• Nenhum resultado encontrado

O VIVO A SER PESQUISADO

No documento CArtografias e Devires (páginas 109-125)

Fa bio D a l M olin Jo sé Ricardo Kreutz Juliana L eal Dornelles

Este texto, longe do propósito de martelar informações e verdades, é uma tentativa de costurar provocações e arrematar pensamentos que bro- tam da fonte da imanência e seccionam-se em despretensiosas e tênues fron­ teiras na acidentada geomorfologia do saber, delimitando arte, filosofia e ciência. Em nosso método, apresentamos a arte como lume, a filosofia como temporalização, e a ciência como estratégia poiética e autopoiética.

A intencionalidade disso é construir uma perspectiva de pensarmos o vivo nas pesquisas da subjetividade. É com essa inspiração que nos apare­ ce pela primeira vez corpolumetempoiesis, ou seja, como num amálgama indiferenciado comportando-se e evoluindo como um sistema vivo, estes tiês intercessores1 forjarão um entendimento para a importância deste mes­ mo “vivo” no plano das pesquisas dos modos de subjetivação no contem­

lá ld o Dal M olin é psicólogo graduado pela UFRGS, m estre em Psicologia Social e Institucional — UFRGS, membro do grupo “M odos de trabalhar, modos de subjetivar,

piofessor no curso integrado de formação de agentes de segurança pública Susepe, B M e Policia Civil.

.lime K ican lo K rc u tz é psicólogo graduado pela Universidade do Vale do R io dos Sinos, m estnindo cm Psicologia Social e Institucional - UFRGS na linha de pesquisa “ Subjetivi-

dndes contemporâneas, discursos e sintomas sociais” , membro do grupo “M odos de tra-

Imllmr, modos de subjetivar” , colaborador do projeto de pesquisa e intervenção em ambien-

lm de rede - CONSTRUTEIAS - do PPG da Educação - UFRGS.

.Iiiliana Leal D orncllcs é psicóloga graduada pela UFRGS, m estranda em Psicologia Nocinl e Institucional - UFRGS na linha de pesquisa “ Subjetividades contemporâneas, diNclli sos e sintomas sociais”, membro do grupo “M odos de trabalhar, modos de subjetivar”,

t luwn do grupo de teatro “ Firuliche” .

11 llili/am os o term o intercessor na acepção que lhe dá Deleuze. Cf. D eleuze, G. Os uiirin .soics Em ( 'onversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 151-168.

porâneo. Tal entendimento se desdobra em no mínimo três eixos funda­ mentais: 1) a maquinaria organizativa deste “vivo” = corpopoiesis\

2

) O “vivo” como dispositivo temporal para pensar o funcionamento sistêmico de pesquisa no plano social = tempoiesis; 3) Um ensaio sobre a estética do corpo na sociedade contemporânea a partir de uma pesquisa que é viva como a arte na sua conformação e deformação = himepoiesis.

Ao escrever as linhas que se seguem, caminhamos o caminho, cede­ mos ao lirismo e forjamos conceitos duros, argumentamos e, vez em quan­ do, flutuamos como plumas em furtivas escapadelas poéticas, levamos a sério o que dizemos jamais sem um quê de irreverência e malícia, enfim, fazemos do desequilíbrio nosso ponto de metaestabilidade.

A precisão metodológica é nosso objetivo, pois entendemos que ela pode ser como o chá de Mandrágora: um potente afrodisíaco cuja dose excessiva é veneno mortal. Queremos ser ímpares na medida em que cada autor é um e todos são três. Porém podemos ser pares que se acoplam e dialogam como num campo de forças, já que seis mãos ciborgues digitam movidas por aprendizados que nos tomam incontáveis.

Sendo assim, aprofundando aquela que imaginamos ter sido a estra­ tégia de Deleuze e Guattari ao escrever O que é a filosofia? - de um des­ dobramento de dois autores em muitos traduzidos num devir ciência, um arte e noutro filosofia - somos três autores e estamos tomando este texto um único corpo autoral, respeitando sua complexidade de variáveis, po­ rém reconhecendo os limites de seu território. Nesse sentido corpolumen- tempoiesis é o que pretendemos gerar a partir dessa multiplicidade.

CORPOIESIS

Diremos, de outra forma - e certamente não o diremos melhor - que uma sociedade é, ao mesmo tempo, máquina e organismo. Seria unicamente máquina se os fins da coletividade pudessem não apenas ser rigorosamente planificados. (Canguilhem, 1966, p.224)

Quem escreve e quem lê o que está escrito aqui? Cérebros codificam in­ formações para mãos que digitam palavras que serão impressas para que olhos leiam e cérebros decodifiquem. Aquilo que tradicionalmente está colocado como a empiria do objeto, não abarca a complexidade de transformações que os corpos sofrem no ato da pesquisa. Tudo o que um pesquisador pode dizer sobre um corpo ou um organismo vivo é a partir do seu próprio viver.

A partir disso é importante fazermos a diferenciação entre o vivo e o viver: no vivo “as regras de ajustamento entre si são imanentes” (Cangui-

lhem, 1966, p.222-223), quer dizer, não há conflitos nem brigas, no máxi­ mo uma dorzinha de barriga aqui e uma dorzinha de cabeça acolá, o que poderia ser qualificado como uma dimensão orgânica (de organismo). En­ quanto, no viver, as regras são sempre uma preocupação aos dirigentes da sociedade, ou seja, estruturam-se a partir de forças também externas e atra­ vés de um maquinismo abstrato de funcionamento. O vivo sente fome, dor, sono, mas as regras sociais do viver estabelecem, em sua complexidade, hora para dormir, para comer, o diagnóstico da dor, bem como o que se come, em que lugar se dorme, e quem é responsável pela cura da dor.

A partir de agora sempre que falarmos de algo vivo queremos que se subentenda esse funcionamento imanente do organismo vivo na sua relação com o viver. Com isso estaremos começando a apresentar a vocês, o nosso objetivo principal que é en tender o fenômeno a ser pesquisado enquanto um sistema complexo, articulado e aberto. Este corpo do vivo e do viver.

Uma rocha resigna-se à sua fixidez pétrea, permitindo que a água do mar ou do rio apenas a dissolva lentamente, ou que o limo cresça e se multi­ plique em suas costas. Há milhares de anos as rochas reinavam absolutas em nosso planeta, em sua imobilidade conformada, e tudo não passava de água batendo em rochas, rochas deslocando-se pelo céu ou pelas placas tectôni- cas. As rochas e as águas conflituavam-se, derretiam e solidificavam em uma simbiose termodinâmica, até que algumas moléculas de proteína resolveram se fechar num ciclo, e tal fechamento teve para nosso mundo o efeito de uma bomba. Inaugurava-se uma outra dimensão, a nossa dimensão, a divisão en­ tre o vivo e o não-vivo. E foi esta bomba que fez com que biólogos como Maturana e Varela (2001) produzissem questões ao mesmo tempo físicas e metafísicas sobre a vida, que seriam respondidas por religiosos e teólogos como “a vida é a prova da existência de Deus”. A resposta da biologia é: o sentido da vida é produzir a vida, autoproduzir-se.

A nova visão de mundo oriunda da física contemporânea e que foi aplicada ao conhecimento biológico mostra-nos a vida como um processo de conservação e adaptação às dificuldades, ou neguentropia,2 sendo que um recurso utilizado para tal é o do aproveitamento de experiências “bem- sucedidas” através de um arquivo repleto de informações sobre as mesmas. Para auxiliar em nosso raciocínio, Bergson também nos fala sobre a ques­ tão da adaptação:

As condições não são um molde na qual a vida irá inserir-se, c do qual receberá a sua forma: ao raciocinar assim, é-sc iludido por uma metáfora. A forma ainda não existe, e à vida caberá criar ela própria uma forma apro-

priada às condições que lhe são dadas. Terá que tirar partido dessas condi­ ções, neutralizar-lhes os inconvenientes, e utilizar-lhes as vantagens, em suma, responder às ações externas construindo uma máquina que não pos­ sui nenhuma semelhança com elas. Aqui adaptar-se já não significará repe­ tir, mas sim replicar, o que é totalmente diverso. (Bergson, 1964, p. 8 8)

Em cada espécie viva, no decorrer de gerações, as populações vão nascendo, vivendo experiências e dificuldades, procurando adaptar-se e reproduzindo-se de diversas formas. Chegamos, pois, a um princípio ho- logramático: nosso corpo é composto de bilhões de células que possuem um núcleo onde ficam gens que contêm informações básicas para a fa­ bricação de novas células para manutenção do corpo. Nossas células es­ tão o tempo todo morrendo e novas são fabricadas em um princípio de conservação, que não é assim tão instável. Bom, ele é estável a ponto de irmos dormir como Homo Sapiens sem correr o risco de no dia seguinte acordarmos como baratas, mas possui uma certa instabilidade no senti­ do de, no início do verão o indivíduo teuto-rio-grandense ser branqui- nho e no fim, após muito sol, algumas células começarem a reproduzir- se com excesso de melanina, causando as famosas manchas solares, que podem ou não ser um câncer.

No nível macroscópico, também funciona assim: muitas caracterís­ ticas podem manter-se, mas, por exemplo, grandes migrações ou m udan­ ças climáticas podem alterar as informações a ponto de introduzir diver­ sos graus de variabilidade. Isso seria o motivo de, no norte gelado haver uma tendência das pessoas serem branquinhas e terem o mínimo de man­ chas de melanina, e na Á frica Central, a melanina predominar na pele. M as, no fim das contas, tanto um viking quanto um guerreiro hutu são homo sapiens.

O DNA é uma espécie de computador, que vai operando, salvando uns arquivos e deletando outros, e às vezes podemos salvar um arquivo nocivo (no caso de determinadas síndromes). Sob esta visão, o gene não determina nada, pelo contrário, ele é determinado pelo conjunto de ações adaptativas de uma espécie inteira, e as informações contidas neles podem ou não ser utilizadas pelos indivíduos, dependendo de questões probabi- lísticas ou até mesmo de escolha. Esta poderia ser a replicação referida por Bergson. De certa forma, os genes são nossos e os utilizamos do jeito que

3N esse sentido Bergson tam bém pode nos ajudar a pensar ao dizer que “ [...] os fatos mostram-nos que a transm issão hereditária constitui exceção e não regra. Como esperar

“querem os”, ou às vezes nosso comportamento, de forma inconsciente, coletiva ou individual pode vir a potencializar a sua ação.3

O corpo, sob o ponto de vista da genética, ostenta uma macromemória e uma micromemória, um devir elástico de células que nascem e morrem em organismos que nascem e morrem, como parte de espécies que surgem e se extingem. Como Maturana e Varela (2001) dizem, podemos observar os sistemas como unidades simples ou compostas, a célula pode ser vista como ãjeum ãóU e suas moléculas, o órgão como reunião de células, o organismo como conjunto de órgãos, a espécie como conjunto de organismos.4 Esta cu­ riosa repetição de um padrão encontrada em samambaias, montanhas e cou- ves-flor, foi descoberta por um matemático chamado Mandelbrot, através da geometria não linear dos fractais. Mas, como mostra o trabalho de Prigogi- ne, somos sistemas dissipativos, longe do equilíbrio, estamos montados em uma vertiginosa flecha do tempo, contra a qual nossa única arma é o ciclo da vida, nosso território móvel, nômade, que replica a repetição para existir. Todo dia nasce todo tipo de ser, mesmo que nos pareçam iguais, são com­ pletamente diferentes: o Fábio é diferente do Ricardo, que é diferente da Ju­ liana, embora todos sejam humanos. Esta replicação existencializante é o que cria os Ritomellos, conceito musical agenciado por Guattari da obra de Mareei Proust. É a replicação de um organismo e seus efeitos que gera o domínio comum a dois ou mais organismos, que compartilham impressões e geram um território comum, compartilhado, que, no caso específico da espécie hu­ mana, gera a idéia de corpo. O corpo, já atentam Deleuze e Guattari, é gera­ do pelas idéias e histórias de corpo, um processo de bricolagem, daí, para a noção de que todo corpo é um “corpo sem órgãos” (CsO).

U m a das dinâmicas de possíveis acoplamentos entre unidades huma­ nas e outras entidades da natureza dá-se pelo domínio de representações simbólicas. Um dos importantes domínios de representação da consciên­ cia hum ana é a noção de “corpo”, marca de um processo lingüístico e histórico.Nesta perspectiva, organização, estrutura, acoplamentos, reali-

que dela possa resultar a formação de um órgão como o ôlho?” (p. 109), ou seja, a gené­ tica realm ente funciona enquanto um dos m últiplos códigos que influenciam na com posi­ ção da vida dos corpos mas não determina tão diretamente como se imagina. Ainda Bergson irá nos dizer m ais adiante que os imprevistos na constituição dos órgãos são tão im perati­ vos quanto a determinação dos códigos. Diz ele: “Para nós, o todo dum a máquina organi­ zada representa de fato, a rigor, o todo do trabalho organizador (embora isso só seja ver­ dade de uma forma aproximativa), m as as partes da m áquina não correspondem as partes do trabalho, porque a materialidade desta máquina já não representa um conjunto de meios empregados, mas sim um conjunto de obstáculos vencidos, trata-se antes duma negação do que duma realidade positiva.” (p. 117-118)

mentação, identidade, são características processuais daquilo que chama­ mos sistema representacional. Mas, a noção de sistema transcende a dimen­ são representacional, pois representação representação e corpo são duas faces sem espessura. O que estamos falando aqui é que o plano do viver é representacional, enquanto o “vivo” está nas afecções. Ambos são de na­ turezas distintas, embora coexistentes.

Dentro desta dinâmica, chegamos ao fato de um sistema ser uma reu­ nião de elementos cuja integração (organização) produz algo diferente da produção dos elementos em separado (estrutura), e esta integração pode ser reconhecida por um observador extemo (realimentação). O todo é di­ ferente da soma de suas partes. Aqui fazemos uma interface para a metá­ fora do Corpo Sem Órgãos: um sistema surge como potência emergente, ele é o produto de uma junção, de uma reunião, de uma enação, ou cogni­ ção corporificada, (Varela, Thompson e Rosch, 1992). Como explicitare­ mos mais a seguir, o corpo surge em um domínio lingüístico, que é sem ­ pre heterogêneo e compartilhado, bem como as noções de “doença”, “sin­ tom a’, “cura” são constantemente revistas e rediscutidas pelos cientistas.

Por enquanto, continuemos desenvolvendo a noção de sistemas vi­ vos. Os sistemas vivos são aqueles que, em sua dinâmica de acoplamen­ tos, historicamente modificam sua estrutura, mantendo a organização, e tais modificações estruturais determinarão seus comportamentos futuros. Acoplamentos estruturais são perturbações mútuas ocorridas na interfa­ ce entre os sistemas vivos, que influenciarão em seus comportamentos futuros. Os sistemas vivos são auto-organizadores, ou seja, são dotados de um a dinâmica interna de funcionamento, e abertos ao fluxo de m até­ ria e energia, que pode ser em forma de informação trocada entre elemen­ tos do mesmo sistem a ou no acoplamento entre elementos de sistemas distintos. Os sistemas vivos, mais explicitamente os organismos celula­ res, além de auto-organização, possuem uma característica que os defi­ ne enquanto vivos; a produção de si mesmos, ou autopoiése. Ou seja, os componentes de um sistema vivo vão usar seus acoplamentos para repro­ duzir a si mesmos e manter a organização do sistema. As organelas de uma célula, por exemplo, formam uma rede de cooperação mútua, cujo objetivo é a manutenção do organismo celular e sua organização, e tal organização só faz sentido no trabalho mútuo da manutenção da célula enquanto célula. Esta organização é realimentada pelo histórico de seus acoplamentos, ou seja, possui um tipo de memória corporal. No entan­ to, cada organela pode ser entendida como um sistem a próprio, daí a importância de quem faz as distinções. O vivo observa e entende o vivo. O leitor mais atento perceberá aqui mais uma pista de como a linguagem se inscreve na com plexidade do sistema vivo.

Como falávamos antes, a organização é realimentada pelo históri­ co de acoplamentos, por isso é necessário que entendamos um pouqui­ nho como funciona esta realimentação. A realimentação é um processo que se refere a outra característica importante dos sistemas (não só os vivos): a auto- regulação. A auto regulação é a tendência de certos siste­ mas a observarem seu desempenho, mantendo o equilíbrio dinâmico. A prim eira ciência a preocupar-se com a auto-regulação foi a cibernética (ciência do timoneiro) e o exemplo mais simples de auto-regulação é o term ostato. Os seres humanos, como organism os vivos autopoiéticos, apresentam diversos microssistemas auto-regulados em suas unidades, e o principal é o que os integra e os realim enta continuamente. Uma das múltiplas vias de auto-regulação, realimentação e produção de acopla­ mentos é a consciência, em suas formas experiencial e reflexiva. Esta produção de acoplamentos simbólicos influenciará sobre a autonomia de um sistem a, que pode ser mais ou menos influenciado por fatores exter­ nos a sua dinâmica, ou seja, este Corpo Sem Órgãos movimenta forças que o constroem. O viver é capaz de transformar o vivo e vice-versa. Uma idéia de corpo pode modificá-lo radicalmente, pois também é corpo e o interpenetra. Quando Pôncio Pilatos tomou célebre o ato de lavar as mãos, está passou por uma mudança estrutural e organizativa com a descoberta dos microorganismos, ou seja, às atribuições de “redimir-se da culpa” ou am enizar o mau cheiro acoplaram-se ao combate a seres que na dinâmi­ ca social só existem na literatura médico-biológica ou nos seus efeitos nocivos ao corpo que são percebidos via perceptos e afectos. Não é o organism o quem diagnostica a doença, este apenas a manifesta, e sim, o “Corpo”, que também é construído pelo saber médico.

Retomando nosso eixo de argumentação, é ao vivo que a pesquisa res­ ponde. Toda esta perspectiva evolutiva e sistêmica, autopoiética brota de conclusão radicalmente simples: um cientista que observa uma bactéria no microscópio precisa lembra-se que existe uma linhagem que os aproxima intimamente, e uma tênue linha simbólica que os diferencia, ou seja, para pesquisar a bactéria é necessário que o pesquisador atualize o seu “devir- bactéria” . Generalizando: para pesquisar qualquer sistema vivo em seu viver, o pesquisador é também pesquisado por este sistema.

TEMPOIESIS

Até agora nosso corpolumetempoiesis já teve um primeiro olhar lan­ çado sobre si mesmo e em direção ao leitor que tem interesse de aprendei

começou dizendo que ele funciona como um sistema que se “auto-inven- ta”, que se realimenta com outros sistemas por acoplamentos estruturais e também que isso tudo é auto-regulativo como nos termostatos. Também este monstrinho, nas suas traquinagens científicas, ousadamente disse que a linguagem é um sistema acoplado ao corpo e que “amenizar o mau chei­ ro” e “lavar as mãos” pode ser um “corpo” produzido pela linguagem, den­ tro de um perfeito funcionamento adaptativo e autopoiético. Mas, para avançarmos, precisamos fazer uma dobra na intencionalidade deste texto. Agora ele não quer mais falar da especificidade organizativa e concreta do vivo na nossa pesquisa, mas aproveitar os sinais que formam dados anterior­ mente no que dizia respeito de como podemos lançar nosso olhar investi- gativo sobre o sistema vivo. Para isso necessariamente teremos de acoplar a este corpo um outro sistema que o compõem: o tempo. Para o pesquisa­ dor que quiser realmente aprofundar mais a noção do vivo da pesquisa a partir de uma demanda de entender o contemporâneo, é necessário que pensemos o tempo, pois este nos lançará para a razão mais ontológica dos fenômenos. Para isso, é necessário que tomemos como premissa que o tem­ po é o que qualifica e diferencia os fenômenos. Que faz os fenômenos du­ rarem e se comportarem como se fossem vivos igual aos sistema referidos anteriormente. Ou seja, o tempo nasce com a vida.

Esta é a razão ontológica. Que as coisas duram; que o jeito mais inte­ ressante de pensarmos as coisas é pela duração que vai construindo o sis­ tema vivo. A duração nos dará a idéia da proveniência da vida. A caracte­ rística desta duração dirá que os caminhos pelos quais o corpo percorrera ao auto-inventar-se tem o seu estôfo no tempo. Vejamos como Bergson irá nos situar nessa questão. Para isso ele pensa no nosso “viver o vivo” e diz:

[...] a nossa duração não é um instante que substitui outro instante: se assim fôsse. jamais haveria presente. Não haveria prolongamento do passado no atual, não haveria evolução, nem duração concreta. A duração é o progres­ so contínuo do passado que rói o futuro e incha avançando. Visto que o passado incessantemente cresce, também se conserva indefinidamente. A memória conforme tentamos provar, não é a faculdade de classificar recor­ dações em uma gaveta ou de as inscrever num registro. Não há registro, não há gaveta, não há sequer, aqui. propriamente uma faculdade, porque uma faculdade age por intermitências, quando quer ou quando pode, ao passo que o amontoar-se do passado sobre o passado prossegue sem tré­ guas. (Bergson. 1964. p.44)

A partir disso chegamos a uma consigna que iremos defender no cam­

No documento CArtografias e Devires (páginas 109-125)