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PPGPSI-UFRGS.

No documento CArtografias e Devires (páginas 132-144)

TRABALHO E CONTEMPORANEIDADE: O TRABALHO TORNADO VIDA

PPGPSI-UFRGS.

May te Raya Amazarray é psicóloga, m estranda em psicologia social e institucional da I )|'R(rS, integrante do Grupo de “Pesquisa saúde m ental e trabalho” do PPGPSI-UFRGS

e do Fórum Permanente de Prevenção de LERJDORTdo Rio Grande do Sul

Selda Engelman é adm inistradora, mestranda em psicologia Social c institucional da UFRGS e integrante do Grupo de “Pesquisa modos de trabalhar, modos de subjetivar" do

Simoni Missel, Cláudio D ’Amico e Nara Mello (2001) citam outros fato­ res de empregabilidade também considerados: equilíbrio emocional, dis­ posição para o aprimoramento técnico e pessoal constante, capacidade de estabelecer metas claras, comprometimento e criatividade, comunicação adequada e capacidade para o trabalho em equipe.

Especialistas em orientação profissional, conforme Oliveira (2001), indicam que o maior desafio para o iniciante no mercado de trabalho é o de se desligar de conceitos herdados como o de que “um bom trabalho é aquele que oferece estabilidade e remuneração elevada”. A tendência das relações aponta para o desapego ao conceito de emprego. Não ter em pre­ go não pode significar não ter trabalho. Outra orientação oferecida é a de que, no mundo globalizado, deve-se desfazer as amarras que “impedem a decolagem”, tanto em relação à família e à moradia, quanto em relação à própria profissão. Quem deseja um bom trabalho deve ser flexível a ponto de abrir mão da formação inicial para desempenhar outras atividades que o mercado exija. Viajar, tomar contato com outras culturas, comunicar, conectar, trazer experiências de berço, entre outros, mais do que diferen­ ciais, parecem estar se tomando ditames de padrão.

A contemporaneidade propõe, portanto, uma flexibilização em rela­ ção ao próprio conceito de trabalho, não fixando apenas o emprego, mas considerando também outras formas de contratos, como o serviço de ter­ ceirização, o trabalho autônomo, informal, temporário, voluntário, as co­ operativas e os estágios. Da mesma forma, a importância de operar com o conceito de “qualidade” em todas as funções - não apenas na produção de trabalho, mas nas relações entre colegas e clientes - mostra-se como outra condição insistentemente marcada. A demanda é que tais conceitos sejam encarnados na maneira de ser e agir dos trabalhadores.

Pode-se dizer, assim, que tal “perfil” exigido para os trabalhadores, de­ fine não somente modos de trabalhar, mas modos de ser. O objetivo deste artigo é abordar tal relação entre trabalhador e trabalho, problematizando-a com o auxílio do maquinário conceituai de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Toni Negri. Para tanto, toma-se necessário explorar alguns de seus conceitos para entendermos algo desta situação em que demandas profissionais de caráter técnico misturam-se, na atualidade, cada vez mais, com demandas pessoais de caráter subjetivo.

SOCIEDADE DISCIPLINAR E SOCIEDADE DE CONTROLE Quando nos referimos ao contemporâneo, visualizamos, segundo Fou cault (1999), duas tecnologias de poder concomitantes e sobrepostas, a sa

ber: a disciplinar e a de regulação. A tecnologia disciplinar, situada nos séculos XVIII e XIX, com seu apogeu no início do século XX, também é entendida por Deleuze (1992) com sociedade disciplinar, uma vez que toda a organização social passou a ser normatizada pela disciplina.

A sociedade disciplinar caracteriza-se pela introdução de tecnologias orientadas para que permitem que os indivíduos sejam manipulados como corpos dóceis, a partir da implementação de dois vetores de atualização: um espacial e outro temporal. Por meio do vetor espacial, produz-se uma demarcação entre o dentro e o fora, através dos espaços de confinamento: o indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro (a escola, a fábrica, a prisão). Por outro lado, através do vetor temporal, produz-se um automatismo dos corpos. Ritmos cadenciados são impostos no interior dos dispositivos institucionais, buscando anestesiar formas de experimentação criativa do tempo.

N a fábrica (Foucault, 1995), o tempo dos homens passa o ser trans­ formado em tempo de trabalho, em troca de um salário, e o corpo, trans­ formado em força útil, moldado, formado dócil, produtivo, submisso, vi­ giado, corrigido, qualificado para ser um corpo capaz de trabalhar. O tem­ po de trabalho e a força de trabalho caracterizam essa sociedade, e a linha de montagem traduz o seu ponto culminante.

N a técnica da regulação, que eclodiu com a Segunda Guerra Mundi­ al, a disciplina não é excluída, mas integrada a essa nova tecnologia. Tal técnica não se dirige ao corpo, como na disciplinar, mas à vida dos homens. Foucault (1999) chama a passagem da disciplinarização para essa nova tecnologia como passagem da anátomo-política do corpo humano para a biopolítica da espécie humana. A biopolítica consiste, sobretudo, no esta­ belecimento de mecanismos reguladores da população global, na fixação de seu equilíbrio - manutenção de uma média, estabelecimento de uma hoineostase e de uma regulação dos processos biológicos do homem-es- pécie - em suma, na otimização de um estado de vida. Assim, delineia-se a era de um “biopoder” (Foucault, 2001).

Deleuze (1992) aborda essa tecnologia da regulação como produto e produção de uma “sociedade de controle”, apontando que se trata de uma mudança na maneira pela qual o poder marca o espaço no contemporâneo. Portanto, o poder passa a incidir não apenas sobre a vida qualificada, mas sobre a vida não-qualificada, sobre o viver. O biopoder captura o sujeito ainda no plano de criação, de modo que estamos sempre dentro de seu do­ mínio. A lógica que antes funcionava no interior das instituições se esten­ de. hoje, a todo o campo social.

Segundo Michel Hardt (2000), não se pode pensar a sociedade de con- tiole sem considerar o m ercado mundial, que é o ponto de partida e de che­

gada do capitalismo. Podemos utilizar a forma do mercado mundial como modelo para compreender a forma da soberania imperial em sua totalida­ de. Assim, como não há um fora no mercado mundial, na medida em que o planeta inteiro é o seu domínio, não há fronteiras para o exercício do bio- poder: seus limites são móveis e fluidos.

O biopoder, então, mantém uma relação de indissociabilidade com o capitalismo. Sociedade de controle, biopoder, globalização: estamos falan­ do do Capitalismo Mundial Integrado (CMI), conforme já o fez Guattari (1987). Para esse autor, o capitalismo contemporâneo é mundial e integra­ do porque nenhum país e nenhuma atividade humana ficaram fora do seu controle. O CMI colonizou todos os recantos do planeta, ignorando a di­ versidade dos povos e os diferentes regimes políticos.

Esta colonização não se dá apenas pela extensão dos territórios, mas de maneira intensiva, de modo que todos empregam sua vida ao capital: crianças, mulheres, homens, desempregados, estudantes, donas-de-casa. A sujeição é completa: o capital anexou tudo o que pôde e em profundidade - por isso é capitalismo expansionista e intensionista. Trata-se da integra­ ção maquínica, ou seja, o campo de ação do capital não está apenas no tra­ balho assalariado, mas onde todos nós estamos. O capital não é só econô­ mico, é material e semiótico, é um agenciamento coletivo complexo. A mídia é o principal veículo dessa integração maquínica e o m arketing pas­ sa a ser o setor privilegiado das empresas.

O trabalho, portanto, emancipou-se da disciplina da fábrica para um trabalho imaterial, podendo ser entendido, conforme Peter Pelbart (2000) e Toni Negri (2001), como aquele que produz o imaterial - por exemplo, em vez de fabricar carros, sapatos, produz imagens, serviços, conhecimen­ tos. O trabalho imaterial não pode ser entendido simplesmente como um trabalho intelectual, mas como um trabalho que se caracteriza pela m alea­ bilidade, pela capacidade de inserir-se em qualquer situação. Talvez essa possa ser a característica mais marcante da nova força de trabalho, essa plasticidade que permite ao trabalhador inserir-se a todo momento na im a­ terialidade dos fluxos produtivos. O trabalho imaterial incide na subjetivi­ dade humana. É um trabalho afetivo, já que seus produtos são intangíveis: sentimento de bem-estar, satisfação, paixão, inclusive a sensação de per- tencimento a uma comunidade ou grupo.

Segundo Negri (2001), na sociedade contemporânea não é mais o cor­ po que é posto a trabalhar disciplinarmente, e sim a alma. M as quando o autor refere esta idéia, ele não se propõe retornar à dicotomização corpo/ alma; pelo contrário, ele se refere às relações de afeto e aos diferenciais de produtividade que são agora o próprio cérebro das pessoas que trabalham: “ [...] a máquina-ferramenta foi arrancada do capital pelo operário, para que

ficasse com ele por toda a sua vida, que o operário encarnou essa potência de produção dentro de seu próprio cérebro, [...]” (Negri, 2001, p.27).

Para Negri, a ferramenta de trabalho está encarnada no cérebro, mas, lembremos, a partir da concepção do homem como um todo, em que o cé­ rebro faz parte do corpo, congregando não só funções cognitivas, mas tam­ bém tudo o que pertence ao “sentir”. O trabalho se constrói, portanto, a partir das ferramentas encarnadas, apropriadas, que são a própria vida posta em produção. E, colocar a vida em produção significa colocar em produção os elementos de comunicação da vida, pois a vida individual se torna pro­ dutiva no momento em que entra em comunicação com outras ferramen­ tas encarnadas. A linguagem, como forma de comunicação, toma-se fun­ damental neste processo produtivo.

Acontece que a linguagem, como o cérebro, está ligada ao corpo, que não se exprime simplesmente de maneira racional, mas através das potên­ cias de viver, das potências expansivas, de liberdade que o autor chama de afetos. Portanto, a vida afetiva se tom a uma das expressões da ferramenta de trabalho encarnada no corpo e o controle capitalista se intensifica ju s ­ tamente nessa potência de agir das pessoas. Seguindo essa lógica, a em­ presa possui formas de controle mais sutis e mais eficazes, uma vez que engolfa o trabalhador pela participação, gerando a ilusão de uma intera­ ção democrática.

Ora, se é a própria vida que é posta à disposição da produção, como não estar totalmente comprometido com a empresa? Ou melhor, nem pre­ cisamos realmente de UM A empresa para estarmos trabalhando, pois o processo produtivo extrapolou os limites físicos e invadiu as casas, o tem­ po livre, as relações familiares. O trabalhador contemporâneo encontra-se em situação de total dedicação às atividades profissionais. Sua vida tor­ nou-se seu trabalho.

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE

Se, hoje, os modos de trabalhar passam por tal transformação, urge questionar as implicações desta nos modos de subjetivação.

A tradição moderna de ciência nos ensinou a conceber subjetividade como indissociada da idéia de indivíduo. Legado do cartesianismo, o pro- leto epistemológico da modernidade delimitou em seu horizonte o propó­ sito de depurar do humano sua essência cogitam. E, esperava-se da psico­ logia o cumprimento desta missão investigativa com o intuito de alcançar o sujeito puro da razão, ou seja, o sujeito epistêmico, aquele pronto para conhecer, livre de suas implicações mundanas.

No entanto, a nova disciplina psicológica foi, paradoxalmente, des­ cobrindo o exato avesso deste projeto, ou seja, sua impossibilidade, m es­ mo que diante disto, tenha se subjugado, ao longo da história, ao juízo do “tribunal epistemológico”, tentando a todo custo resgatar a possibilidade de seu empreendimento, sob o risco de ficar sem uma “filiação científi­ ca”. Diante da denúncia da frágil precariedade do pressuposto metafísico da razão, a psicologia se dividiu. Vislumbrando a multiplicidade, tomou- se múltipla também - psicologia da personalidade, do desenvolvimento, do trabalho, clínica, escolar, social. Contudo, a sombra do cogito parece ainda pairar sobre muitas das concepções vigentes.

Jefferson Bemardes (2001), em uma leitura histórica, mostra que mes­ mo a psicologia social dividiu-se, depois de se tom ar insustentável o pro­ pósito de unificar as perspectivas pelo método experimental. Sob a égide do positivismo, tentou-se, durante muito tempo, reduzir os fenômenos so­ ciais ao âmbito do individual, pressupondo que tais fenômenos têm sua “gênese natural” no indivíduo humano.

No entanto, a dicotomia indivíduo/sociadade não é mais suficiente para dar conta do entendimento da atual situação econômica e política do planeta - embora a apologia à individualidade liberal, independente e au­ tônoma, exerça um papel importantíssimo nesta configuração. Entendemos que o social não é uma simples extensão da natureza individual, mas seu meio de produção e também seu produto. Assim, subjetividade é igualmente produção em processo e coletividade.

Peter Pelbart nos esclarece que, desta perspectiva, subjetividade [. . .] pode então ser definida como uma modalidade de inflexão das forças do Fora, através da qual cria-se um interior. Interior que encerra dentro de si nada mais que o Fora com suas partículas desaceleradas segundo um ritmo próprio e uma velocidade específica. A subjetividade não será uma interioridade fechada sobre si mesma e contraposta à margem que lhe é exterior, feito uma cápsula hermética flutuando num Fora indeterminado. Ela será uma inflexão do próprio Fora, uma Dobra do Fora. (Pelbart, 1989, p. 135)

O fora não é um nada indefinido, mas composição de partículas mó­ veis, aceleradas, mistura de tempos e potências criativas. Deste ponto de vista, podemos dizer que o sujeito é força, potência criativa, e o que o di­ ferencia, em seu interior, do fo ra que o compõe é a existência estética, o cuidado de si, o poder de afetar a si mesmo, enfim, a relação de força con­ sigo mesmo.

Guattari (1992) nos ajuda compreender esta idéia que tentamos com­ por a respeito de subjetividade com a noção de fluxos. E, junto com De- leuze (1976), resgata aspectos da filosofia de Bergson (como as relações de tempo e espaço) que nos permitem pensar esta dobra, a subjetividade, em termos de sua processualidade, de movimentos permanentes de “vir a ser”, de devir, a partir das trocas de fluxos com o que é exterior a seus po­ ros, com o fora.

Subjetividade é, então, algo sempre construído, fabricado, produzi­ do nos encontros, acoplamento de fluxos que não se cansam de pedir pas­ sagem à medida mesma em que são cortados em agenciamentos maquíni- cos de produção. E o desejo é, nesta configuração, o fluxo agenciador dos encontros, que potencializa e é potencializado pelo outro, produz o si na medida em que produz o outro.

Por isso, podemos falar em modos de subjetivar, ou seja, regimes de regulação de fluxos que permitem ou desautorizam determinados acopla­ mentos com o outro, seja este o trabalho, a família, o conhecimento, a reli­ gião, a arte. Assim, os processos subjetivantes podem ser capturados por determinados modos de fazer, pois estão sempre em relação com uma tra­ ma de saberes estratificados e estratégias de poder.

Em bora possa parecer por demais categórico, urge denunciar que o capitalismo já descobriu isso há muito tempo. Inventou novos modos de investimento social do desejo, apropriando-se das operações maquínicas de corte-fluxo a que Deleuze e Guattari (1976) denominam esquizo.

CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA

Esquizo (do grego schízo) significa justam ente separar, cortar, fen­ der, e os autores já citados remetem a esta perspectiva sua concepção de formação social. Tal como se processa a produção de subjetividade, assim liimbém sobre o corpo social correm fluxos que a sociedade esforça-se por codificar, instituindo pontos de corte, pólos interceptores. Cada sociedade leve, assim, conforme a sua época, um axioma desde o qual codificavam seus fluxos e instituíam regimes próprios de corte/conexão dos mesmos - no feudalismo, por exemplo, os regimes de propriedade de terras, de tro­ cas, de casamentos, etc. - embora sempre algum fluxo escape das opera­ ções de corte. O ocaso de uma formação social dá-se no momento em que iifio consegue mais manter sob o jugo de seus códigos, a despeito de qual- quei aparato repressivo ou busca de novos axiomas, os fluxos que esca­ pam e escorrem torrencialmente.

O capitalismo, porém, parece dispor de uma axiomática (Deleuze, 1971), de modo que, em momentos de crise, consegue sempre criar novos axiomas, axiomas complementares, mesmo contraditórios, resultando disto um poder de recuperação realmente extraordinário. Ora, ele próprio insti­ tuiu-se sobre um paradoxo:

[...] se os fluxos descodificados têm sido o terror de todas as outras forma­ ções sociais, o capitalismo constituiu-se historicamente sobre algo incrí­ vel, a saber, o que era o terror das outras sociedades, a existência e realida­ de de fluxos descodificados e que, de fato, são assunto seu. (Deleuze, 1971, p.2 - tradução livre)

Deleuze refere, neste trecho, precisamente o ocaso do feudalismo, quando se encontram:

descodificações de fluxos de propriedade territorial, sob a forma de gran­ des propriedades privadas; descodificação de fluxos monetários, sob a for­ ma do desenvolvimento da fortuna mercantil; descodificação de um fluxo de trabalhadores sob a forma da expropriação, da desterritorialização de ser­ vos e pequenos campesinos. (Deleuze, 1971, p.3 - tradução livre)

O capitalismo surgiu, assim, de uma conjunção de fluxos descodifi­ cados e desterritorializados, “sobre a quebra de todos os códigos e territo- rialidades sociais- existentes.” Para a formação de um capital, teve de se descodificar o dinheiro “através das formações embrionárias do capital comercial e do capital bancário”. Logo, não só é peculiar ao capitalismo seu poder de recuperação por conseguir reterritorializar os fluxos desco­ dificados, mas também a potência para desterritorializar os códigos que não mais lhe convêm.

Por este motivo, Deleuze pode afirmar que, então, a máquina capita­ lista é louca. Eis o porque da aproximação que faz com a esquizofrenia. Ora, o esquizofrênico é propriamente aquele que não se deixa apreender pelos códigos sociais; antes, cria os seus próprios e os modifica, bagun­ çando qualquer referente de signos, significados e significantes - ele não se deixa axiomatizar.

A diferença radical, por outro lado, é que, para se manter como for­ mação social, o capitalismo precisa das pessoas como interceptores de flu­ xos. Logo, nos diz Deleuze, não se trata de uma formação que nos põe es- quizos no nível dos modos de viver, mas no nível de processo econômico. Assim, o esquizofrênico, tal como é produzido pela sociedade, é comple­ tamente avesso ao funcionamento deste sistema, é o seu negativo.

O que importa ressaltar, contudo, é que o capitalismo, como sistema econômico, conseguiu mimetizar o próprio processo de produção social e,

assim, consegue capturar também os processos de produção de subjetivi­ dade. É precisamente aqui que se colocam as condições para a constitui­ ção e ação de um biopoder, bastando que se desenvolvam dispositivos ca­ pazes de engendrá-lo, pondo-o a funcionar. Isso nos permite dizer que, na referida passagem da sociedade disciplinar para a de controle, não assisti­ mos à mudança de uma formação econômica a outra, mas à evolução, apri­ moramento de um mesmo sistema, o que explica a coexistência, hoje, da mais severa disciplina com os equipamentos mais sofisticados de gerencia­ mento e expansão da produção.

O QUE DIZER, ENTÃO, SOBRE “SUCESSO PROFISSIONAL” NO TRABALHO CONTEM PORÂNEO?

Talvez coubesse, antes, questionar o que seria o sucesso profissional tão almejado, ou melhor, o que nos é apresentado socialmente como su­ cesso profissional?

Ora, o que é valorizado pela sociedade num “trabalhador de suces­ so” é justam ente o perfil de trabalhador que tem sua alma posta discipli­ narmente a trabalhar. É esta norma reguladora, nesta sociedade de contro­ le, que captura o sujeito. Somos induzidos a pensar que sucesso profissio­ nal é realizar-se como consumidor, é possuir status, é pertencer a uma co­ munidade ou grupo. O profissional de sucesso é, acima, de tudo aquele que vende a imagem de ser um profissional de sucesso.

M as será realmente isso o sucesso profissional? E quanto à realiza­ ção pessoal, sabemos o que é isto? Se foram apropriados os processos co­ letivos de produção de subjetividade, como desviar a captura dos fluxos produtivos? E possível reagir a tal controle?

M arc Ferro (2000) esclarece que as faltas no trabalho por greves e as antigas reivindicações de direito ao trabalho e à saúde do trabalhador vêm sendo substituídas por um aumento dos dias de falta por doença. Segundo este autor, a doença tomou-se uma nova forma de rejeição social, um de- sengajamento individual em resposta a um mal-estar geral. Estar doente não é mais um acidente, mas uma forma de vida que oferece uma identi­ dade àqueles que tiveram seus modos de subjetivar irremediavelmente cap­ turados. A doença é uma manifestação individual justamente porque é es­ tratégia do capitalismo a criação de um individualismo exacerbado, um narcisism o doentio. O coletivo de trabalhadores não consegue mais se ar­ ticular para a defesa dos seus direitos, as formas coletivas de reapropria- çilo do trabalho são cada vez mais raras.

As sensações desta realidade opressiva ressoam, pulsam no próprio corpo do trabalhador, que constrangido nas formas que tem para se expres­ sar e, refletindo a forma que lhe impuseram como homogênea e ideal, per­

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