomel,

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© dos autores Ia edição: 2003

Direitos reservados desta edição:

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Carla M. Luzzatto

Ilustração da capa: Trabalho realizado por Luiz Silveira Guides, na Oficina de Criatividade do Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre Revisão: Maria da Glória Almeida dos Santos

Editoração eletrônica: Fernando Piccinini Schmitt Bolsista de apoio: José Ricardo Kreutz

C328 Cartografias e Devires: a construção do presente./ organizado por Tania Mara Galli Fonseca e Patrícia Gomes Kirst. - Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

Inclui referências bibliográficas.

1. Psicologia social. 2. Cartografia. 3. Devir. 4. Subjetivação. 5. Heterogênese. 6. Perspectiva da diferença. 7. Metodologia de pesqui­ sa. 8. Modo de produção. 9. Gênero. 10. Subjetividade. 11. Trabalho. I. Fonseca, Tania Mara Galli. II. Kirst, Patrícia Gomes. III. Título.

CDU 302.7

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SUMÁRIO

Apresentação / 9

Parte I - Olhar e perspectivismo Um outro olhar / 17

Evgen Bavcar

Corpo: ponte para o mundo / 23 Oswaldo Giacoia Junior Redes do olhar / 43

Patrícia Gomes Kirst

A rede: uma figura empírica da ontologia do presente / 53 Virgínia Kastrup

Utopias como âncoras simbólicas / 63 Edson Luiz André de Sousa

Da função política do tédio e da alegria / 69 Peter Pál Pelbart

Parte II - Cartografia como modo de produção: agenciamento de conceitos-afetos

. Complexidade, transdisciplinaridade e produção de subjetividade / 81 Eduardo Passos e Regina Benevides

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Um roteiro para Clio / 103 Sandra Jatahy Pesavento

P Corpolumetempoiesis: o vivo a ser pesquisado / 113

Fabio D al Molin, José Ricardo Kreiitz e Juliana Leal Dornelles ,j Novos coletivos sociais: a multidão e o amor ao tempo a constituir / 129

Cláudia Perrone

Trabalho e contemporaneidade: o trabalho tomado vida /1 3 7 Angélica Elisa Giacomel, A ngela Pena Ghisleni,

M ayte Raya Amazarray e Se Ida Engelman Os materiais da autoria / 149

Regina Orgler Sordi Ima(r)gens / 166

Liana Timm

Inventando uma outra psicologia social / 177 Rosane Neves da Silva

Parte III - Experimentando cartografar O esquecimento doeu - Ver e rever o tempo / 191

Elida Tessler

Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer [...] / 207 Suely Rolnik

Tempos empilhados e espacializados: questões sobre a subjetivação no processo criativo de trabalhos plásticos / 219

Cláudia M aria França Silva Gozzer Metáforas de sonhos / 241

Clarice Averbuck f) A cidade subjetiva / 253

Tania M ar a Galli Fonseca

o Cartografia: do método à arte de fazer pesquisa / 259 Denise Mairesse

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0 Genitais femininos e os lugares da diferença / 273 Paola Basso M enna Barreto Gomes

O espectador e o filme: efeitos especiais do inconsciente / 299 Paulo Fonseca

4> Cartografando a onda teen / 307 Patrícia Genro Robinson § Sala de aula em rede:

de quando a autoria se (des)dobra em in(ter)venção / 319 Margarete Axt, José Ricardo Kreutz

0 A instituição e sua borda / 341

Regina Benevides e Eduardo Passos

Corpo-sentido: a clínica a partir de uma psicologia dos sentidos / 357 Rejane Czermak

Relógios sem ponteiros: desvelando uma história de vida / 375 Bárbara Elisabeth Neubarth

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UM OUTRO OLHAR

E vg en B a vca r

Diante das interrogações que os problemas da visão, da cegueira e do invisível levantam, uma resposta demasiadamente pessoal poderia ser preten­ siosa e pouco convincente. E refletindo sobre essas questões que lembro as palavras de um amigo cego que, ainda criança, me disse: “Você sabe, a minha situação seria insuportável se você e tantos outros iguais a mim não existis­ sem”. No gueto onde vivíamos naquele tempo, a solidariedade se imporia para cimentar a unidade de um grupo social etiquetado como “privado de visão fí­ sica”. Quando penso nesta reflexão hoje, me soa ingênua, mas também muito mais verdadeira do que aparece nessa formulação simples. Meu amigo sabia que não estamos sós, e a primeira prova era a minha presença como interlocu­ tor, e em seguido aquela dos outros colegas da turma e a existência de tantos outros que sabíamos que eram cegos, conforme as estimativas e classificações das estatísticas. Talvez a frase “não estamos sós” designava inconscientemen­ te a presença muito mais largamente das pessoas que sofreram a nossa sorte e também, simplesmente, a fortuna de cada indivíduo.

As figuras míticas vindas da nossa cultura greco-romana, como o Ci­ clope, Édipo, Ulisses, Tirésias, Argus, nos revelam a historia do olhar nas suas formas mais primitivas. O Ciclope, por exemplo, arquétipo da visão intuitiva a mais rudimentar, dotado de um olho só, vê de uma maneira uni­ dimensional. Para ele, ainda existe uma visão paradisíaca do mundo, e mesmo ouvindo a voz de Ulisses, ele não pode se libertar desse apego ao todo da natureza para começar a olhar de outra maneira. Por isso, no mo­ mento da castração simbólica, quando Ulisses o priva do seu único órgão

Evgen Bavcar é fotógrafo, escritor e filósofo esloveno naturalizado francês. Cego desde

os 12 anos, vem desenvolvendo um trabalho sobre o estatuto da imagem na contempo- raneidade. E doutor em Filosofia e Estética. Pesquisador do CNRS (França), desde 1976 e autor de inúmeros livros, dentre os quais Le voyeur absolu (1992).

Tradução de Francis Poulet, estudante de Antropologia em Lyon, França; revisão de M a­ ria Carolina Vecchio e Freda Indursky.

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da visão, ele continua olhando em monocular e cai na armadilha do gran­ de espertalhão que conhecia a diferença entre forma e conteúdo, entre o nome e a coisa. Mais precisamente, para o Ciclope, Ulisses e Ninguém são um só e como seus irmãos entendem que ele não foi a vítima de ninguém, eles não vão socorrê-lo. A sua visão continua sendo unidimensional e não pode se opor à percepção binocular de Ulisses que vê, poder-se-ia dizer, o nome e a coisa, em paralelo ou separadamente, conforme serve a seus pla­ nos estratégicos. Com Ulisses, aparece o olhar ligado ao saber: Ele vê o que sabe e nada mais. Claro, é a mesma coisa com o Ciclope, mas sem saber olhar, não há pensamento diferenciado e, consequentemente, ele deve olhar sempre a mesma coisa, isto é, a unidade da natureza, o Um e indivisível na­ tural, que o leva ao seu trágico final. No desenvolvimento do “saber olhar” mítico, Ulisses representa o olhar normal, isto é, a visão comum, a visão na­ tural, considerada perfeita. Ulisses tendo vencido a batalha contra o Ciclo­ pe, o olhar monocular fica inadaptado quando o olho humano começa a pensar o que vê e a fazer a diferença entre o significante e o significado, entre o ob­ jeto e o seu signo, a pessoa e o seu nome. De tal maneira que, em relação ao

Ciclope, Ulisses se situa no mesmo nível que a criança frente ao espelho, fren­ te ao objeto que vai fazer nascer nele o olhar diferenciado. Não é por acaso que o olhar do Ciclope é representado na arte na forma de um espelho. Na realidade, a figura de deste monstro infeliz repercute a nossa própria experiên­ cia diante do espelho que nos força a separar a imagem refletida do seu ob­ jeto real. N a realidade, somos todos ciclopes infelizes, tendo esquecido o nosso destino trágico, certos e convencidos de que o olhar binocular de Ulisses é a única resposta para a natureza. Isso significa que a nossa condição de Homens acha com Ulisses a distância que nos permite pensar o mundo sem recair na fatalidade mítica. O sacrifício do olhar monocular do Ciclope é necessário para pagar o privilégio de não olhar sempre a mesma coisa, sem condições e sem esperança de também ver por nós mesmos. O olhar mono­ cular é o olhar da fatalidade que é, afinal de contas, cega porque se refere a si mesma, se repetindo infinitamente como o fazem os espelhos. Nessa pers­ pectiva, Ulisses representa o olhar destacado do determinismo arcaico que, no destino de Edipo, vai vestir uma outra forma, a cegueira.

O rei, não tendo reconhecido a sua mãe, fica cego para poder olhar a mulher. Isto é, para superar o pecado original no qual ele cai sem sa­ ber. Assim, a sua resposta à Esfinge: “É o Hom em ” encontra todo o seu valor. Binocular perfeito, Edipo não sabia que não podia sair da fatalida­ de mítica sem cair na consciência da sua condição de homem; e é aqui que com eça a se preparar o nascimento do terceiro olho. Édipo, tendo perdido a visão - a sua dupla visão - não pode mais navegar entre a vol­ ta para a fatalidade e a separação insuportável de um Ulisses que se

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con-tenta com a diferenciação visual entre o nome e a coisa. Privado dessa capacidade, Édipo se dirige para uma terceira possibilidade, uma visão que vai além do todo-mítico e o ver diferenciado de U lisses para se dire­ cionar ao invisível. A frase de Kazantzakis talvez tenha sido escrita para esses Ulisses satisfeitos com eles mesmos e com suas visões diferencia­ das: “Que pena dos nossos olhos de argila, porque não podem perceber o invisível”. Para Édipo, trata-se do sacrifício dessa argila para que o in­ visível - uma outra forma de existência - se tom e o objeto do seu dese­ jo. Privado da visão binocular, ele acha um referente sintético no tercei­ ro olho, pois só esse pode ir em direção ao invisível. Infelizmente, o des­ tino de Édipo foi freqüentemente mal-entendido, pois os cristãos o con­ sideraram às vezes como “o monstro grego”, sem admitir que ele repre­ sentava uma parte deles mesmos. É por isso que a tradição cristã o subs­ tituiu pela figura de Santa Luzia, que mexe mais no plano do imaginário e, com a acentuação iconográfica da castração simbólica, tenta ocultar ao mesmo tempo, a castração real e a noção do pecado original. Também não podemos esquecer todas as grandes injustiças, os preconceitos e os ultrajes que afetam aqueles que, no imaginário, fazem o papel de Édipo, o grupo social etiquetado “os cegos”, apesar do seu terceiro olho.

A arqueologia do olhar nos ensina que essa nova qualidade da visão humana se expressa melhor ainda no olhar de Tirésias, arquétipo perfeito do olhar desprendido dos fundamentos míticos. Tirésias nos propõe, de certa maneira, os olhares-limite, isto é as visões que nunca aceitam o mundo como está e sim como poderia ser. A sua interpretação da frase do oráculo: “É preciso se defender dos persas atrás de paredes de madeira”, não se sa­ tisfaz com o significado contido no enunciado simples, mas procura ir além de nomes como “paredes”, “madeira”, até criar a síntese num terceiro ter­ mo: “os navios”. O resultado dessa visão é um processo criador que a libe­ ra do determinismo contido nas palavras “paredes” e “madeira”. O olhar de Tirésias, vai mais longe do que a visão dos simples mortais que vêem e portanto entendem no primeiro sentido a reposta do oráculo: “tem que se defender dos persas atrás de paredes de madeira”.

Poderíamos adicionar também neste processo dos olhares que os ar­ quétipos míticos nos livram, o olhar de Argus, que consegue tão bem ver sem ser visto. É claro que isto nos levaria longe demais na arqueologia da visão. Portanto, é verdade que o mundo moderno, com suas inumerá­ veis câmeras, visíveis e invisíveis, começa a sonhar com o poder de Ar­ gus quando, às vezes, na sua cegueira generalizada perde a consciência de poder ser visto. Poder olhar sem ser visto é o sonho de um mundo policial que não se pensa mais ele mesmo, mas se acha absoluto nas suas visões aparentemente ilimitadas. Na época do todo visual, que começa a

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li«> lii ' i > In iiii|iiiilam ia do verbo e da narração, somos obri-giiil" ... ... iii iobie as lãntasias de Argus para não nos esquecer de qii«' p"i iiiiii’. |n*i leito que seja esse Argus que constitua a técnica da ótica nu idi'i na, os olhos de argila, que nem sempre podem ir ver o invisí­ vel, sito o seu suporte real.

Quanto mais o mundo visível se estende, mais cresce também, na mes­ ma lógica e nas mesmas proporções, o mundo invisível. Para que servem todos os satélites de observação, Argus do espaço, se não sabemos mais olhar além do nosso pequeno cotidiano visível? Até os cientistas mais sé­ rios sabem que a extensão da nossa visão é muito pequena quando compa­ rada com o que as máquinas podem captar do real. O astrofísico Peter von Balmoos acha que até os cientistas que observam o céu estão numa posi­ ção de cegos, pois no universo conhecido comparado com um piano de 53 oitavas, eles só podem ver uma mera oitava com os seus próprios olhos. Neste caso, não deveríamos confiar somente no olhar tecnológico da ciên­ cia, se nossa língua, nossa representação interior, não são capazes de se- gui-lo. Portanto, como diz um provérbio russo, é melhor “acreditar no seu próprio olho, mesmo se for vesgo”.

No domínio da ciência moderna, seria desejável dar mais valor ao nosso terceiro olho, aquele da representação interior, voltado para o in­ visível. Nosso mundo moderno se tornou uma evidente, pois aparente­ mente tudo é transparente e reconhecível. As câmaras que nos observam desde o céu, mas tam bém aquelas instaladas nos nossos lares terrestres, são a expressão de um Argus tecnológico, que voltou seus inúmeros olhos para o interior, isto é, para a auto-satisfação narcísica do olhar sobre si. Nós nos observamos, tendo esquecido que esses olhares já são manipu­ lados e não nos perm item ver-nos como somos verdadeiramente. Sobre esse assunto, poderíamos evocar o pessoal da televisão que é visto sem poder ver; mas é assim para todo mundo: o fato de ser visto sem poder olhar vira uma prática universalmente difundida. Ás vezes, eu penso que o meu colega cego, na escola, dizia a verdade quando constatava que não estávamos sós. Seria preciso definir de outra maneira a cegueira em re­ lação ao mundo dos videntes, que acreditam ver tudo, mas esqueceram que passar por Édipo e Tirésias é o nosso destino comum. Plotin dizia: “se os homens não tivessem alguma coisa de solar, eles não poderiam perceber o sol”. Nós provavelmente nos esquecemos disso, recusando aos nossos olhos, que participam da essência das estrelas, o direito às origens e o direito de olhar para o infinito

Todavia, em todas as épocas da história do homem, existiu um infi­ nito, além do horizonte do nosso olhar físico. O infinito, como aspiração para ir além do visível, sempre foi a nossa vontade de ver as coisas

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exte-riores pela nossa interioridade também, e de dar assim ao nosso olhar ex­ terior a capacidade de exceder as visões mais imediatas. No olhar huma­ no de hoje, se reflete a memória de todos aqueles que, antes de nós, que­ riam olhar com os seus próprios olhos e que nos deram como herança o poder de continuar a missão deles nas dimensões temporais e nos espa­ ços do universo que são os nossos. É por isso que temos que levar a sério essa missão transm itida por tantos olhares que, apesar de um apoio tec­ nológico fraco, descobriram novos mundos e realidades celestes inédi­ tas. Isto tam bém significa que não devemos nos contentar com o céu es­ trelado por câmeras que nos observam, mas que sempre devemos tentar olhar com os nossos próprios olhos, por mais frágeis que sejam. São os cegos que recusam ver somente através do unidimensional do olhar e que acreditam na necessidade mítica da passagem pela cegueira para acessar a uma nova visão do mundo. Não posso imaginar nova visão que não te­ nha sua origem no ponto cego que dá ao olho humano a possibilidade de distinguir entre a luz e as trevas.

Aceitar a cegueira é admitir o mundo dos objetos que manifestam a sua materialidade através das sombras que lhes asseguram uma realidade tangível, além da transparência absoluta do todo-visível. Não podemos virar reféns da luz fugindo á fatalidade mítica que nos priva da alegre fusão com a natureza, para poder tomar distância e entender o enigma da Esfinge. Por isso, nunca quis considerar a cegueira no mero plano individual, isto é, no gueto do grupo social do qual pertenço, mas sempre em um contexto mais amplo da experiência universal. Para mim, os cegos representam o único grupo que ousa olhar o sol bem nos olhos. Como as antigas vítimas propi­ ciatórias imoladas aos cultos solares, eles aceitam o sacrifício para que outro sol se levante. Esses Narcisos sem espelhos e esses pintores privados de imagens, para mim, nunca constituiriam uma categoria separada na qual a humanidade teria querido os deixar, mas são seres humanos inteiros. E encontro freqüentemente arquétipos da cegueira quando vago em minhas galerias interiores onde, às vezes, convidados insólitos me fazem compa­ nhia em meus olhares para o invisível. Essas silhuetas não me amedron­ tam como antes, quando a decisão de outrem, muito mais do que minha própria experiência, faziam de mim um cego. Se me defino como icono­ clasta exterior e iconófilo interior, é para tentar reconciliar os dois modos de visão possíveis, e sobretudo para revalorizar o olhar do terceiro olho. Penso que, desde os gregos, esse foi esquecido ou escondido pelos progres­ sos de uma visão que pretende ver tudo sem saber nada e sem representar o que ela viu. Comunicando ao outrem as imagens dos meus próprios al­ gures, faço de minha fotografia uma espécie de diálogo que lhe assegura uma existência interativa. Pensando bem, me contento com o frágil vis­

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lumbre que ilumina os meus espelhos interiores e dão um sentido às ima­ gens dos sonhos. Porque esquecemos muito freqüentemente que os sonhos também precisam de luz e de ícones a quem mandar as suas rezas notur­ nas. Por mais fracas que sejam, as imagens de sonhos sempre são a expres­ são de uma natureza outra que, na banal transparência do cotidiano, opõem as frágeis visões iluminadas interiormente, isto é, por elas mesmas.

Podemos, com a mesma lógica que fez dizer a Plotin que o olho hu­ mano não poderia ver o sol se não tivesse ele mesmo alguma coisa solar, afirmar que o dia que nos maravilha não nos daria uma mera imagem se o nosso olho não estivesse preparado pelos sonhos noturnos. E se às vezes somos forçados a observar o mundo de olhos fechados, é sobretudo para conservar o caráter frágil dos sonhos que nos levam para os espelhos do invisível.

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CORPO: PONTE PARA O MUNDO

O sw aldo G iacóia J u n io r

Para Nietzsche, quando se considera a história da filosofia, até ago­ ra, de um ponto de vista suficientemente crítico, pode-se constatar que “o pior, o mais persistente, o mais perigoso de todos os erros foi um erro de dogmáticos, a saber: a invenção por Platão do espírito puro e do Bem em si. ” 1 É desse pesadelo dogmático que o pensamento crítico pode nos des­

pertar. N ossa tarefa, como filósofos, consiste precisamente em permane­ cer despertos e, justamente por isso, colocar a verdade novamente sobre os próprios pés, pois o sortilégio de Platão consistiu em colocá-la de cabe­ ça para baixo.

Embalada pela crença na invenção platônica do espírito puro e do Bem em si, ao herança filosófica de Platão reputou o subjetivo - perspectivísti- co como o contrário da verdade, isto é, como erro, engano, ilusão. Porém, o que ocorreria se acordássemos do pesadelo dogmágico em que nos mer­ gulhou Platão?

Revelar-se-ia o caráter onírico daquela invenção e, com ele, a possi- blidade de que a verdade estivesse justamente do outro lado: aquele do dis­ farce, do velamento, da aparência; que a condição da verdade fosse a

mes-O swaldo G iacóia Junior é professor universitário, coordenador associado do Curso de

G raduação em Filosofia do IFCH/Unicamp. É doutor e pós-doutor pela Freie Universität Berlin. É pós-doutor pela Universidade de Viena da Áustria. Dentre as suas publicações m ais recentes destacam-se “O último homem e a técnica moderna” , publicado na Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, “Perspectivism o, genealogia e transvaloração” na revista Cult, n.37. Também seus livros Labirintos da alma e Nietzsche como um psicólogo - este último editado pela editora da Unisinos - podem ser considera­ dos como marcos na produção de pensamento contemporâneo.

1 N ietzsche, F. Jenseits von Gut und Böse, Vorrede, in Sämtliche Werke, K ritische Studienausgabep (KSA). Ed. G. Colli und M. M ontinari. Berlin/New York/München: de Gruyter, DTV, 1980, vol. 5, p. 12. Salvo indicação em contrário, as traduções são de m i­ nha autoria. A s letras BM. abreviam doravante : Para além de bem e mal, a tradução para o português do título do livro de que foi extraída a citação.

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ma da pele - que sem dúvida mostra algo, na superfície, porém somente na medida em que, ao mesmo tempo, encobre uma profundidade que dis­ simula e subtrai ao olhar.

Se invenção do espírito puro e do Bem em si é uma ousada inversão de valores ( Umwertung der Werte)', e uma vez que agora conseguimos des­ p ertar do pesadelo platônico - esse é, de acordo com a convicção de Nietzsche, o inteiro sentido da radicalização do projeto crítico kantiano e de toda filosofia moderna - , então nossa tarefa mais autêntica e radical con­ siste em subverter a inversão platônica.

Esse é um dos principais sentidos do programa filosófico da transva- loração de todos os valores (Umwertung aller Werte): “Minha filosofiap/a- tonismo revertido: quanto mais afastado do verdadeiro ente tanto mais puro, belo, melhor. A vida no brilho da aparência como meta” . 2

A vertente crítica desse programa se ocupa com a tarefa de demons­ trar que a crença em pressupostos, ou “preconceitos” metafísicos atávicos não é um “equívoco” do passado, que tenha sido superado pela moderni­ dade filosófica. Ao contrário, ele se encontra presente não apenas no racio- nalismo cartesiano e na filosofia que dele deriva, mas constitui uma espé­ cie de legado comum dessa modernidade.

Para Nietzsche, mesmo os aparentemente insuspeitos rincões da ló­ gica e das matemáticas, mesmo mais rigorosos defensores das ciências da n atau reza- ainda que professem o mais intransigente ateísmo e creiam uni­ camente na realidade da matéria - permanecem reféns de “ancestrais arti­ gos de fé metafísicos”, que têm sua raiz na crença platônica, de procedên­ cia imemorial, na dignidade filosófica na substância imortal da alma, esse nosso “verdadeiro Eu” .

E para revelar a eficácia latente do platonismo, mesmo em seus ad­ versários filosóficos mais professos, que Nietzsche empreende sua crítica genealógica da modernidade filosófica; seu propósito é denunciar o dog­ matismo inconsciente de que se nutrem as mais diversas tentativas de fun­ damentação objetiva do conhecimento e da moralidade.

Tomemos como ponto de partida o fundamentalismo racionalista de Descartes. Contra o fundamento arquimediano das ciências, Nietzsche ob­ jeta que a evidência presente na proposição “penso, logo existo”, ao con­ trário do que pensava o pai da filosofia moderna, não é uma certeza imedia­ ta, uma intuição, uma presença objetiva e transparente ao espírito da res cogitans, mas derivada, por inferência inconsciente, que tem por base a estrutura gramatical da proposição atributiva.

%

: N ietzsche, F. Fragmento póstum o do final 1870-abril de 1871, número 7 [156], In: KSA,

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Sejamos mais cautelosos do que Descartes, que se manteve preso à arma­ dilha das palavras. Cogito é, decididamente, apenas uma palavra, porém ela significa algo múltiplo: algo é múltiplo e nós, grosseiramente, o deixa­ mos escapar, na boa fé de que seja uno. Naquele célebre cogito se encon­ tram: 1) pensa-se; 2) eu creio que sou eu que pensa; 3) mesmo admitindo- se que o segundo ponto permanecesse implicado, como artigo de fé, ainda assim o primeiro ”pensa-se contém uma crença, a saber: que “pensar" seja uma atividade para a qual um sujeito, no mínimo um “isso” deva ser pensado - além disso, o ergo sum nada significa! Mas isso é fé na gramáti­ ca; aqui já são instituídas “coisas” e suas “atividades”, e nos afastamos da certeza imediata. Deixemos, então, de lado aquele problemático “isso”, e digamos cogitatur, como fato, sem intromissão de artigos de fé. Dessa maneira, novamente nos iludimos, pois também a forma passiva contém artigos de fé, e não apenas “fatos”; in summa, precisamente o fato não se deixa estabelecer de maneira nua, o “acreditar” e o “opinar” estão introdu­ zidos no cogito do cogitat e do cogitatur-. Quem é que nos garante que, com o ergo, nós não extraímos algo desse acredtiar e opinar, algo que remanesce? Algo é acreditado, logo acredita-se em algo - uma falsa forma de conclusão! Por fim, já se deveria saber o que é “ser”, para retirar-se do cogito um sum, já se deveria igualmente saber o que é saber - parte-se da crença da Lógica, sobretudo no ergo, e não apenas no estabelecimento de um fatum [...] O que é conhecer, em relação ao ser? Para aquele que, para tais questões, traz preparados consigo artigos de fé, a prudência cartesiana não tem mais nenhum sentido, ela chega demasiado tarde. Antes da ques­ tão do ‘ser”, deveria estar decidida a questão do valor da Lógica.3

Nietzsche considera, pois, que a evidência do cogito é caudatária da divisão da sentença gramatical elementar (sujeito - objeto), duplicada na categoria lógica de subsistência (substância) - inerência (atributo). O “in­ concusso fundamento” pretendido por Descartes é, na verdade, obtido a partir de um deslizamento inconciente que parte da divisão gramatical, passando pelas categorias lógicas de substância e atributo e, dela, para a de causa - efeito, que nelas repousa.

Esse raciocínio seria o seguinte: a) penso; b) pensar é atividade, e toda atividade é atributo de um sujeito (um substratum, uma substância), que tem que ser pensado como agente; logo c) eu, o sujeito, sou. Daí porque Descartes possa, partindo de “eu penso, eu sou”, consolidar sua segunda

’Nietzsche, F. Fragmento póstumo de agosto-setembro de 1885, numerado como 40 [23]; in:

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certeza inabalável: “eu sou uma substância cuja essência ou natureza con­ siste no pensar (res cogitans)".

Quando, porém, desmembramos essa célebre proposição, nela não en­ contramos senão “a superstição popular” que está no alicerce de todo ma­ jestoso edifício dogmático: a crenca no sujeito lógico-gramatical como

unidade substancial. Aquela proposição contém, pois,

uma série de afirmações ousadas, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível; por exemplo, que sou eu que pensa; que, em geral, tem que haver um “algo” que pensa, que pensar é uma atividade e um efeito de parte de um ser, que é pensado como causa, que existe um “eu”, final­ mente, que já está estabelecido o que deve ser designado com pensar - que eu sei o que é pensar.4

Se vai a pique o empreendimento cartesiano de fundar o inteiro edi­ fício do saber verdadeiro sobre a imediatez do cogito, igual destino viti­ m a a antítese do projeto racionalista, a saber a tentativa empirista de fun­ dam entar o conhecimento em certezas hauridas em percepções simples e imediatas.

Nesse caso, a refutação nietzscheana toma Locke e sua posteridade filosófica como os endereçados principais. Contra eles, Nietzsche faz ver que os conceitos e os sistemas filosóficos não surgem, nem se desenvol­ vem, arbitrariamente, mas conforme um desdobramento orgânico, como os “membros da fauna de alguma parte da terra”, um ecossistema, diría­ mos hoje. Conceitos e sistemas historicamente existentes são especifica­ ções de um “esquema básico de filosofias possíveis” que sempre percor­ rem a mesma órbita, sucedendo-se numa ordem determinada.

O assombroso parentesco de família de todo filosofar hindu, grego, ale­ mão, se explica com bastante simplicidade. Justamente onde existe um parentesco linguístico, toma-se impossível, em absoluto, evitar que, em virtude da filosofia comum da gramática - quero dizer, em virtude do do­ mínio e da direção inconsciente de funções gramaticais idênticas - tudo se encontre disposto de antemão para um desenvolvimento e uma sucessão homogêneos dos sistemas filosóficos: do mesmo modo como parece estar impedido o caminho para possibilidades distintas de interpretação do mun­ do. Os filósofos da área lingüística uralo-altáica (na qual o pior desenvol­ vido é o conceito de sujeito) olharão com grande probabilidade “o mundo”

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de maneira diversa, e serão encontráveis em outros caminhos que os dos hindugermanos e muçulmanos.5

Nesse caso, o núcleo do argumento consiste em demonstrar que a pro­ veniência de nossas idéias não é simples e imediata, um decalque de nos­ sas impressões sensíveis elementares, mas lógico gramaticalmente pré-for- madas; por sua vez, a estrutura gramatical da língua que falamos tem raí­ zes históricas, ligadas aos avatares da constituição e desenvolvimento de um povo, de uma cultura - variando, portanto, de acordo com as matrizes linguísticas que estão na base das grandes unidades culturais e étnicas.

Também no caso da proveniência das idéias, com ojá se evidenciara com a análise do cogito, a interpretação é inseparável do fato: do mesmo modo que “a verdade”, doravante, tem estatuto metafórico e só pode figu­ rar entre aspas, assim também ocorre com “o mundo” - que se estrutura como outro universo para um filósofo de outra raiz linguística, com uma gramática diferente da hindogermânica.

Vemos, pois, que nem racionalismo nem empirismo podem prover uma fundamentação objetiva do conhecimento. Além disso, quanto à des- construção da evidência do cogito, ela desencadeia também, segundo Nietzsche, processo filosófico de importância central para a modernida­ de: a diluição da noção de subjetividade predominante na tradição.

A certeza gerada pelo eu penso, como é patente, tem seu fundamento na clareza e na distinção produzida pela representação. Esta, por seu tur­ no, quase sempre esteve identificada com a atividade da consciência, inte­ lecto, mente, espírito, ou razão que, sob tal ponto de vista, podem ser to­ mados como termos sinônimos: o fundamento epistemológico da represen­ tação é a complementaridade entre entre sujeito e objeto; como ego cogi­ to, o sujeito da representação é idêntico à unidade da consciência.

Para Nietzsche, é justamente a dissolução dessa unidade que se en­ contra em ação na filosofia modema. É nesse sentido que o ceticismo pode ser interpretado como a tendência geral dessa filosofia; seu propósito, cons­ ciente ou não, é o solapamento da segurança inspirada pela certeza inaba­ lável da consciência de si. Por essa razão, Nietzsche situa o próprio Kant nas trincheiras do movimento cético:

No fimdo, o que faz, pois, toda a filosofia mais recente? Desde Descartes? - e, em verdade, mais em oposição a ele do que sobre a base de seu preceden­ te - por parte de todos os filósofos, sob a aparência de uma critica do concei­ to de sujeito e predicado, cometc-se um atentado contra o antigo conceito de

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alma - quer dizer, um atentado contra o pressuposto fundamental da doutrina cristã. A filosofia mais recente, como ceticismo gnoseológico, é, de maneira velada ou abertamente, anticristã: ainda que não seja, de modo algum, anti- religiosa, seja dito para os ouvidos mais sutis. Outrora, com efeito, acredita­ va-se na “alma”, como se acreditava na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se “eu” é condição, “penso” é predicado e condicionado - pensar é uma atividade para a qual tem-se que pensar como causa um sujeito. Depois, com uma tenacidade e astúcia dignas de admiração , fez-se a tentativa de ver se não se poderia sair fora dessa rede - se, por acaso, o contrário não seria verdadeiro: “penso”, como condição, “eu” como condicionado; “eu”, por­ tanto, apenas uma síntese produzida pelo próprio pensar. No fundo, Kant quis demonstrar que, partindo do sujeito, não se poderia demonstrar o sujeito - o objeto também não: pode não lhe ter sido sempre estranha a possibilidade de uma existência aparente do sujeito, isto é, “da alma”.6

Porque o sujeito tem seu estatuto ontológico fundado na unidade sim­ ples da consciência, a desubstancialização da subjetividade cartesiana, le­ vada a efeito pela dedução transcendental das categorias do entendimen­ to, na Crítica da razão pura, assim como a resolução da primeira antino­ mia, na Dialética transcendental, de fato, denuncia o paralogismo come­ tido por Descartes, mas para colocar em seu lugar a pressuposição neces­ sária de uma unidade formal integrando num sujeito a síntese das repre­ sentações. Nesse processo, o “eu penso”, como apercepção transcenden­ tal perde toda substancialidade, reduzindo-se à consciência formal de um “eu”, que deve acompanhar todas as demais representações, precisamente para que estas se unifiquem num sujeito.

O que, todavia, permanece metafísicamente o mesmo é que a subjeti­ vidade, apesar de meramente aparente, ou seja, de ser o efeito da síntese re­ alizada pelo pensar, continua fundada na categoria de unidade simples. Por isso, a crítica de Nietzsche atinge também esse ponto do programa crítico kantiano, enredado pelo sortilégio da unidade gramatical, tal como outrora Descartes. Tendo-se volatilizado o antigo “eu”, Nietzsche pode escrever:

Um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de ma­ neira que constitui uma falsificação da realidade efetiva dizer, o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que aquele “isso” seja precisamente o antigo e prov erbial “eu” é, para dize-lo de modo suave, nada mais do que uma hipótese, uma asserção, sobretudo não uma “certeza

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ta”. Definitivamente, dizer “isso pensa” já é dizer demasiado: já esse “isso contém uma interpretação do processo, e não faz parte do mesmo."

Portanto, nem como consciência formal, nem como substância pen­ sante, o auto exame da representação não pode demonstrar a unidade efe­ tiva da subjetividade. Pelo contrário, a radicalização do criticismo poderia mesmo avalizar a convicção do caráter ilusório dessa unidade.

Mas, se pela via do “eu penso” (pelo caminho da representação) não fazemos senão nos enredar nas malhas da própria representação, não nos seria permitido um acesso à essência do real por uma intuição, ou certeza imediata de outra espécie, a saber pela imediatidade da vontade? Não se­ ria a Vontade, no sentido schopenhaueriano do termo a “coisa em si”?

Para além de toda representação organizada pelo princípio de razão - para além, pois, de espaço, tempo, causalidade; portanto para além de toda possibilidade da sucessão, da contiguidade e da multiplicidade - , não atin­ giríamos o núcleo metafísico necessariamente uno da realidade por meio do querer, do ato de vontade, objetivada em meu corpo, que não tenho, mas sou?

Esta foi, com efeito, a solução encontrada por Schopenhauer. E, se Nietzsche interpreta a filosofia de Schopenhauer como o ponto mais alto do desenvolvimento da metafísica, isto é, sua transformação em ciência e em sistema, então a refutação da doutrina schopenhaueriana do corpo e da von­ tade será, para ele, também outro golpe mortal no dogmatismo metafísico.

Paradigmática, a esse respeito, é a análise levada a efeito no aforis­ mo 19 de Para além de bem e mal. Como veremos a seguir, também esse caminho não conduz à “verdadeira” realidade, à essência do universo, ao núcleo ontológico da coisa mesma; ou seja, também aqui não haverá como deslindar o fato da interpretação.

Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida do mundo; sim, Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única coisa por nós propriamente conhecida, inteiramente conhecida, conhe­ cida sem subtração e acréscimo. A mim parece, porém, que Schopenhauer, também nesse caso, só fez precisamente o que filósofos costumam fazer: que ele assumiu e exagerou um preconceito popular. Querer parece, para mim. sobretudo algo complicado, algo que somente como palavra é uma unidade, - e justamente em uma palavra reside o preconceito popular, que se tomou senhor da sempre apenas exígua precaução dos filósofos. Sejamos, pois, uma vez, mais precavidos, sejamos “não-filosóficos”.8

7BM, 17, p. 31.

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M- Jo ^m ntade, o expediente cuja ação eedita-se, no plano da analise da eraliza_se a superstição da ternos na análise da rePr e s ®n t a ç a 0 oT, pcão do intelecto. Desse modo,

C° nSt^e extraída de uma superficial auto m P observara a respeito dos unida^ apiicar a esse contexto, o que N ie ^ forte evldência: “Também Podej ent°s e percepções que se imPoern , Daiavra não garante a

uni-sentlTln^ sucede Sequentem ente, a lf uda l l u s a 0 mduzida pela

simpli-a1, coisa ” 9 - tam bém aqui nao ha s «Vontade” correspondesse

dade ja palavra, como se à unidade do cidade .dade, ou simplicidade do querer.

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t. - lugar, uma pluralidade de senti-pjgamos: em todo querer ha. em p ^ nos af aslam os, o sentimen-^ ntos, a saber, o sentimento do estad to desse própn0 “afastar-se” do estado para o qual tendemos, o sC muscular que os acompa-desse “tender", e, além dtsse um s e n ™ « ° ^

p e que. ISo logo “queremos . u n i q u e n ^ ^ ..jjraços e pernas , inicia seu jogo por um

m a nluralidade de sentimentos; e p n todo ato volitivo existe, pois, u m Pensament0 que comanda faz apenas sentim entos, pois também u P ^ ^ ^ deye acredltar que n e c e s s a r i a m e n t e de toda ^ ^ L a i i e r e r ’ como se então áinda per- Pa d 5a separar esse pensamento do q u complexo do que

se P° esse a vontade!”" Querer e, pois, a g muito m P arecer, à p a rtir da unidade nominal de Vontade u p

P° e .„separávelmente todo sentir e ■qu erer complexo de sentir te ^ ..Ém terceiro lugar, a vontade e ^ ^ L a q u e l e afeto do comando.

ar, mas sobretudo ainda um afeto, a ^ , essencialmente 0 a f e t 0 eA> q u e e ,d ®t l 0 m i n a d 0 ] ,o L e tem que obedecer: ‘eu sou livre’,

de V 10ndaoK 7 ^ 7 , ^ 0 ato de vontade se produz na e pela divi-

f , tem que o b ed ec er . Todo ato ae _ mesmo e nao m0 va-5 0'«*™ d° ",E u "- ExlS,tó' P-0,S' T '" „ m “eu” que comanda e um “ ele” ,

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m úsculo - um a d.vrsao, ent rs u * eu ^

ú i s e r ç ^ i ^ u e ^ complexacorTelação de forças que me11... ; &il11 V4t/ ^ ua 111JW* y—--- xnhpdecer.

n1 i,tui todo q u e re r, tem que obedecer.

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~ ~ w , i 14 Trad. Paulo C ésar de Souza. São

Pau-.^che, F. Hut>tano, demasiado humano, I, '^'.^panhia das Leiras, 2000, p.24s. 1® .jjKíche, F. B M , 19, op.cit. p.31 s.

ii iW ulbiJ

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Ora, pois, observe-se agora o que é o mais assombroso na vontade - nessa coisa tão complexa, para a qual o povo tem apenas uma palavra: na medida em que, em cada caso dado, somos, ao mesmo tempo, os que comandam e os que obedecem - e, como os que obedecem, conhecemos os sentimentos do constranger, urgir, pressionar, resistir, mover, que costumam ter início imediatamente depois do ato da vontade; na medida em que nós, por outro lado, temos o hábito de nos transplantar enganosamente para além dessa dualidade, por meio do conceito sintétido “eu”, - acrescentou-se ainda à vontade toda uma corrente de errôneas conclusões e, consequentemente, de falsas avaliações da própria vontade, - de maneira que aquele que quer acredita, de boa fé, que querer seja o bastante para a ação.13

N essa passagem, a noção, anteriormente mencionada, de unidade sin­ tética do eu adquire um sentido ligado ao universo do querer, não mais da representação. A síntese nele realizada é aquela da pluralidade de vivên­ cias e estados psíquicos numa unidade criada pela consciência. Nesse sen­ tido, a consciência produz uma identificação do “Eu” com o já menciona­ do afeto do comando.

Dessa maneira, quando queremos e esperamos que o comando da von­ tade seja executado, pela via da descarga do querer como ação, identifica­ mo-nos com os sentimentos próprios dessa condição, como o coagir, o oprimir, o constranger, deixando na sombra a dualidade inerente a toda relação de comando, a saber: a dualidade entre poder e resistência.

Essa identificação reune estados antagônicos numa unidade fictícia, cuja expressão se dá como consciência do poder “da vontade”, ou m e­ lhor como consciência da “liberdade” . O essencial consiste aqui num processo de unificação e identificação, cujo efeito principal é a simplifi­ cação do que é complexo:

Dado que, na maioria dos casos, só é realizado um ato de vontade onde também podia ser esperado o efeito do comando, isto é, a obediência, então traduziu-se em sentimento a aparência de que aqui haveria a ne­ cessidade do efeito-, é o bastante: aquele que quer acredita, com um con­ siderável grau de segurança, que, de algum modo, vontade e ação sejam uma única coisa - , ele atribui o sucesso, a execução do querer, à própria vontade e, ao fazê-lo, goza de um incremento daquele sentimento de po­ der que todo sucesso traz consigo. “Liberdade da vontade” - essa é a palavra para aquele complexo estado prazeroso daquele que quer, que

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comanda e, ao mesmo tempo, se coloca como um com o executante, - que, enquanto tal, co-experimenta o triunfo sobre resistências, porém jul­ ga consigo mesmo que seria sua própria vontade quem propriamente su­ peraria as resistências. Desse modo, aquele que quer acrescenta aos seus sentimentos de prazer, enquanto aquele que comanda, aos sentimentos de prazer das bem sucedidas ferramentas executantes, das “sub-vontades” serviçais, ou das “sub-almas” - sim, nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas.14

O que se apresenta, pois, sob o manto da unidade aparentemente sim­ ples da vontade, é um intrincado complexo psiquico, que deve ser cuida­ dosamente submetido à análise. Nele ocorre, com efeito, um duplo processo de identificação: por um lado, no sentimento de prazer produzido pela obe­ diência ao comando, identificam-se a instância que comanda e as “subfer- ramentas” executoras do comando. Nesse processo, o sentimento tônico de ter sido obedecido domina a superfície da consciência e, fundindo-se com ela, percebe-se a si mesmo como unidade.

D esse modo, o “Eu” acredita que basta a fo rça de sua vontade para que sejam vencidas todas as resistências que se opõem ao desencadeamento do efeito desejado, ou seja, à ação efetiva. É nesse intrincado processo de fusão e identificação que tem origem o sentimento de autarquia e liberda­ de da vontade. “L ’effet c 'est moi. ocorre aqui o que ocorre em toda comu­ nidade bem construída e feliz, a saber que a classe dirigente se identifica com os sucessos da comunidade. ” 15

Completa-se, dessa maneira a dissolução de toda evidência que ain­ da poderia restar como cidadela recuada para a filosofia modema: a filo­ sofia subjetivamente centrada não pode mais subsistir nem no polo da re­ presentação, nem no polo da vontade. Em nenhum deles se repousa numa unidade simples, o “Eu” se revelou como um abismo de problemas, em nenhuma parte se tem acesso ao real, à coisa mesma, nem sequer pela via do “Eu” ; o “fato” nu e puro jamais pode ser estabelecido. A consciência filosófica está irremediavelmente encerrada no círculo infinito das inter­ pretações. Com isso, consumiram-se, por esgotamento as formas tradicio­ nais de acesso à “verdadeira realidade”.

É nesse horizonte essencialmente hermenêutico que Nietzsche arti­ cula sua hipótese global de interpretação da existência, fundada no con­ ceito de vontade de poder, sob o signo da certeza de que não há texto - apenas interpretação. Curiosamente, o primeiro anúncio da doutrina da

14 Ibid. 15 Ibid.

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vontade de poder, ou, dito com mais precisão, a primeira exposição con­ ceituai dessa doutrina se dá no aforismo 22 de Para além de bem e m al, que se inicia justamente com uma espécie de elogio velado da filologia.

Que, como a um velho filólogo que não pde abdicar da maldade de colo­ car o dedo sobre más artes de interpretação, me seja perdoado - mas aquela “regularidade da natureza” de que vós físicos falais com tanto orgulho, como se - subsiste apenas graças a vossa interpretação e má “filologia”; - ela não é nenhum conteúdo de fato, nenhum “texto”, senão apenas um arranjo e uma distorção de sentido ingenuamente humanitá­ rios, com os quais vindes fartamente ao encontro dos instintos democrá­ ticos da alma moderna!16

Aquilo que se encontra em questão no presente experimento é a pro- blematização do mais aparentemente indisputado dos textos: aquele escri­ to pela hard Science, a física moderna. Esse texto é constituído pelas leis naturais, pela regularidades que institui a unidade da experiência, cuja máxima expressão se condensa na universalidade da lei segundo a qual os efeitos são produzidos a partir de suas causas. É a isso, desde Kant, que se dá propriamente o nome de natureza, a saber, a existência das coisas, na medida em que é determinada por leis universais.

Para Nietzsche, essa regularidade é, em primeiro lugar, interpretação, não-texto. Em segundo lugar, pode-se dizer que se trata de uma interpreta­ ção ideológica, na medida em que representa a consagração inconsciente do modo tipicamente democrático de pensar - dos instintos democráticos, no vocabulário provocativo de Nietzsche.

Com efeito, se existem leis na natureza, isso tem, pelo menos, dupla conseqüência: em primeiro lugar, trata-se de leis uniformes, às quais estão submetidos todos os fenômenos da natureza - de maneira que, todos são igualmente governados por tais leis.

Em seguida porque, perante a imutabilidade de tal ordenamento, nada se pode fazer: como elementos da natueza, todos os homens estão igual­ mente submetidos às suas leis; tais leis são universais e necessárias, por­ tanto ninguém pode modificá-las, não se pode senão obedecê-las. Mesmo a pretensa dominação humana da natureza não é senão sujeição a essas leis.

Porém, como foi dito, isso é interpretação, não texto: e poderia vir al­ guém que, com um propósito e arte de interpretação antitéticos, soubesse

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extrair, da leitura da mesma natureza e em face dos mesmos fenômenos, precisamente a imposição, tiranicamente impiedosa e inexorável de pre­ tensões de poder - um intérprete que soubesse colocar diante de vosos olhos a universalidade e incondicionalidade vigentes em toda “vontade de poder”, de tal maneira que quae toda palavra, até mesmo a palavra “tirania” finalmente parecesse inutilisável ou já como uma metáfora debilitante e suavizadora - algo demasiado humano. E que, inobstante, afirmasse desse mesmo mundo aquilo que vós afirmais, a saber, que ele tem um curso “necessário” e “calculável”, porém não porque nele domi­ nem leis, senão porque fa lta m absolutamente leis, e todo poder, em cada instante, extrai sua derradeira conseqüência.17

E indispensável prestar atenção em dois aspectos relevantes nesse tre­ cho: em primeiro lugar o cenário rigorosamente filológico em que o expe­ rimento transcorre: trata-se de um afrontamento entre duas interpretações: por um lado, a interpretação mecânica do universo, que repousa sobre o “texto” das leis naturais; por outro lado, uma “arte de interpretação e pro­ pósitos” opostos.

A refutação do estatuto de texto pretendido pela interpretação meca- nicista do universo pode ser ilustrado ‘estudo de caso’ do atomismo mate­ rialista, tal como é levado a efeito por Nietzsche, à luz das implicações e resultados epistemológicos da teoria da ação a distância formulada por Boscovitch. Nietzsche argumenta que, ao ocontrário do que se pretende, não nos encontramos perante uma superação do antigo e “ingênuo” ato­ mismo metafísico de Demócrito, mas de interpretação que se mantém in­ conscientemente refém de velhas armadilhas metafísicas.

No aforismo 12 de Para além do bem e do mal, Nietzsche se incum­ be de dar sustentação a seu argumento: “No que se refere ao atomismo ma­ terialista, esta é uma das coisas mais bem refutadas, e talvez não exista hoje na Europa, entre os eruditos, ninguém tão inculto que continue atribuindo a ele uma significação séria, exceto talvez para uso doméstico, a saber, como uma abreviatura dos meios de expressão. ” 18

Percebe-se que, desde o início, que o pretenso texto não consiste se­ não em uma economia de meios de expressão, na medida em que fomece um esquema abreviado para descrição de fenômenos empíricos. D escre­ ver a realidade empírica a partir da hipótese da combinação de partículas ou átomos de matéria é uma simplificação, para fins de descrição e

mani-l7lbid.

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pulação de certos fenômenos ousei vavcia, ^ M<Jv.______

que a própria “realidade” seja composta de tais átomos materiais.

A inferência nesse sentido pressupõe a petição de princípio de acor­ do com a qual seria possível conhecer essa estrutura básica do real, inde­ pendente de nossas hipóteses, ou, dito de outro modo, independentemente das condições “subjetivas” de nosso aparelho cognitivo, que se enraízam, em derradeira instância, na estrutura lógico gramatical de nossa linguagem.

A refutação mais radical do atomismo materialista se dá, graças, sobretu­ do, àquele polonês Boscovich, que junto com o polonês Copémico, foi até hoje o maior adversário e o maior vitorioso contra a aparência sensível.19 Copérnico e Boscovich figuram como aliados no combate à grosse­ ria filosófica que confia na aparência sensível; com isso, Nietzsche quer dizer que os modelos matemáticos empregados por ambos permitem a cons­ trução de hipóteses teóricas sobre os fenômenos naturais que ultrapassam os dados fornecidos pelos sentidos; não, porém, para retomar às hipósta- ses da metafísica tradicional, isto é, as idéias ou essências inteligíveis.

Se modelos de Copémico e Boscovich também fornecem a moldura teórica para uma “realidade inteligível”, distinta dos fenômenos forneci­ dos pelos sentidos, as conseqüências que se pode extrair de tais modelos se encaminham numa direção inteiramente distinta da metafísica tradicio­ nal. Eles representam momentos avançados na história da ciência ociden­ tal porque eles dissolvem pseudo-evidências fossilizadas, até então admi­ tidas como verdades inquestionáveis.

Pois, enquanto Copémico nos persuadiu a acreditar, contra todos os sentidos, que a terra não está fixa; Boscovich nos ensinou a abjurar tam ­ bém da crença na última coisa na Terra que “estava fixa”, a crença no “material”, na “matéria”, no átomo, nesse último resíduo de partículas terrestres; foi esse o maior triunfo sobre os sentidos até então conquista­ do na Terra. 20

Se, com Copémico, dissolve-se a crença na qual a Terra está fixa (aten­ temos para a polissemia desse “estar fixa” - isto é, ser inabalável, segura, constante), então não se pode mais crer em nenhuma estabilidade no uni­ verso. Este se tornou, no mais radical sentido do termo, infinito.

Contra a ideologia positivista dominante no meio científico do final do século XIX , é possível demonstrar que, a partir da noção de campo de força de Boscovich, os fenômenos de ação a distância são inteligíveis sem

'Mbid. -°Ibid.

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suporte material elementar da força, o átomo de matéria, de onde a força irradiaria seus efeitos.

Nesse sentido, a noção de campo de forças tomaria possível, segun­ do a interpretação de Nietzsche, operar unicamente com o conceito de for­ ça e de efetivação, sem necessidade do conceito de átomo material, ou de substância simples, que acaba então por se revelar um precipitado episte- mológico da categoria lógico gramatical de sujeito - portanto, um sucedâ­ neo materialista da crença na alma.

Percebe-se, pois, o primeiro objetivo estratégico do experimento de Nietzsche: ele consiste em denunciar a falácia argumentativa implícita na teoria que combate, em demonstrar que ela também é interpretação, não texto - o que se faz a partir da revelação do caráter ideológico da pretensa objetividade científica e da demonstração anterior do enraizamento lógi­ co gramatical (e, portanto, culturalmente determinado) de toda teoria.

Em seguida, percebemos o segundo momento do experimento pers- pectivista: a contra dicção, propriamente dita. Opondo-se como intérprete à física modema, o perspectivista, a partir da mesma natureza e em face dos mesmos fenômenos, extrairia outra leitura, tendo como fio condutor o coneito de “vontade de poder”.

A partir dessa ótica, o curso da natureza seria previsível, necessário e calculável, justamente porque não há leis naturais, e sim porque na natu­ reza vigora incondicionalmente a vontade de poder. A necessidade nela presente é aquela que vige em toda força, em toda relação de domínio e sujeição: todo poder, a todo instante, extrai sua derradeira conseqüência.

Desse modo, a natureza, como vontade de poder, só pode ser pensa­ da como infinita multiplicidade de forças em relação, como um imensurá­ vel campo de forças, cuja essência consiste em sua efetivação integral, a cada instante.

Que credencial tem a segunda interpretação, que a tom aria preferí­ vel à primeira? Que espécie de plus teórico se apresentaria em sua contri­ buição para a inteligibilidade da natureza? Em primeiro lugar, um nível superior de auto reflexão e autocrítica: a interpretação baseada na vontade de poder sabe de seu caráter incontomavelmente interpretativo - por isso ela não pretende ser texto contraposto à interpretação física, do mesmo modo como a “veracidade” de Nietzsche não se apresenta como mais ver­ dadeira do que a da tradição metafísica, mas a dissolve.

Em segundo lugar pelos efeitos potencializadores que produz: a in­ terpretação física, fundamentada na regularidade do curso da natureza con­ duz à resignação, à submissão do conhecimento e do agir humanos às leis imutáveis e inflexíveis da natureza. A interpretação fundada na vontade de

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pvjUCi 11UC1 a Ulll lllllllIdUVJ Iiun^umc UW u/^m yau w upviaviuuauuuuv j w i v a natureza (lembrem-nos das expressões “necessário” e “calculável”, que remetem para o âmbito da operacionalização técnica da teoria); ela capa­ cita a vontade humana de poder para imprimir sobre a natureza sua pró­ pria legislação.

Esse segundo sentido do experimento é tão fundamental quanto o pri­ meiro, na medida em que Nietzsche escreve Para além de bem em mal como prelúdio de uma filosofia do futuro, ou seja, como um texto que cria as con­ dições de possibilidade para o surgimento de novos filósofos - os legisla­ dores para os próximos milênios, uma vez que a legislação anterior entrou em colapso, com a morte de Deus e, em conseqüência dela, com o niilis­ mo e o acabamento da metafísica.

Novos filósofos, esses espíritos muito livres necessitam de nova at­ mosfera espiritual. Essa atmosfera é propiciada por uma espécie de Au- JkJanmg da Aufklàrnng, a saber por aprofundamento crítico do Esclareci­

mento. É impossível recuar daquele limiar filosófico já alcançado, ou seja, é necessário que o pensamento se emancipe de toda tutela e vassalagem que o mantinham agrilhoado ao obscurantismo e à superstição.

Todavia, é necessário ir mais adiante: justam ente porque somos es­ clarecidos e emancipados, é imperioso que ousemos problematizar o va­ lor absoluto da verdade e colocar em questão a existência de qualquer sentido objetivo, vigente na natureza ou na história, independente da von­ tade humana.

Dado esse passo, desaparece o texto, resta apenas o poder infinito da interpretação instituidora de sentido e de valor. Justamente por esse moti­ vo o aforismo ora comentado conclui da seguinte maneira:

“ Supondo que também isso não seja senão interpretação - e vós se­ ríeis pressurosos o suficiente para objetar isso? - ora bem, tanto melhor.” 21

A expressão final: ‘tanto melhor’ fomece a chave para a resposta à obje­ ção. Tanto melhor que seja interpretação, porque não há senão interpreta­ ção e, nessa medida, é melhor que ela seja consciente de si, coerente e não mistificadora. É nesse sentido que Nietzsche se põe à busca da formula­ ção por que pretende garantir sua própria interpretação liberadora.

Um experimento levado a efeito com o intuito de dar consistência epistem ológica à própria tentativa de construir uma interpretação global da existência, preparando as condições espirituais para o advento dos novos espíritos livres, essa é a tarefa instituída pela conjunção entre o pers- pectivism o e a doutrina da vontade de poder. Esse empreendimento,

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demos ve-lo em marcha por meio de uma análise dos aforismos 2 2 da

primeira seção de Para além cie bem e mal, combinado com o aforismo 36 da segunda seção -intitulada justam ente o espírito livre. No aforismo 36, Nietzsche apresenta uma formulação conceituai rigorosamente pers- pectivista da vontade de poder.

Suposto que nenhuma outra coisa seja “dada” como real, além de nosso mundo de desejos e paixões, que não possamos descer ou subir a nenhuma outra “realidade” que não justamente à realidade de nossos impulsos - pois penar é apenas um relacinar-se entre si desses impulsos: não seria permiti­ do fazer a tentativa e formular a pergunta se esse dado não é bastante para compreender, partindo do idêntico a ele, também o assim chamado mundo mecânico (ou “material”)?22

A condição colocada como início do experimento - a saber, que o único “dado” de realidade a que temos acesso é o complexo domínio de nossas pulsões, uma vez que o pensamento resulta da oposição e aliança entre impulsos só em parte conscientes - representa uma conquista tanto da teoria do conhecimendo de Schopenhauer, que Nietzsche assume par­ cialmente, quanto de sua própria teoria do conhecimento, largamente de­ senvolvida em suas obras anteriores, particularmente, quanto a isso, em A Gaia ciência.

D ada essa condição, não seria permitida a interpretação analógica, de modo que, a partir do que nos é semelhante - a saber, do mundo orgâ­ nico - , poderíam os inferir algo a respeito do universo inorgânico? Em outras palavras: uma vez admitido que, no mundo orgânico, vigora in­ condicionalmente a vontade de poder, não seria possível, por raciocínio analógico, generalizar a hipótese, afirmando que ela vigora também no mundo mecânico?

Para Nietzsche, esse alargamento não somente não é arbitrário e proi­ bido, como é lícito e ordenado, justamente pela racionalidade científica. É necessário conduzir nossas hipóteses a um máximo possível de generali­ zação e uniformidade, economizando princípios supérfluos, sobretudo os teoleológicos.

Assim o determina, com efeito, o rigor dos procedimentos, desde a famosa navalha Guilherme de Ockam, pois a consciência do método tem que ser “essencialmente economia de princípios. ” 23

22BM, 36, p. 54s. 23BM, 13, p. 28

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Por essa razão, não devemos acenai Víli uia t-opovivu uv ---enquanto não tenhamos levado a seu extremo limite [...] a tentativa de nos bastarmos com uma só. ” 24 Isso decorre da própna definição de método, afir­

ma Nietzsche, parodiando o modo matemático de expressão.

Para que o experimento seja conduzido adequadamente, seria neces­ sário conceber o mundo inorgânico como uma form a prévia e mais primi­ tiva da vida:

como algo dotado de idêntico grau de realidade que aquele possuído por nossos afetos - como uma forma mais tosca do mundo dos afetos, na qual se encontra ainda englobado, numa poderosa unidade, tudo aquilo que em seguida, no processo orgânico, se ramifica e configura [...] como uma es­ pécie de vida pulsional na qual todas as funções orgânicas, a auto regulação, a asimilação, a alimentação, a secreção, o metabolismo, permancecem sin­ teticamente ligadas entre si.25

Se admitimos a causalidade da vontade - e Nietzsche não duvida que a moderna consciência científica o faça considerando, por razões de mé­ todo, que não podemos asserir outra espécie de causalidade sem levar a seu extremo limite aquela que admitidos; então, é necessário considerar a causalidade da vontade como única.

Ora, sendo única a causalidade da vontade, então temos que admitir, desde a doutrina kantiana da categoria de relação, que esta comporta, não apenas causalidade e dependência, mas também comunidade e reciproci­ dade. Daí pode-se inferir que, se a vontade produz efeitos, isto é, se a von­ tade cansa, ela não pode produzir efeitos senão sobre algo que lhe seja comum e recíproco, isto é, sobre vontade.

“A ‘vontade’, naturalmente, só pode produzir efeito sobre ‘vontade’ - e não sobre ‘matéria’ (não sobre ‘nervos’, por exemplo) . ” 26 De onde re­

sulta legítima hipótese que se pergunta se, onde quer que se possa reco­ nhecer que efeitos são produzidos, não estaríamos em face da produção de efeitos de vontade atuando sobre vontade; se, na medida em que em todo acontecimento mecânico atua uma força, não estaríamos também aí em face de uma força de vontade, de um efeito de vontade.

Suposto, finalmente, que se conseguisse explicar nossa inteira vida pulsional como a conformação e ramificação de uma única forma fundamental da

24 BM , 36, p. 55. 25 Ibid.

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necessidade de se pressupor uma partícula atômica que seria como que o suporte material elementar da força, o átomo de matéria, de onde a força irradiaria seus efeitos.

Nesse sentido, a noção de campo de forças tomaria possível, segun­ do a interpretação de Nietzsche, operar unicamente com o conceito de for­ ça e de efetivação, sem necessidade do conceito de átomo material, ou de substância simples, que acaba então por se revelar um precipitado episte- mológico da categoria lógico gramatical de sujeito - portanto, um sucedâ­ neo materialista da crença na alma.

Percebe-se, pois, o primeiro objetivo estratégico do experimento de Nietzsche: ele consiste em denunciar a falácia argumentativa implícita na teoria que combate, em demonstrar que ela também é interpretação, não texto - o que se faz a partir da revelação do caráter ideológico da pretensa objetividade científica e da demonstração anterior do enraizamento lógi­ co gramatical (e, portanto, culturalmente determinado) de toda teoria.

Em seguida, percebemos o segundo momento do experimento pers- pectivista: a contra dicção, propriamente dita. Opondo-se como intérprete à física modema, o perspectivista, a partir da mesma natureza e em face dos mesmos fenômenos, extrairia outra leitura, tendo como fio condutor o coneito de “vontade de poder”.

A partir dessa ótica, o curso da natureza seria previsível, necessário e calculável, justamente porque não há leis naturais, e sim porque na natu­ reza vigora incondicionalmente a vontade de poder. A necessidade nela presente é aquela que vige em toda força, em toda relação de domínio e sujeição: todo poder, a todo instante, extrai sua derradeira conseqüência.

Desse modo, a natureza, como vontade de poder, só pode ser pensa­ da como infinita multiplicidade de forças em relação, como um imensurá­ vel campo de forças, cuja essência consiste em sua efetivação integral, a cada instante.

Que credencial tem a segunda interpretação, que a tom aria preferí­ vel à primeira? Que espécie de plus teórico se apresentaria em sua contri­ buição para a inteligibilidade da natureza? Em primeiro lugar, um nível superior de auto reflexão e autocrítica: a interpretação baseada na vontade de poder sabe de seu caráter incontomavelmente interpretativo - por isso ela não pretende ser texto contraposto à interpretação física, do mesmo modo como a “veracidade” de Nietzsche não se apresenta como mais ver­ dadeira do que a da tradição metafísica, mas a dissolve.

Em segundo lugar pelos efeitos potencializadores que produz: a in­ terpretação física, fundamentada na regularidade do curso da natureza con­ duz à resignação, à submissão do conhecimento e do agir humanos às leis imutáveis e inflexíveis da natureza. A interpretação fundada na vontade de

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